5. Posicionamentos doutrinários justificadores das condições da ação. Crítica
Às vezes, a sanha nos leva a lamentáveis equívocos. Osvaldo Afonso Borges considerou o indeferimento da inicial mera função público-administrativa de fiscalização da lei processual25; como se a "outra", a jurisdição propriamente dita, pudesse ser classificação de função público-administrativa de fiscalização da lei material (?); como se o direito objetivo fosse dois; como se a divisão formal/processual não fosse meramente didática; como se o juiz também não estivesse submetido à lei processual, o que levaria ao paradoxo de ser o juiz fiscal de sua própria atuação. A idéia, muito embora bem intencionada, data venia, deve ser desconsiderada.
Não tem razão Donald Armelin, quando tenta distinguir condições de ação e mérito:
"... a existência de uma esfera preliminar ao exame do mérito é o resultado da atuação de princípios de técnica e economia processual respaldados por lei. Com isso se objetiva impedir que processos oriundos de exercício irregular de um direito de ação ou de nenhum direito de ação (no sentido de direito a um exame de mérito) cheguem a se prolongar, ensejando decisões ineficazes ou rescindíveis, com manifesto prejuízo para todos, partes e órgãos jurisdicionais."26
A "atuação de princípios de técnica e economia processual" se dá de forma enviesada, pois ao "condicionar" o exercício do direito de ação a aspectos atinentes ao direito material, não o faz de forma a tornar tais decisões definitivas e imutáveis (coisa julgada material)27, possibilitando que se discuta em outros processos a mesma questão – quantas vezes quisermos, pois não implica perempção. Que economia é essa? Que forma mais troncha de se evitar "decisões ineficazes ou rescindíveis, com manifesto prejuízo para todos", não?
A utilidade da medida é a de um placebo.
Há quem ainda, na valorosa ânsia de buscar aplicabilidade e coerência ao instituto, para salvá-lo, elabora teorias que, em nível de direito positivo, são aplicáveis, embora permaneçam equivocadas.
Kazuo Watanabe e Flávio Luiz Yarshell defendem que as condições da ação devam ser aferidas de acordo com a afirmativa do autor na petição inicial, in statu assertionis – à vista do que se afirmou na petição inicial, abstraindo-se as possibilidades que se abrirão ao julgador no momento do juízo de mérito28. As condições da ação não seriam analisadas sumária e superficialmente, de forma a permitir-se uma outra análise por ocasião do saneamento:
"O que importa é a afirmação do autor, e não a correspondência entre a afirmação e a realidade, que já seria problema de mérito."29
A teoria não tem como vingar. Se o autor afirma, na inicial, que quer prestação alimentícia de seu amigo de infância, que brigou com ele depois de vinte anos de amizade, faltar-lhe-ia legitimidade para a causa; mas diria também o juiz, afirma Marinoni com acerto, que o autor não tem pretensão de direito material, e, por conseqüência, ação material30, na lição de Pontes de Miranda – o que é problema de mérito. Trata-se o caso de improcedência prima facie ou, como diria Marinoni, improcedência macroscópica. Os questionamentos exaustivamente feitos continuam sem resposta.
6. Outras terminologias
Com mais razão estão Barbosa Moreira e Hélio Tornaghi31, que de há muito vêm defendendo uma mudança na terminologia empregada por nosso código. Sugerem a expressão "condições do exercício legítimo do direito de ação", em substituição à nossa malsinada "condições da ação", pois, como já tentamos demonstrar, os referidos requisitos nada dizem quanto à existência do direito de ação (incondicionado), apenas quanto a seu exercício. No geral, não há reparos a fazer na lição dos mestres, que tentam, ao menos, emprestar um pouco de coerência ao instituto.
Watanabe32 tenta adequar a construção liebmaniana às suas convicções abstrativistas, ao denominá-las de condições para o julgamento do mérito da causa.
Belas construções, sem dúvida. Mas são paliativos ou meras correções redacionais.
Como pretendemos ser um tanto quanto iconoclastas, não nos servem em nível de especulação científica – tão-somente, como frisamos, nos servirá para efeitos de análise de direito positivo. Não há razão em se estabelecer uma terceira categoria processual, tampouco em erigir as ditas condições da ação – que como já fizemos antever, ou dizem com o mérito, ou são pressupostos de existência e desenvolvimento válido do processo, a depender de como se as encarem –, de forma estanque, em requisitos para o exercício legítimo da ação, pois em última análise, os casos de litigância de má-fé também seriam situações de exercício legítimo do direito de ação. Muito embora dogmaticamente aceitável e de muitos méritos pela coerência, as teorias não enfrentam a questão da coisa julgada material e não pugnam pela extinção da categoria – pontos, para nós, fundamentais. É, entretanto, repita-se, o que há de melhor em se tratando de terminologia e coerência. Pela iniciativa, aplausos.
