O caso sob análise diz respeito à hipótese onde determinado contribuinte recebera multa pelo atraso no recolhimento do IPVA, lhe sobrevindo nova multa em razão da inscrição do crédito tributário em dívida ativa. Aduz-se pela inconstitucionalidade desta, frente a variados argumentos.
Da inconstitucionalidade do parágrafo único do artigo 27 da Lei nº 13.296/08 que estabelece o tratamento tributário do Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores – IPVA – no Estado de São Paulo
As normas constitucionais, mormente as que se referem às limitações ao poder de tributar e as que se inclinam à proteção da dignidade do contribuinte (art. 1º, III c/c art. 145, §1º, todos da Constituição da República) – enquanto garantias fundamentais – devem ser observadas pelo legislador estadual no domínio de sua competência suplementar.
Quer dizer que a legislação tributária estadual, in casu, afeta a tributo de sua competência (IPVA) deverá guardar consigo os horizontes mínimos e máximos que compõem o modelo de controle da exação fiscal no Estado brasileiro.
Não somente, aliás, por motivos de ordem principiológica, como, por exemplo, no entorno da vedação ao confisco – caracterizado aqui na configuração de dupla incidência tributária do IPVA –, na ausência de motivo para nova penalidade (porquanto já fora aplicada desde quando houve o primeiro atraso) e acerca do binômio razoabilidade/proporcionalidade, quanto à necessidade da nova multa e mensuração do valor respectivo – aspectos que de per si indicam a arbitrariedade, ilegalidade e inconstitucionalidade do dispositivo permissivo da hipótese.
Mas, outrossim, por motivos ligados à ratio da invasão fiscal imoderada, de sorte que sendo a função precípua do IPVA a arrecadação, não pode o Estado-membro, sob este pretexto, e ao sabor discricionário do momento em que decide proceder à inscrição do débito na dívida ativa, fazer incidir nova penalidade por ocasião deste ato administrativo, haja vista que o aumento da exação torna-se sem causa por não achar correspondência com a importância do objeto tributado, oportunidade na qual talvez se justificaria uma maior invasão no patrimônio do contribuinte, porque nesta conjectura – pensamos – a demora no pagamento respectivo importaria em continuidade de situação danosa, da perspectiva da função de desestímulo ou extrafiscalidade pertencente à fisionomia do imposto correlato.[1]
Em tais circunstâncias, a inconstitucionalidade situada, por exemplo, encontra seu mais alto lócus no domínio da repetição de indébito, caso já pago, ou anulatória no caso inverso, na garantia da supremacia dos preceitos constitucionais e na extirpação, ainda que incidenter tantum, de tudo quanto possa colocar em risco aquilo que, por décadas, lutamos para conquistar.
Ei-lo – diríamos – quando há de aparecer o juiz Hércules, proposto pelo jusfilósofo Ronald Dworkin; corajoso, enfático, disposto ao enfrentamento das questões que lhe são colocadas, avaliando as peculiaridades da concretude. Afinal, que consiga proclamar, refletidamente, fundamentação com base no melhor entendimento dos princípios constitucionais aplicáveis, sobremaneira aqueles expressos na exordial e colhidos na instrução.
Por que no império do Estado Constitucional de Direito já não mais se admite que a decisão judicial acompanhe de modo irretorquível a discricionariedade, pois que quando se fala em princípios, isto é, normas constitucionais de vertiginosa densidade, deverá o juiz com base neles julgar, provendo ou não o pedido – porém, numa quanto noutra situação, enfrentando a fundo suas razões, até por força da regra diretamente insculpida no artigo 93, IX da Carta Úbere.
Por tudo isto, que no caso presente, a declaração incidenter tantum confere valor e solidez à Constituição, a qual deveras flui através do magistrado e das partes integrantes do processo judicial. Notadamente, quando se põe em descoberto o abuso da exação, em domínio cujas normas compõem sistema autorregulatório, seja pela tipicidade cerrada, seja pela segurança jurídica ou mesmo pela função social da propriedade (art. 5º, caput e inciso XXIII da CRFB/88), todas aliadas à capacidade contributiva.
Esta, aliás, que acaba por tencionar os supostos acréscimos moratórios, sucedâneos de multa, ou melhor, de novo imposto automaticamente incidente, para peticionar pelo impedimento de seus danosos efeitos, porquanto ausentes de sua razão de ser fundamentos legais e constitucionais legítimos a não ser a promiscuidade fiscal do ente tributante, amealhando além do que de direito, buscando mais do que o necessário e usurpando além de sua competência.
