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Administração pública como usuária de serviço público:

sujeição ao pagamento de multas e tarifas especiais

01/04/2002 às 00:00
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O Programa Emergencial de Redução de Consumo de Energia Elétrica, âncora das medidas governamentais traçadas para combater a crise de energia elétrica, que traz em seu bojo a previsão de pagamento de tarifas especiais aos usuários dos serviços, inclusive para classe Poder Público, assim como a cobrança de multas por atraso no pagamento de tarifas, tem provocado insatisfação de alguns órgãos integrantes da Administração Pública por efeito do nivelamento desta com as demais classes de consumidores.

A escusa principal para o afastamento da Administração Pública desse contexto tipicamente privado está centrada na máxima trazida por Adilson Abreu Dallari, segundo o qual a Administração funciona como um Rei Midas. Este tudo o que tocava virava ouro, a Administração, onde toca, "publiciza", ou seja, o contrato mantido com as concessionárias dos serviços públicos, tendo como usuária a Administração Pública, não poderia resultar em sua sujeição total aos ditames contratuais destinados aos demais usuários, ante o interesse público por ela tutelado.

A questão, contudo, não é tão simples quanto parece. Se de um lado existe toda essa roupagem a ser levada em consideração, como forma de proteger a Administração dos efeitos inesperados de uma ruptura ou suspensão de um contrato de serviço público, então concedido ao particular para exploração, do outro lado, está a versão moderna da interpretação, que passa pela fundamentação do processo de desestatização, a justificar o tratamento igualitário dos consumidores, sejam públicos ou privados.

Sobre esse prisma, o debate sobre o assunto não pode deixar de ter início pelo entendimento acerca das figuras jurídicas que envolvem a privatização ou, como querem muitos, o processo de desestatização que assolou o país, tendo como pano de fundo a recente jurisprudência do Colendo Tribunal de Contas da União, que afastou a aplicação da Súmula nº 226, segundo a qual era considerada "indevida a despesa decorrente de multas moratórias aplicadas entre órgãos integrantes da Administração Pública e entidades a elas vinculadas, pertencentes à União, aos Estados, ao Distrito Federal e Municípios, inclusive empresas concessionárias de serviços públicos, quando inexistir norma legal autorizativa."

Senão Vejamos.

Alguns autores conferem à desestatização a mesma definição de privatização, outros submetem esta à espécie do gênero desestatização, que, ao final, seja qual for a linha adotada, tem por escopo a reversão do fenômeno mega-Estado, ou melhor, a diminuição ou a retirada do Estado de atividades que seriam melhor desempenhadas pela iniciativa privada.

Marcos Juruena Villela Souto, em sua obra "Desestatização - Privatização, Concessões e Terceirizações" (Ed. Lumen Juris, 1997), conceitua desestatização como sendo "a retirada da presença do Estado de atividades reservadas constitucionalmente à iniciativa privada (princípio da livre iniciativa) ou de setores em que ela possa atuar com maior eficiência (princípio da economicidade); é o gênero, do qual são espécies a privatização, a concessão e a permissão".

De outro lado, a Profª. Maria Silvia Zanella Di Pietro, em artigo publicado no Boletim de Direito Administrativo 1/96, firma tese no sentido de que a "privatização, doutrinariamente, pode ser vista em sentido mais amplo, para abranger todas as formas pelas quais se busca uma diminuição do tamanho do Estado, podendo abranger: a desregulação (diminuição do tamanho do Estado no domínio econômico), a desmonopolização de atividades econômicas, a privatização de serviços públicos (com sua devolução à iniciativa privada), a concessão de serviços públicos (dada a empresa privada e não mais a empresa estatal, como vinha ocorrendo), e os chamados contracting out, em que a Administração Pública celebra contratos de variados tipos para buscar a colaboração do setor privado, como os contratos de obras e prestação de serviço."

Em que pese a corrente sustentada, a privatização ou a desestatização traduz-se como um fenômeno através do qual se espelha o modelo de Estado que está sendo concebido dentro da política eleita que, diz-se, não é neo-liberal, mas social-liberal, onde a administração pública pretende ser identificada como Administração Gerencial, a congregar dentre outras características : "a orientação da ação do Estado, voltada para o atendimento do cidadão-usuário, ou cidadão-cliente." (v. Implantação da Administração Pública Gerencial na Emenda nº 19/98, de Alice Gonzalez Borges, BDA nº 2/99).

