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Captação de sufrágio e inelegibilidade:

análise crítica do art. 41-a da Lei n° 9.504/97

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01/04/2002 às 00:00
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4. Ação de investigação judicial eleitoral e captação de sufrágio.

Ao fato jurídico ilícito da captação de sufrágio, a norma do art. 41-A da Lei n° 9.504/97 prescreve a sanção de cassação de registro ou do diploma, além da multa de mil a cinqüenta mil Ufir. Essa norma é direito material. A parte final do texto normativo, o qual estipula a norma que define o remédio processual próprio para a aplicação jurisdicional da sanção de cassação do registro à captação de sufrágio – "(...) observado o procedimento previsto no art. 22 da Lei Complementar 64, de 18 de maio de 1990" –, é norma de direito processual. Embora postas no mesmo texto legal, a diferença de suas naturezas ressalta.

Há quem diga que o art. 41-A teria criado uma representação, que seria processada pelo rito da ação de investigação judicial eleitoral (AIJE), mas que com ela não se confundiria, razão pela qual não seria aplicável os incisos XIV e XV do art. 22 da LC 64/90. É evidente, sem embargo, o equívoco dessa construção teórica. Em verdade, a ação de direito material cabível contra a captação de sufrágio deve ser manejada através da ação processual própria, que é a ação de investigação judicial eleitoral. A ação processual é continente; a ação de direito material, conteúdo. A ação processual diz respeito à forma, ao rito; a ação de direito material, ao objeto litigioso, a res in iudicium deducta. Pontes de Miranda (Tratado das ações. São Paulo: RT, 1970, t. I, p.110-11) ensinava: "A ação exerce-se principalmente por meio de ‘ação’ (remédio jurídico processual), isto é, exercendo-se a pretensão à tutela jurídica, que o Estado criou. A ação [no sentido de direito material] exerce-se, porém, de outros modos. Nem sempre é preciso ir-se contra o Estado para que ele, que prometeu a tutela jurídica, a preste; nem, portanto, estabelecer-se relação jurídica processual, na qual o juiz haja de entregar, afinal, a prestação jurisdicional. A ação [no sentido de direito material] nada tem com a pretensão à tutela jurídica" (sobre o tema, vide ainda: Ovídio Baptista da Silva. Curso de processo civil, 4ª ed., São Paulo: RT, v. 1, pp. 73-109; Araken de Assis. Cumulação de ações, São Paulo: RT, pp. 61-72).

O texto legal do inciso XIV do art. 22 da LC 64/90 talvez seja a causa da confusão. É que há uma mistura de normas de direito material com normas processuais no seu corpo, que termina induzindo a erro. Quando a norma prescreve que julgada procedente a representação, o Tribunal declarará a inelegibilidade do representado..., está se referindo à AIJE proposta por abuso de poder econômico, abuso de poder político e uso indevido dos veículos ou meios de comunicação social, previstos no art. 1°, inciso I, alínea d e art. 22, caput, ambos da mesma LC 64/90. Se a representação (designação dada à ação de direito processual) for proposta, no entanto, contra a captação ilícita de sufrágio, não incide o inciso XIV do art. 22 da LC 64/90, porque não está sendo manejada contra o abuso de poder econômico ou político. A sentença procedente, nessa última hipótese, aplica a sanção prevista no art. 41-A: a cassação de registro ou do diploma e a multa. E não se aplica a sanção de inelegibilidade cominada potenciada por quê? Porque ao fato jurídico ilícito de captação de sufrágio é irrogada, pela norma jurídica de direito material do art. 41-A, a cassação de registro de candidatura.

A captação de sufrágio gera o cancelamento do registro de candidatura, expurgando o candidato da eleição, através da ação de investigação judicial eleitoral. Mais do que isso: por não ser tratada como sanção de inelegibilidade – como seria próprio –, a decisão que cancelar o registro de candidatura não sofre a incidência do art. 15 da LC 64/90, sendo logo executada. Mais ainda: à captação de sufrágio basta o provar que houve a promessa de vantagem pessoal com a finalidade de obtenção do voto, sem necessidade de demonstrar a relação de causalidade entre o delito e o resultado das eleições. Assim, com todas essas facilidades, por que mais alguém iria manejar a AIJE visando a obter a inelegibilidade de algum candidato? Seria pura perda de tempo, uma vez que no abuso de poder não basta a prova do ato abusivo, mas a demonstração da probalidade de que este ato viciasse o resultado das eleições, tendo como resultado uma sentença que decretaria a inelegibilidade por três anos, mas não cassaria o mandato do candidato beneficiado (art. 22, inciso XIV da LC 64/90). Ora, é evidente que é muito mais efetivo um processo que casse o registro do candidato para essa eleição em que o ilícito se deu, do que um outro que mantenha o registro de candidatura e apenas decrete a inelegibilidade por três anos, enquanto o candidato eleito exerce o mandato obtido ilicitamente.