Feitas as considerações vestibulares, passamos a elencar pontualmente as razões da inconstitucionalidade, em breve síntese, a fim de facilitar a compreensão de sua totalidade.
Da ausência de motivos para ao acréscimo moratório correspondente a 1 (uma) vez o valor do imposto [art. 27, parágrafo único da Lei nº 13.296/08]
O dispositivo em epígrafe diz que:
“Art. 27 – O imposto não recolhido no prazo determinado nesta lei estará sujeito a acréscimos moratórios correspondentes a 0,33% (trinta e três centésimos por cento) por dia de atraso, até o limite de 20% (vinte por cento), calculados sobre o valor imposto.
Parágrafo único – Após a inscrição em dívida ativa, os acréscimos moratórios corresponderão a 1 (uma) vez o valor do imposto.
De antemão é preciso dizer que – por óbvio – toda imposição de penalidade deve guardar um nexo interno, como que o efeito de uma causa preexistente e predeterminada em lei (conforme artigo 97, V do CTN), para incidir no caso concreto.
O caput do normativo acima já traz a consequência em razão da mora para com o adimplemento do imposto. A mora, Excelência, é causada pelo contribuinte, seja lá por qual razão, e seu efeito é a imposição de acréscimo com fulcro em porcentagem descrita em lei.
Nesta oportunidade, a lei cominou, de modo taxativo, que a demora justifica a sanção, porquanto a referida letargia é problema único e exclusivo do contribuinte, de sorte a ser o motivo, a razão de ser, isto é, o suporte fático para que o ente tributante se lhe aplique o necessário, inclusive, para repelir novos atrasos no futuro.
Ocorre que, no indigitado parágrafo único, buscou, o legislador ordinário estadual, cominar nova sanção ao contribuinte, só que, desta vez, a causa não mais seria a mora em si, o estado de errância no tempo, porém o ato administrativo de inscrição na dívida ativa do crédito tributário.
Aqui, inexiste nova conduta do contribuinte apta a legitimar a imposição de uma nova penalidade. Porque a penalidade deve ter uma causa e, à medida que já existia esta causa, penalizá-la novamente, sobremaneira constitui exercício arbitrário do poder de coerção; é excesso de exação que flagela a capacidade contributiva situada.
Ou seja, v. g., superado o teto de 20% previsto no caput, sem se falar na incidência de juros com base na taxa SELIC (conforme artigo 28 da lei estadual), o ente tributante poderia a qualquer tempo enviar o crédito para a dívida ativa, não apenas frustrando o que a lei mesma dissera acerca dos acréscimos moratórios usuais, todavia alargando consideravelmente o montante devido.
Quer dizer que a discricionariedade no tempo de o ente tributante enviar ou não o crédito à dívida ativa gera uma situação pior ao contribuinte do que se se deixasse por sua conta e risco a assunção do adimplemento, à ingerência, portanto, da taxa SELIC. Nem, ainda, que fosse pior a sua situação, porquanto não se pode penalizar com respaldo em ato próprio e afeto única e exclusivamente ao ente tributante.
Logo, se um contribuinte em mora com o pagamento do imposto o paga num determinado dia, restará livre da imposição do parágrafo único. O outro contribuinte, sem tanta sorte, nas mesmas circunstâncias, que paga no mesmo dia do primeiro, descobre que foi premiado com a inscrição em dívida ativa. Pronto. Nada mais há que se fazer. Este sofrerá multa no valor integral do imposto devido, mais os juros de mora da multa de mora. Duas situações congêneres a que a exação estende efeitos diversos, onerando ora um, ora outro, no lastro discricionário ou ao sabor da mera vontade do sujeito ativo da relação tributária.
Pergunta-se, afinal, o que fez ou deixou de fazer, o contribuinte, para merecer nova punição, nova multa? Que ele tem que ver com a inscrição na dívida ativa de seu débito pela fazenda? Ou, melhor dizendo, por que acorrentar quem já se encontra preso? A multa inicial, o primeiro cárcere, já bastava, já o faria adimplir para licenciar seu veículo. A segunda multa não. Esta serviu apenas para provar, mais uma vez, o quão somos reféns do Estado, fiscal em demasia.