7. É possível falar-se em exercício irregular do direito de ação ou de nenhum direito de ação?
É possível falarmos em "exercício irregular do direito de ação ou de nenhum direito de ação"33, quando não são preenchidas as malditas condições da ação? Não. Para ser exercido irregularmente, é necessário que, em primeiro lugar, ele exista; não há, então, como defender que o autor careceria de ação – seria um contra sensu. Com toda razão Tornaghi quando afirma que de carência de ação se falaria com propriedade se se entendesse que a própria existência do direito de ação depende daqueles requisitos.
Que pode haver exercício abusivo ou irregular do direito de ação, como de resto com qualquer espécie de direito, é, a nosso ver, induvidoso. Mas não se justifica que, contrariando princípios de lógica comezinhos, se diga que o autor terá carecido do direito de ação e, ao mesmo tempo, terá abusado dele.
A expressão "êxito da ação" cunhada por Liebman é cabível? Também não, por óbvio. A ação sempre terá êxito, porquanto, pelo menos, haverá pronunciamento jurisdicional sobre a ausência de requisitos legais para que o processo prossiga. Se condições da ação são esses requisitos, para que o mérito da lide seja apreciado (para que o processo vá adiante, até seus ulteriores termos), o que seria, então, o espaço de tempo que medeia a propositura da ação e o despacho saneador ou extinção liminar do processo? Nada? Zona cinzenta? Não houve acionamento do aparelho jurisdicional estatal? O juiz não aplicou o direito objetivo? Que espécie de atividade o juiz realizou? Não houve jurisdição? Não houve processo? Então fica combinado: vamos fazer de conta que nada aconteceu e fenômenos induvidosamente jurídicos ficarão sem explicação. "Pare o mundo que eu quero descer...", diria um poeta baiano.
Podemos falar, portanto, em possibilidade de não existir direito de ação? Diante de nosso ordenamento, que consagra o acesso à justiça em sede constitucional; que acolhe a teoria abstracionista, desvinculando o direito de ação do direito material; que veda, em regra, a instauração de processo de ofício, entre outras considerações que vimos fazendo, em nosso sentir, é conclusão a que jamais podemos chegar.
Trata-se de fato inegável, portanto, que, quando haja extinção do processo sem julgamento do mérito, haverá exercício do direito de ação assim como jurisdição, pois se aplica o direito ao caso concreto, ainda que para dizer que o autor não preencheu determinadas condições ou requisitos impostos pela lei processual (também direito) para que o processo prossiga regularmente.
O dizer-se abstrato e autônomo o direito de ação já elimina qualquer possibilidade de falarmos em êxito ou fracasso da ação, pois se o processo, p. ex., for extinto por vício de forma, terá havido ação; se o processo tiver sido extinto por ausência de uma das condições da ação, também terá havido ação, pois o Estado, obrigado a manifestar-se sobre a pretensão deduzida, que também possui caráter processual, cumpriu o seu ofício, aplicando o direito objetivo (direito processual, que seja) ao caso concreto.
Com razão, ainda, Theodoro Jr.34, quando pontua o equívoco das expressões "ação procedente" e "ação improcedente", mesmo para os adeptos da teoria do eminente mestre de Pávia, pois:
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a) procedência e improcedência são termos atinentes ao pedido (um dos elementos da causa);
-
b) uma vez admitida a ação, segundo a teoria dominante, quando presentes as suas condições, não mais se questionaria da sua procedência, pois direito à prestação jurisdicional não se confunde com a existência do direito material, como queriam fazer crer os concretistas;
-
c) como já fizemos crer, não há, simplesmente, que se falar em procedência ou não da ação, pois em qualquer caso o Estado haverá de pronunciar-se sobre a demanda, ou seja, sempre a ação terá procedência.
8. As categorias processuais: pressupostos processuais e mérito. A equivocidade da expressão condição de ação
Os adeptos da teoria dominante entendem que a categoria "condições da ação" é estranha ao mérito, tampouco pertencendo à órbita dos pressupostos processuais. Constituir-se-ia, na lição de Adroaldo Furtado Fabrício, em um círculo concêntrico intermediário entre o externo, correspondente às questões puramente formais, e o interior, representativo do mérito da causa35.
Hoje não mais se discute sobre a existência de duas esferas bem distintas: a processual e a material36. Não mais se discute, também que a ação pertence à esfera do processo, bem como é um direito abstrato e autônomo em relação ao direito material a que está conexo e a que serve de instrumento de realização – e não há confundir, como diz Marinoni, instrumentalidade do processo e neutralidade do processo em relação ao direito material.