Assim, enquanto perdurar esse entendimento do TSE, acerca da imediata executividade da decisão que determina a cassação de registro em razão da captação ilícita de sufrágio, penso devam os candidatos, o Ministério Público e os partidos políticos ou coligações ajuizar a AIJE contra a captação ilícita de sufrágio, nunca – muita atenção a esse ponto – nunca pedindo a sanção de inelegibilidade, mas apenas o cancelamento do registro ou diploma. Com isso, se afastará a incidência do art. 15 da LC 64/90, e a decisão será imediatamente executada (isso se não for aplicado o parágrafo único do art. 56 da Resolução n° 20.993, de 2002). De todo modo, mesmo que incida essa norma regulamentar, os fatos que se subsumem ao conceito de abuso de poder econômico ou político e também se ajustem às inteiras ao conceito de captação de sufrágio, devem ser atacados por essa via mais efetiva, que vem a ser aquela sanção prevista no art. 41-A. De fato, a ação de investigação judicial eleitoral ganhará em força executiva, uma vez que não se aplicará, na hipótese de captação de sufrágio, o inciso XV da LC 64/90. Com isso, não haverá dependência de manejo de uma outra ação para que a decisão venha a mondar o mandato obtido ilicitamente.


5. À guisa de conclusão: a executividade imediata da cassação de registro de candidatura e o dano irreparável à democracia.

Sempre criticamos, em nossas obras jurídicas, o absurdo jurídico que é o inciso XV do art. 22 da LC 64/90, que tira a efetividade da sanção de inelegibilidade profligada contra aquele candidato eleito com abuso de poder econômico ou político. Todavia, a jurisprudência recente do Tribunal Superior Eleitoral foi de um extremo ao outro: ao interpretar o art. 41-A da Lei n° 9.504/97, deu à decisão judicial executividade imediata, cassando o registro de candidatura e o diploma independentemente do seu trânsito em julgado. A vontade do eleitor e a legitimidade do seu voto passam a ser irrelevantes para a Justiça Eleitoral: o candidato eleito pode agora perder o mandato por decisão judicial assujeitada ainda aos tribunais superiores, através de manejo de via recursal própria.

Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Nem a lenidade do inciso XIV do art. 22 da LC 64/90, nem tampouco a interpretação justiçosa atribuída ao art. 41-A da Lei n° 9.504/97. Ambas as posições pecam pelo excesso e são extremistas.

Basta imaginar, para justificar uma maior reflexão sobre o art. 41-A, as eleições municipais, onde o juiz eleitoral venha a ter relações com grupos políticos, ou alguma desestima pessoal com determinado candidato. Amasiado com o outro grupo político concorrente ao candidato eleito, cassa-lhe o diploma e empossa o segundo colocado nas eleições para o cargo de prefeito municipal. Quem fez o novo prefeito? Acaso foi o povo? Não, uma autoridade judiciária que não honra o seu elevado cargo público. O candidato eleito, desse modo, passa agora a correr processualmente para reverter a execução provisória da decisão, ficando com o ônus de dar movimento ao processo. O ônus do tempo passa a ser seu e da comunidade de votantes, que lhe outorgou o mandato.

De fato, o conceito de execução provisória está ligada à distribuição do ônus do tempo no processo. Historicamente, o procedimento ordinário sempre esteve ligado à busca da verdade real e definitiva, prisioneiro da ideologia burguesa da revolução francesa, em que a esfera jurídica do indivíduo apenas poderia ser manietada pelo Estado, após o amplo conhecimento da causa e a certeza advinda da coisa julgada material. Com isso, coube sempre ao autor o ônus do tempo no processo, ficando o réu beneficiado pela lenta marcha processual da cognição plena e exauriente. Com a sociedade de massa e suas demandas pela prestação de uma tutela jurisdicional mais célere, ainda que menos segura, aos poucos foi sendo mitigada a necessidade imperiosa de cognição plena, passando a ser admitida algumas ações em que a tutela fosse antecipada, como eram exemplos clássicos as ações possessórias, as quais tutelassem a chamada posse nova (de menos de ano e dia). Todavia, essas exceções apenas não bastavam. Na experiência brasileira, a demora do processo ordinário foi atalhada pelas liminares concedidas em ações cautelares, cuja satisfatividade e antecipação dos efeitos pretendidos com a ação principal eram evidentes. Tal foi o uso indiscriminado e excessivo das ações cautelares, que acabou sendo introduzida na legislação processual a antecipação de tutela (art. 273 do CPC), que na prática pôs fim ao rito ordinário: todas as ações passaram a admitir decisões liminares, tendo aquele sincretismo que tanto era objurgado pelos processualistas clássicos. Mesmo os limites dados à possibilidade de execução provisória da sentença, ainda sujeita a recurso, foram ampliados, conforme são exemplos notáveis o art. 588 e o § 3° do art. 461, ambos do CPC.