É este o ensinamento de Leandro Paulsen, in verbis:
“Note-se que tanto a instituição de tributos como a previsão de multas devem conformar-se não apenas ao princípio da legalidade, mas também aos demais princípios, sob pena de invalidade. Não é o fato de a multa estar prevista em lei que dispensa a análise de validade do dispositivo. [...] Cabe chamar atenção ainda para o fato de que não há impedimento a que se reduza multa excessiva, expurgando-a do excesso inconstitucional.” [2]
Do que decorre a ausência de motivação do parágrafo único da Lei nº 13.296/08 do Estado de São Paulo, conflitante com o que seria razoável.
Da degeneração dos princípios da capacidade contributiva e da isonomia para o efeito confiscatório da multa – inteligência dos artigos 1º, III, 5º, caput e inc. XXIII c/c arts. 145, §1 e 150, II e IV, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988
A intensidade predatória de multa equivalente a uma vez valor do imposto, afora o dobro da multa de mora, como é na espécie, traduz-se em estiolação desmedida, constrangendo o contribuinte a enfrentar dispêndio além de sua capacidade.
Porque, afinal, a capacidade, ao contrário do que se pode pensar a respeito da incidência do IPVA sobre a propriedade veicular, uma vez colocada no horizonte do critério da proporcionalidade, diz respeito não ao valor do veículo em si – porquanto essa é uma desculpa pro Fisco inaceitável do ponto de vista constitucional – porém, quanto à aptidão ou suportabilidade média da carga tributária.
Por isso é que a proporcionalidade serve para compreender a capacidade contributiva aliada à carga tributária; o sobrevalor aposto ao bem, já tributado outrora, impõe esquecimento da dignidade do contribuinte, bem como desrespeito à liberdade de gozar de sua propriedade.
Não se deve tratar a argumentação aqui, tampouco pelo viés do mínimo existencial, de sorte que a resposta para a intenção confiscatória do ente político encontra-se dada plenamente no bojo mesmo dos rudimentos configuradores do IPVA, imposto cuja raiz não acha vinculação tanto a serviços públicos, quanto para o desestímulo de condutas socialmente reprováveis, como, v. g., o IPI incidente em fumígenos.
Aqui é arredação, fiscalidade. E, quando a arrecadação é predatória, o contribuinte sofre, de sorte que, junto com esta, suporta outras tantas predações no seio do Estado Fiscal brasileiro contemporâneo.
Hipótese cabalmente deflagrada na situação em apreço, de modo que a multa do parágrafo único do artigo 27 da Lei nº 13.296/08, colide com o disposto no artigo 145, §1º da Carta Magna, por não respeitar a capacidade contributiva, nas dimensões argumentadas até então.
Neste caso, é ainda mais flagrante a ausência de qualquer consideração da capacidade contributiva. De acordo com o exemplo dado linhas acima, se dois contribuintes pagam no mesmo dia, malgrado ambos em atraso, um ou outro poderá ser surpreendido com a notícia de que o crédito tributário correspondente fora enviado à dívida ativa da fazenda para cobrança judicial. Neste caso, não há isonomia entre ambas as posições jurídicas.
Primeiro porque o direito de a Fazenda submeter o crédito à cobrança judicial, no interregno prescricional quinquenal, não justifica de per si a incidência de valor inédito, muito embora constante da legislação então em vigor. Isso porque baldadas as tentativas de lograr êxito com a adimplência do crédito tributário no âmbito extrajudicial, aí já incluída as multas decorrentes da mora, não pode a Fazenda – ou melhor, não deveria – buscar mais arrecadação, sob a suposta escusabilidade da inscrição na dívida ativa.
Não é motivo idôneo, como visto, e, com efeito, gera uma sensação de insegurança jurídica no contribuinte, posto que a isonomia tributária guarde em seu cerne a garantia de que o tratamento, consoante a equidade, representa prerrogativa intransponível na sede do Estado Constitucional de Direito.
Motivos pelos quais, o retrocitado normativo é novamente tido por inconstitucional, face à violação ao artigo 150, II da Constituição da República.
Ademais, por fim, é inevitável, do ponto de vista lógico, que quando se está diante de uma ruptura com a capacidade contributiva e com a isonomia, notadamente aparece o caráter confiscatório da norma impugnada (contra, pois, o que determina o artigo 150, IV da CRFB/88), cujo reconhecimento se pleiteia nesta oportunidade com o fito de que o indébito seja repetido à AUTORA.