Essa nova concepção de Estado, portanto, acabou por revigorar velhas formas de delegação do serviço público, como a concessão, a permissão e, em relação aos serviços intermediários, não estatais, a terceirização. Neste estudo o nosso interesse está centrado na concessão de serviços públicos.

Em definição, concessão "é um contrato administrativo por meio do qual a Administração delega ao particular a gestão e a execução, por sua conta e risco, sob o controle do Estado, de uma atividade definida por lei como serviço público" (conceito oferecido por Marcos Juruena Villela Souto, na obra já citada).

Mas não é todo o serviço público que pode ser concedido ao particular. Apenas pode ser objeto de concessão, de acordo com a melhor doutrina, os serviços prestados a terceiros (usuários) que admitam exploração comercial ou industrial (Di Pietro, Maria Silvia, "Parcerias na Administração Pública, 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1997), ou seja, aquele que possibilite renda ao concessionário, dentre os quais se encontram os serviços de telecomunicações, de energia elétrica, transporte ferroviário, portuário e outros.

É bom lembrar que, no Brasil, as concessões de serviços públicos aos particulares são responsáveis por parte da história do país. Nessa época, os recursos governamentais eram reduzidos e o interesse do capital externo residia, justamente, na prestação dos serviços de luz, gás, telefone, água, esgoto, transportes urbanos e ferroviários, os quais eram delegados aos particulares, em regra, aos estrangeiros que investiram no Brasil até o momento da mudança da então política econômica do governo, quando o Estado passou a assumir tais atividades (hipertrofia do Estado), criando as conhecidas empresas paraestatais. Diogo de Figueiredo Moreira Neto, em sua obra Curso de Direito Administrativo (10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1992), traz parte dessa passagem histórica da concessão de serviços públicos:

"Com a hipertrofia econômica do Estado e a mudança de concepção política, notadamente quanto à excessiva preocupação com a segurança nacional, as concessões perderam importância nesses campos, e os serviços públicos passaram a ser entregues a empresas paraestatais. Nem por isso o instituto chegou a desaparecer completamente, se bem que tivesse ficado com expressão bem reduzida. Quando já se pensava no ocaso da concessão, eis que retorna ela robustecida em vários países, como solução para a exploração de várias atividades, que podem, perfeitamente, sem comprometimento, ser entregues à execução das empresas privadas. Essas com iniciativa e imaginação, sempre demonstraram maior capacidade de imprimir alto grau de eficiência e economia às suas atividades, dispensando - e isto é que é mais importante - o Estado, de preocupações menores, de modo a liberá-lo para concentrar-se na solução de problemas de maior premência e envergadura, como são hoje os sociais."

A Constituição de 1988, em sua redação originária, trouxe, ainda, o resquício desse modelo de gestão ao conceber seu no art. 21, inciso XI, entre as competências da União, a de "explorar, direta ou mediante concessão a empresas sob controle acionário estatal, os serviços telefônicos, telegráficos, de transmissão de dados e demais serviços públicos de telecomunicações", ou seja, espelhou a política então vigente, que consistia na prestação de serviços públicos através de empresas paraestatais (TELEBRÁS, EMBRATEL, TELEBRASÍLIA, TELEPARÁ e outras). Em 1995, em voga o processo de reversão do quadro de hipertrofia econômica do Estado, a Emenda Constitucional nº 8, de 15.8.95, trouxe nova roupagem ao inciso XI do art. 21 da Constituição Federal que passou a ter a seguinte redação:

"Art. 21 -..... ............

XI - explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações, nos termos da lei, que disporá sobre a organização dos serviços, a criação de um órgão regular e outros aspectos institucionais."

Estava aberto o retorno definitivo à concessão de serviços públicos a empresas privadas e, por conseqüência, o declínio da concessão a entidades paraestatais, controladas pelo poder público: empresas públicas, com capital inteiramente público, e, sociedades de economia mista, em que o capital se associa ao privado, embora ambas concebidas sob o regime jurídico de direito privado.