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A execução provisória, hoje, passou a ser o meio processual pelo qual melhor se distribui o ônus do tempo no processo, possibilitando ao autor que tem aparente razão o imediato resultado processual almejado, ficando para o réu o ônus de fazer andar o processo, com os recursos que lhe sejam de possível manejo. Essa é inspiração da execução provisória e da tutela antecipada, como bem ensina Sérgio Cruz Arenhart (et Luiz Guilherme Marinoni. Manual do processo de conhecimento – A tutela jurisdicional através do processo de conhecimento. São Paulo: RT, 2001, p. 475, passim): "O que parece não se enxergar é que se o tempo do processo deve ser visto como um ‘inimigo contra o qual o juiz deve lutar sem tréguas’ – como preconizou Carnelutti –, não é o autor que tem de suportá-lo, como se fosse o ‘culpado’ pela demora inerente à definição dos litígios. O medo de um juiz parcial, ou o receio de que a ‘liberdade’ do indivíduo pudesse ser ameaçada pelo juiz, cegaram os processualistas por um bom período de tempo para a obviedade de que o autor e o réu devem ser tratados de forma isonômica no processo. O que se quer dizer, em outros termos, é justamente que o processo que desconhece a tutela antecipatória e sujeita a sua sentença, incondicionadanente à confirmação de um segundo juízo, é um processo que beneficia o réu" (sic). Porém, dizemos nós, nem sempre se poderá autorizar a execução provisória, notadamente quando ela ocasione dano irreparável ou de difícil reparação, ou mesmo seja irreversível, bem assim quando o bem jurídico tutelado não seja a incolumidade da esfera jurídica do réu, mas sim o interesse público ou, como ocorre na seara eleitoral, a democracia e a legitimidade das eleições.

Nas ações eleitorais, o objeto litigioso nunca é de natureza privada, embora possa mediatamente beneficiar às partes envolvidas. Imediata e principalmente, todavia, o interesse tutelado é de natureza pública, dizendo respeito à legitimidade do prélio eleitoral, protegendo, como valor absoluto a ser perseguido, o respeito à vontade popular que livremente escolhe os representantes e dirigentes do povo. Como, nessa hipótese, se admitir a execução provisória da sentença, ainda sujeita a recurso, destituindo aquele candidato eleito – ainda que provisoriamente --, para colocar em seu lugar, exercendo o mandato eletivo, o segundo colocado nas eleições – ainda que também provisoriamente --, que não foi proclamado eleito, e que também ficará com a sua situação sub judice. Se for para alguém exercer o mandato eletivo, enquanto se discute judicialmente se a sua obtenção foi lícita ou não, que seja aquele proclamado eleito, escolhido pela maioria dos eleitores.

Não nos parece que a execução imediata da cassação do registro do candidato eleito, posto que o candidato ainda concorrendo está imunizado pela interpretação dada pelo TSE ao parágrafo único do art. 56 da Instrução n° 55, seja a solução mais justa e coerente. Não na é. Enfraquece a nossa democracia, empalidece a importância do voto, torna o eleitor mero coadjuvante em um filme no qual deveria ser o ator principal. Termina a Justiça Eleitoral agindo à Robespierre e seus seguidores, guilhotinando em juízos sumários, ou ainda sujeitos a recursos, os escolhidos pelo voto popular, entronando o segundo colocado e fazendo nenhum o significado de eleições livres, pois não se pode legitimamente apear do mandato aquele eleito, cuja decisão que desqualifica a licitude de seu mandato ainda está pendente de recursos, devendo ser apreciada por outra ou outras instâncias. Lembremo-nos, por oportuno, que a execução provisória é sempre a tutela da aparência e que, na seara eleitoral, não há aparência mais veemente do que aquela que sai das urnas: a expressão da vontade do eleitor, traduzida na proclamação do resultado da eleições pela Justiça Eleitoral.

É evidente que o art. 41-A é produto do desejo da sociedade brasileira por eleições limpas, como também por decisões judiciais efetivas. Esses desejos legítimos emantam o texto legal, ao tempo que deveriam também afastar aquelas interpretações excessivas, as quais confundem efetividade com execução provisória, bem como lisura eleitoral com macarthismo.

Esperamos que nossas reflexões sobre o art. 41-A da Lei n° 9.504/97 possam contribuir para um crescente debate sobre o excessos causados pela executividade provisória e imediata da sentença que o aplica, bem como para a formação de uma nova corrente jurisprudencial, que repense os pontos aqui tratados. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra.

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Sobre o autor
Adriano Soares da Costa

Advogado. Presidente da IBDPub - Instituição Brasileira de Direito Público. Conferencista. Parecerista. Contato: [email protected]

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Adriano Soares. Captação de sufrágio e inelegibilidade:: análise crítica do art. 41-a da Lei n° 9.504/97. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 56, 1 abr. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2909. Acesso em: 19 abr. 2024.

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