Elucidativa é a ementa do Acórdão a seguir transcrita:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO – ALEGADA VIOLAÇÃO AO PRECEITO INSCRITO NO ART. 150, INCISO IV, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL – CARÁTER SUPOSTAMENTE CONFISCATÓRIO DA MULTA TRIBUTÁRIA COMINADA EM LEI – CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA PROIBIÇÃO CONSTITUCIONAL DE CONFISCATORIEDADE DO TRIBUTO – CLÁUSULA VEDATÓRIA QUE TRADUZ LIMITAÇÃO MATERIAL AO EXERCÍCIO DA COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA E QUE TAMBÉM SE ESTENDE ÀS MULTAS DE NATUREZA FISCAL – PRECEDENTES – Indeterminação conceitual da noção de efeito confiscatório – Doutrina – Percentual de 25% sobre o valor da operação – “Quantum da multa tributária que ultrapassa, no caso, o valor do débito principal – Efeito confiscatório configurado – Ofensa às cláusulas constitucionais que impõem ao poder público o dever de proteção à propriedade privada, de respeito à liberdade econômica e profissional e de observância do critério da razoabilidade – Agravo improvido” (Ag. Reg. No RE n. 754554/GO, Rel. Min. Celso de Mello, DJe de 28-11-2013).
Do que vale, destarte, a conclusão acertada do justributarista Kiyoshi Harada, segundo o qual:
Esse Acórdão representa uma luz no final do túnel para combater as legislações truculentas que transformaram a multa em um imposto novo, que tem como fato gerador a infração de natureza tributária praticada pelo contribuinte. O Acórdão em questão sinaliza que não pode haver multa que equivalha ao próprio valor do imposto, devendo representar apenas um percentual do imposto devido.[3]
No mesmo diapasão, arremata:
Cabe à doutrina e à jurisprudência precisar o percentual razoável incidente sobre o valor do imposto devido. Na nossa opinião nenhuma multa pecuniária deveria ultrapassar de 20% do imposto devido. Mas, esse é um tema de difícil precisão a exemplo do nível de imposição tributária que se insere no âmbito da política tributária. Porém, uma coisa é certa: tanto o nível de imposição tributária, já saturada, como a quantidade de multa pecuniária cominada pelas diferentes legislações devem se conter nos limites do princípio da razoabilidade.[4]
Princípio este, da razoabilidade, que condiciona inclusive o magistrado a avaliar o caso sub judice, no rigor aqui ressaltado, no sentido de não se empregar, no momento decisório, precedente cujo campo gravitacional não tenha colidido com argumentos bastantes à sua superação, a exemplo daqueles que inferem a justificabilidade da multa absurda tão-somente face ao valor do bem tributado – o que é um crasso erro de técnica e interpretação.
Pois que a multa, sobremaneira na espécie atacada, leva em consideração o valor do bem apenas por reflexo, porquanto seja a alíquota do tributo, a base de cálculo eventual multa de mora que são dados pertinentes ab initio à perscrutação do valor do bem para fins de análise de impacto econômico.
A segunda multa, não. Esta não advém, no íntimo, do mesmo plano de existência. Muito embora o deseje, à medida que ambiciona fazer às vezes de tributação; medida, como se viu, inconstitucional.
Por isto a presente declaração de inconstitucionalidade supera qualquer precedente (overruling) e, assim, deve superar, sob pena de permanecermos inertes e passivos frente a um Estado que, de modo ou outro, quer sempre mais... Mais do que já pagamos, mais, afinal, do que é devido e justo.
Notas
[1] Neste sentido é a posição do mestre Geraldo Ataliba, in verbis: “[...] quanto mais o Direito repute valioso um bem, tanto mais o protege. Na medida em que há mais o que proteger, mais severa é a sanção que aplica ao que não obedece à lei que impõe tal respeito”, in Noções de Direito Tributário. São Paulo: RT, 1964, p. 136.
[2] PAULSEN, Leandro. Direito Tributário, Constituição e Código Tributário à luz da doutrina e da jurisprudência. 14ª ed. Porto Alegre: 2012, p. 206.
[3] HARADA, Kiyoshi. Multas tributárias e o princípio da razoabilidade. Jus Navigandi, Teresina, ano 19, n. 3906, 12 mar. 2014. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/26872>. Acesso em: 7 maio 2014., p. 3, grifamos.
[4] Idem, ibidem, p. 5.