Sob o enfoque desse panorama jurídico há que se perguntar: o que mudou para a Administração usuária, após a concessão do serviço público ao particular, que levasse o Tribunal de Contas da União a afastar a aplicação da Súmula 226 de sua Jurisprudência?

A resposta está na Decisão n. º 537, publicada no Diário Oficial da União de 2 de setembro de 1999, cuja fundamentação está centrada justamente na vulneração dos princípios da isonomia e da moralidade pública, pois, segundo a ótica revisora, "pretender que a Administração Pública passe a deter prerrogativas em todas as relações que estabelece com os cidadãos, pessoas físicas ou jurídicas, é negar que essa mesma Administração foi concebida para a satisfação do interesse público. E não há interesse público em atribuir a órgãos e entidades da Administração a faculdade de pagar contas de serviços públicos com atraso, sem multa moratória. Se isso ocorre, ferem-se princípios da isonomia e da moralidade, fundamentais em nosso sistema jurídico".

Naquela oportunidade, foi acatada a tese do Ministério Público que, a par da remansosa jurisprudência daquele Corte de Contas, consubstanciada na Súmula nº 226, destacou a necessidade de revisão da matéria, principalmente tendo em conta a nova realidade vivenciada com o advento das privatizações e da novel legislação geral sobre concessões – Lei nº 8.987, de 13.2.1995 e Lei nº 9.074, de 7.7.95. Vale a pena destacar alguns excertos do parecer para elucidar os contrapontos que serão enfocados a posteriori:

"11. A Decisão n.° 399/95-TCU-Plenário, citada pela instrução, que também tratou de cobrança de multa por concessionárias de energia elétrica baseia-se no fundamento de que em todos os contratos em que a Administração Pública é parte devem imperar as regras de direito público, de modo que não é possível a aplicação de multa moratória, cujo caráter é punitivo, sem que haja previsão legal expressa. Além do mais, naquela Decisão concluiu-se que o Decreto-lei n.° 2.432/88, que institui a Reserva Nacional de Compensação de Remuneração – RENCOR, estabelece normas relativas ao equilíbrio econômico-financeiro das concessionárias de serviços públicos de energia elétrica e dá outras providências, por não especificar de forma expressa, em seu artigo 4°, parágrafo único, que a Administração está incluída entre as pessoas, físicas ou jurídicas, a serem penalizadas com a aplicação da multa, não é hábil a embasar a pretensão.

12. A primeira questão que se coloca é se o simples fato de a Administração Pública figurar como parte em um contrato faz com que este migre automaticamente para o campo do direito público. A fim de responder a esta indagação não poderíamos deixar de trazer à colação o entendimento de alguns renomados juristas brasileiros.

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19. Em resumo, pode a Administração Pública firmar contratos regidos predominantemente por normas de direito público e contratos nos quais predominam as regras de direito privado, ressalvadas, como assevera Celso Antônio Bandeira de Mello, as condições e formalidades para estipulação e aprovação, disciplinadas pelo direito administrativo. De fato, não importa o nome que se dê a este segundo tipo, contrato privado, contrato semipúblico ou contrato administrativo de figuração privada, é ele caracterizado pela prevalência de normas de direito privado.

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40. Ora, ao contratar com a concessionária de energia elétrica o órgão público está em condições de igualdade com qualquer outro consumidor de energia elétrica. Sujeita-se às mesmas exigências técnicas e financeiras para obter o fornecimento; cabe-lhe apresentar instalações em conformidade com as normas técnicas e de segurança aplicáveis e, se for o caso, contribuir para a realização de obras e serviços necessários ao fornecimento. Nada, portanto, o diferencia dos demais usuários.

41. Aliás, exatamente porque não se encontra em situação de privilégio, frente ao concessionário, os órgãos usuários de energia elétrica carecem de razão quando invocam interesse público, para impedir a suspensão do fornecimento, em caso de falta de pagamento das contas mensais. A posição já sedimentada nos tribunais brasileiros é no sentido de que, como usuário do serviço de energia elétrica, o órgão público equipara-se a qualquer consumidor, não lhe assistindo, sequer, invocar a essencialidade do serviço público a seu cargo, para impedir a suspensão do fornecimento, no caso de falta de pagamento.