Partindo destas premissas, não nos parece razoável entender como pode estar condicionado o exercício do autônomo e abstrato direito de ação a elementos que hão de ser verificados no direito material: seja o seu respaldo no ordenamento jurídico, seja a sua titularidade. Entre questões de mérito e questões de rito não há uma terceira espécie, porque todas as questões ou são regidas pela lei processual ou pela lei material. Sem qualquer razão, portanto, Liebman, quando identifica as "condições da ação" com categoria intermediária entre os pressupostos processuais e o mérito.
Sendo a ação, induvidosamente, um instituto processual, não nos é aceitável que se pretenda reposicioná-lo como se fosse realidade distinta deste, como se pertencesse a outro mundo. Sejamos mais claros: aquilo que se poderia (mera conjectura) entender como condição da ação, em análise mais precisa, seria pressuposto de processo. A diferenciação entre um e outro, para nós, portanto, é descabida. E diz mais o professor baiano Calmon de Passos, em sucinto arremate:
"... é injustificável que se desvinculando a existência do direito de ação da existência do direito material se persista no falar em condições da ação, como se ela fosse condicionada."37
A existência desta categoria processual autônoma, distinta e descabida, afora todos os senões de ordem dogmática que já tentamos expor, encerra o prejuízo do equívoco que sugere, pois "compromete o legislador, o magistrado ou o estudioso com uma concepção do direito de ação em face da qual, e somente em face da qual, o termo seria aceitável e explicaria algo"38, ensejando sérios e desnecessários equívocos. O jurista trabalha apenas e tão-somente com palavras, que sofrem, por sua própria natureza, da pobreza da linguagem; o cuidado com elas – com o "falar", na prédica de Tiago –, apresenta-se, pois, como em poucos outros ramos do conhecimento, imprescindível. O instituto, enfim, não se justifica. Até quando, ó Catilina, até quando?
9. Carência da ação e improcedência: importância da distinção conceitual para efeitos da produção de coisa julgada material. Reposicionamento dogmático das chamadas condições da ação. Conclusão.
Como a impossibilidade jurídica do pedido, a ilegitimidade ad causam e a falta de interesse processual são realidades jurídicas – e estão previstas em nosso ordenamento –, a sua simples desconsideração não seria a atitude correta de um estudioso. O erro não consiste na sua identificação, mas, sim, no seu enquadramento em nova ou diversa categoria, o que, para além da mera terminologia, sempre acarreta terríveis males, pois se emprestam a essas realidades atributos que ou não possuem ou não merecem.
O que hoje se entende como condição da ação ou é mérito (legitimidade ad causam e possibilidade jurídica do pedido) ou é, no mínimo, pressuposto processual (interesse de agir) – há quem, como Marinoni, entenda que também quanto ao interesse de agir se estaria analisando o mérito.
A distinção conceitual entre carência de ação39 e improcedência, criticada, em razão de suposta inocuidade, por Chiovenda, como bem lembra Barbi (que não se posiciona conclusivamente a respeito), tem importância fundamental, pois os regimes de produção de coisa julgada material, em nosso direito, para ambas, são distintos. Nosso legislador se utilizou de terminologias distintas para identificar situações materialmente iguais: a sentença que declara a carência de ação (por ilegitimidade de parte e impossibilidade jurídica do pedido, ao menos) é ontologicamente igual àquela que julga o pedido improcedente. E o equívoco da terminologia diversa levou ao equívoco do tratamento também diverso quanto à produção de coisa julgada material – o que não se justifica40.
No caso de carência de ação por falta de interesse processual, a situação, conquanto distinta, para alguns, leva-nos à conclusão semelhante. Ora, se entendermos que a carência de interesse processual, como é conhecido, leva a uma análise puramente processual, não é razoável que se elabore uma nova terminologia para identificar tal situação, porquanto plenamente subsumida àquela em que o processo é extinto pela ausência de pressupostos processuais de formação ou desenvolvimento válido e regular do processo41.
São inúmeros, portanto, os prejuízos causados à conquista social do direito de ação constitucionalmente assegurado, hoje induvidosamente incondicionado. Vincular, de qualquer forma, o direito de ação ao direito material é retrocesso. Em tempos em que se considera o direito de ação como garantia constitucional, direito político mesmo, pois consubstancia a participação do cidadão no processo de formação de uma manifestação do poder estatal – dizer e aplicar o direito – falar em condições da ação soa como um triste lamento nostálgico.
Não fossem apenas os inúmeros equívocos que sugere, o instituto até hoje não foi bem explicado pela doutrina, que, para justificá-lo, constrói teorias frágeis e que nos causam, a todo momento, perplexidades, pois não as conseguimos aplicar na prática.
O primeiro passo para a solução destes problemas seria banir o instituto da legislação – deixando-o à deriva, em busca de algum doutrinador que o acolha em seguro porto, o que certamente ocorreria... Talvez seja exigir demais. Talvez não.