42. Seria exaustivo enumerar os acórdãos já proferidos nesse sentido. Apenas para evidenciar a firmeza com que enfrentaram esse tema, merecem destaque os seguintes arestos:

´Não existe qualquer distinção entre os usuários de sorte que qualquer deles, incorrendo em mora, pode sofrer a conseqüência de ver suspenso o fornecimento de energia elétrica´ (TJMG – 3ª Cam. Cível – Apelação Cível n° 57.057, julgada em 18.07.82, Rel. Des. Gouthier de Vilhe).

´Não há ato coativo, nem muito menos direito líquido e certo, pressuposto da segurança, no ato do credor legítimo, como é a apelante, que fornece energia e tem direito de suspender o fornecimento dada a inadimplência do devedor. Em se tratando de contrato bilateral sinalagmático o fornecedor tem o direito de suspender o fornecimento do serviço ante a inadimplência do usuário. Não integração da sentença e conseqüente provimento do apelo´ (Apelação Cível n.º 6.0022-0 – Apelante Companhia de Eletricidade do Estado da Bahia, Apelado Município de Juazeiro – Acórdão unân. de 01.03.94 – Rel. Des. José Abreu).´

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A fundamentação repousa na igualdade de condições entre a Administração usuária e o particular, ressaltando a indiferença do serviço estar sendo prestado, agora, por empresa privada. Contudo, por mais razoável que seja a premissa, não se consegue suplantar o alicerce político que envolve o contexto da causa, ficando no ar a seguinte indagação: Por que somente após as privatizações houve a mudança de entendimento? Justamente quando a multa irá custear os prejuízos sofridos pelo empresário privado, quando, outrora, era vedado ao empresário público, que dependia de lei específica para tanto. Há que se sucumbir, então, à idéia de que essa igualdade não é absoluta, o que autoriza o retorno da discussão acerca da condição de nivelamento da Administração Pública usuária com o particular, em contratos de prestação de serviço público.

Para por fim a essa idéia, ou mesmo para afastá-la desde logo, poder-se-ia sustentar, como naquela altura, que as paraestatais, na condição de órgãos integrantes da Administração Pública, não estavam legitimadas a efetuar cobranças de multas, ante a inviabilidade de aplicação de penalidades entre órgãos da Administração, por não se coadunar com o princípio federativo. Todavia, o alicerce para a cobrança de multa pela concessionária, assente na igualdade de condições entre a Administração Pública usuária e o particular, demonstra que, mesmo naquela época, não haveria que se distinguir entre o público e o privado, quiçá sob a linha de violação do princípio federativo, a comprovar que o tema não se encontra fechado para outras visões jurídicas.

Na verdade, a sensação que se abstrai das diversas teses jurídicas em confronto com a legislação têm o condão de traduzir que a questão jurídica que envolve o caso pode se amoldar ao modelo de gestão que vier a ser eleito. Tanto pode ser moral como imoral, igual ou desigual a cobrança de multa pela concessionária privada do serviço público à Administração Pública usuária. Cabe, apenas, definir o lado que se pretende tutelar.

Sob o prisma da isonomia, da igualdade entre os usuários, a aceitação desse suporte jurídico pode comportar outras versões. Primeiro porque o Estado, como ente jurídico instituído pelo poder soberano de um povo, assume a prerrogativa de gerir os recursos públicos, arrecadados da sociedade, que o elege para a defesa de seus interesses, materializados nas conhecidas metas e ações governamentais. Esses recursos são geridos em prol da coletividade, elemento maior que sustenta o Estado, cuja responsabilidade fiscal espelha a imposição de limites na administração de seu mister. Nesse contexto, a cobrança de multa contra a Administração Pública usuária impõe, igualmente, ônus à sociedade, como contribuinte, geradora dos recursos públicos: a multa ou a sobretaxa devida pela Administração usuária, em última análise, será retirada do particular, na condição de contribuinte que, também, arcará com o ônus na qualidade de usuário direto.

Despicienda a discussão acerca da responsabilidade do servidor que deu causa ao inadimplemento da Administração usuária, que por muitas vezes não tem outra saída quando a questão é puramente financeira ou mesmo orçamentária. Esse o contraponto que se empresta para demonstrar que a igualdade de tratamento entre a Administração usuária e o particular pode gerar uma situação de desigualdade, que também é imoral. Portanto, não se pode falar em igualdade absoluta, como, alfim, demonstra a própria Lei n.º 8.666, de 1993.

É que sob o ângulo puramente positivo, a Administração, mesmo na condição de usuária de serviço público, encontra-se vinculada às regras da Lei nº 8.666/93, conforme dispõe o seu art. 62, § 3º ("Aplica-se o disposto nos arts. 55 e 58 a 61 desta Lei e demais normas gerais, no que couber:... II – aos contratos em que a Administração for parte como usuária de serviço público") e, como tal, está autorizada a utilizar, nesse tipo de contrato, de cláusulas derrogatórias do direito comum, então previstas no art. 58 da citada lei, dentre as quais a "aplicação de sanções motivadas pela inexecução total ou parcial do ajuste".

Nas hipóteses em que a prestação do serviço público é prestada por uma empresa privada, então concessionária, funcionando a Administração como usuária, esse tipo de permissão legal parece esdrúxulo, eis que, em tese, haveria um nivelamento (que se sabe: não é total) entre o particular e a Administração, que não usufruiu de prerrogativa de poder (poder de império). Outrossim, a permissão legal, à luz das definições trazidas pelo art. 6º, incisos XI a XV, da Lei n.º 8.666/93, confere exegese no sentido de que, ainda nos contratos tipicamente de natureza privada, mantidos com a Administração Pública, como são os contratos de adesão, cabe a esta atuar de forma diferenciada, justamente sob o escopo do interesse público que encerra. E isso quem confirma é a própria legislação.

De toda sorte, tal evidência pode ser sentida, ainda, quando o particular possui motivo para rescisão contratual, norma que também pode ser objeto do contrato entre a Administração usuária e a concessionária, a teor do § 3º do art. 62 da Lei n.º 8.666/93. Eis a regra:

"Art. 78 – Constituem motivo para rescisão do contrato:

..................................

XV – o atraso superior a 90 (noventa) dias dos pagamentos devidos pela Administração decorrente de obras, serviços ou fornecimento, ou parcelas destes, já recebidos ou executados, salvo em caso de calamidade pública, grave perturbação da ordem interna ou guerra, assegurado ao contratado o direito de optar pela suspensão do cumprimento de suas obrigações até que seja normalizada a situação."

Observa-se que se a Administração não cumprir a sua parte na avença, ou seja, deixar de efetivar o pagamento devido por conta da prestação que lhe coube, pode o contratado deixar de cumprir, também, a sua parte. É a regra insculpida no art. 1.092 do Código Civil, de natureza tipicamente privada, aplicável aos contratos administrativos e nos que a Administração for parte, mas que prevê algumas nuances de cunho publicista, como a previsão de um prazo de tolerância para o inadimplemento pela Administração – 90 dias. No curso desse prazo não pode o particular invocar a cláusula da exceção do contrato não cumprido, pois, nesse interregno, a Administração ainda possui as prerrogativas de executar o avençado, assim como lhe é permitido o atraso no pagamento, sem que tenha sido previsto qualquer acréscimo pecuniário resultante desse ato, ou mesmo penalizações. Mais uma diferença, que, para alguns administrativas, justifica-se em razão do interesse público tutelado.

É bom registrar, para que não se crie a inversão dos papéis entre contratante e contratado, no sentido de quem é que detém o poder para consolidar a relação jurídica, e, assim, dispor das cláusulas exorbitantes do direito comum, que a situação reunida após as privatizações, coloca a Administração Pública, como usuária, na condição de contratante, e a quem, ao final, é dirigida a regra do inciso XV do art. 78 da Lei nº 8.666/93.

Sob esse prisma, a isonomia de condições entre a Administração usuária e o particular parece não se revelar como o único ou o melhor fundamento para autorizar a aplicação de multa pela concessionária à Administração usuária, pois a legislação assim não parece autorizar. Mas, a discussão ainda resiste em razão da legislação especial, que utiliza, justamente, esse viés de interpretação para consolidar a aplicação das normas sancionatórias à Administração usuária.

Em que pese a sujeição às normas previstas na Lei n.º 8.666, de 1993, para contratação dos serviços públicos de energia elétrica e de telecomunicações, caso da telefonia fixa e comutada, a Administração Pública está sendo instada ao cumprimento de normas especiais, como recentemente vem ocorrendo com o Programa Emergencial de Redução do Consumo de Energia Elétrica, cuja aplicação à Administração Pública usuária está centrada no princípio da isonomia., sem que tenha havido qualquer preocupação com outra possível interpretação que possa surgir diante do seu texto, alheio à indicações literais, eis que não se vislumbra da leitura da Medida Provisória 2.198-5, de 2001, que criou o Programa Emergencial de Redução de Consumo de Energia Elétrica, nenhuma norma expressa que determine a aplicação de sanções à classe de consumidor Poder Público.

O Programa Emergencial trazido pela Medida Provisória cuida, isoladamente, de cada uma das situações que envolvem as classes de consumidores, deixando para a Câmara de Gestão as metas das classes por ela não tratadas, dentre as quais se inclui a do Poder Público, fato que deu ensejo à edição da Resolução nº 8, de 2001, cujo texto não prevê, de forma expressa, a imposição do regime de tarifação especial e de suspensão de energia a essa classe de consumidor.

A nível regulamentar consta, apenas, previsão, no art. 7º da Resolução nº 8, de 2001, de aplicação das normas da Resolução nº 4, de 2001, ambas da Câmara de Gestão, no que couber, às situações ali tratadas. Ora, partindo-se da premissa de que a classe Poder Público é tratada na Resolução nº 8, de 2001, poder-se-ia cogitar que as normas da Resolução nº 4, seriam a ela, também, aplicáveis, inclusive as que cuidam da suspensão e interrupção de energia.

A Resolução nº 4, de 2001, por sua vez, apenas detalha o Programa Emergencial de Redução do Consumo de Energia Elétrica de que trata a Medida Provisória nº 2.198-5, de 2001, com algumas nuances, já considerando as modificações introduzidas pela Resolução nº 22, de 2001, e adota, também, a classificação de consumidores definida no art. 20 da Resolução nº 456, de 2000, da ANEEL, porém não cuida, de forma expressa, da classe Poder Público, daí a ilação de que o enquadramento da classe Poder Público se daria em razão do Grupo de consumidor a que se encontra vinculado, aplicando-se-lhe as sanções previstas para esse grupo. Ou seja, observado o princípio geral e não específico, por Classe.

Esse viés de interpretação, que submete o Poder Público, de forma reflexa, às normas relativas ao Grupo, é questionável na medida em que, para cada classe, de forma específica, foram traçadas as diretrizes de aplicação do Programa Emergencial de Redução do Consumo de Energia Elétrica, com as ressalvas necessárias em relação ao Grupo, o que não ocorreu com a classe Poder Público, nem ao menos com o fito de aplicação das regras em função do Grupo de consumidor, salvo no que se refere à fixação das metas.

A sujeição do Poder Público às sanções previstas no Programa tem por base, portanto, o critério isonômico entre os consumidores, observado o enquadramento por Grupo. O regime de tarifação especial assente no faturamento, ao preço praticado no MAE – Mercado Atacadista de Energia, do consumo que exceder à meta, adotado para as classes não residenciais, assim como o regime de suspensão e interrupção de energia estão sendo considerados aplicáveis à Classe Poder Público sob a ótica da exceção, ou seja, por exclusão (art. 4º da Resolução nº 22, de 4 de julho de 2001, da Câmara de Gestão), com suporte na igualdade de tratamento entre os usuários.

Em que pese a ilação conferida às normas pelo próprio órgão gestor, a Resolução nº 60, de 17 de outubro de 2001, editada pela Câmara de Gestão, que pôs em prática o chamado Plano "B", trouxe exceções, vinculadas ao "interesse público", ressalvando de sua abrangência os serviços considerados essenciais, dentre os quais se encontra os pertencentes à classe Poder Público, tais como: os edifícios sede dos tribunais superiores e demais órgãos do Poder Judiciário da União, os edifícios sede dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário dos Estados e do Distrito Federal, os edifícios sede das Prefeituras, o Palácio do Planalto, o Congresso Nacional, instalações militares, Centrais de Comunicações da Polícia Militar e muitos outros. Eis o contraponto: a importância pública dos serviços como corolário de inviabilidade de aplicação do "programa", mesmo em face do enquadramento isonômico por Grupo. Observa-se, portanto, que as sanções não foram previstas de maneira linear como quis fazer crer a Câmara de Gestão, muito embora tenha sido autorizada, recentemente, a suspensão de energia elétrica da Classe Poder Público, desta vez de forma expressa, na Resolução nº 72, de 13 de novembro de 2001, na qual restou excluída, novamente, as áreas e cargas essenciais anteditas, previstas na Resolução nº 60, de 2001.

Verifica-se, pois, que a suspensão ou interrupção de energia elétrica a essa Classe de Consumidor, em que pese o contrato de adesão a que está submetida, não a iguala ao particular, como seria coerente atestar diante da utilização incondicional desse princípio, utilizado para onerar ainda mais a Administração Pública usuária, no que tange a sujeição à tarifação especial. Nesse item específico, a interpretação que foi conferida às Resoluções expedidas pela Câmara de Gestão indica a submissão da classe Poder Público, embora inexista norma expressa nesse sentido. E vem a indagação: por quê? Talvez em razão da própria consolidação da interpretação no sentido de que cabe a aplicação da "sobretaxa" e cominação de "multas" à Administração usuária, ante o princípio da igualdade com os demais consumidores, ou, contrariamente, para que subsistam outras interpretações, como as oriundas da aplicação da Lei nº 8.666, de 1993, guardadas para um momento oportuno.

Em conclusão, se é que se pode fechar o assunto, aberto indefinidamente sob o alicerce da moral e da igualdade, que mudam de acordo com a história dos povos, é imperioso consentir que a Administração Pública, mesmo agindo como o particular, jamais a ele pode se comparar, pois as suas prerrogativas existem em defesa do interesse público que encerra, que não se coaduna com o regime imposto, à generalidade, aos particulares, a teor das exceções prescritas na própria legislação. Sob o contexto da privatização dos serviços públicos, como proposta de gerenciamento dessas atividades, tem-se a atração de uma tendência interpretativa como fórmula de reconhecimento de direitos e imposição de deveres, que adota os princípios da igualdade e da moralidade sob a concepção puramente privada, mas que, historicamente, não originam situações absolutas.

Por fim, resta dizer que buscar velhas fórmulas de gestão, como são as concessões e as permissões, como fonte de revigoramento desse novo modelo de administração, não credita ao Estado conceber a igualdade sem o escudo necessário para fazer valer a sua atuação, pois, a sua condição de usuário é necessária para fazer gerir a sua máquina, sem a qual não poderá funcionar como tal, principalmente quando o ônus que lhe cabe for o mais pesado.

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Sobre a autora
Maria Lucia Miranda Alvares

Advogada do Escritório ACG - Advogados, Pós-Graduada em Direito Administrativo/UFPA, autora do livro Regime Próprio de Previdência Social (Editora NDJ) e do Blog Direito Público em Rede, colaboradora de revistas jurídicas na área do Direito Administrativo. Palestrante, instrutora e conteudista de cursos na área do Direito Administrativo. Exerceu por mais de 15 anos o cargo de Assessora Jurídico-Administrativa da Presidência do TRT 8ª Região, onde também ocupou os cargos de Diretora do Serviço de Desenvolvimento de Recursos Humanos e Diretora da Secretaria de Auditoria e Controle Interno. Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisa Eneida de Moraes (GEPEM).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVARES, Maria Lucia Miranda. Administração pública como usuária de serviço público:: sujeição ao pagamento de multas e tarifas especiais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 56, 1 abr. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2900. Acesso em: 19 abr. 2024.

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