10. Considerações iniciais sobre a possibilidade jurídica do pedido.
Tida por Moniz de Aragão como "um dos aspectos menos versados da teoria da ação"42 e por Calmon de Passos como "uma invenção nacional"43, a possibilidade jurídica do pedido é, sem sombra de dúvida, a mais esdrúxula e despropositada das condições da ação.
Em substituição à categoria denominada por Chiovenda de "existência do direito" (fiel ao concretismo), também considerada como condição da ação, criou Enrico Liebman a possibilidade jurídica do pedido, com a manifesta preocupação de extremá-la do mérito – talvez por isso se tenha utilizado da palavra "possibilidade", que denota aquilo que pode ser, e não aquilo que necessariamente será.
Como nos informa o dileto discípulo do mestre italiano, o prof. Cândido Dinamarco, tendo sido permitido o divórcio na Itália, em 1970, a partir da 3ª edição do Manuale, Liebman retirou a possibilidade jurídica do rol das condições da ação, pois esse, o divórcio, era o principal exemplo de impossibilidade jurídica da demanda, passando a integrar o conceito de interesse de agir44.
Não obstante tenha o próprio criador revisto a sua teoria, o nosso Código a adotou, ainda que de forma assistemática, como vimos, e cá estamos a debatê-la, para ao menos aprimorá-la ao que hoje se entende e espera do processo.
11. Nosso posicionamento anterior. Evolução.
Em estudo anterior, defendemos, como forma de adequação da "invenção" ao nosso ordenamento, uma sua subdivisão: impossibilidade absoluta e impossibilidade relativa; a primeira seria o antijurídico ou "ajurídico", o pedido manifestamente proibido pelo ordenamento ou fora dele, como, p. ex., matar alguém e pedir um terreno na lua; quando à segunda, seria mera improcedência, pois não é propriamente o pedido que torna impossível a sua pretensão, mas, sim, a sua causa de pedir: p. ex., o usucapião de bem público. Defendíamos, que, no segundo caso, a sentença que extinguisse o processo haveria de produzir coisa julgada material, por entendermos não haver distinção entre esta modalidade de impossibilidade jurídica e a improcedência como a conhecemos – aqui, examinando a pretensão, o juiz repele-a, pois não a sustenta o direito. Já recomendávamos a expulsão da possibilidade jurídica do pedido como condição da ação, devendo esta integrar (em sua modalidade absoluta, pois a relativa seria improcedência), como queria o próprio Liebman, o conceito de interesse processual45.
Reformulamos parcialmente nosso entendimento; pensamos melhor sobre o tema. Consideramos que, outrora, fomos muito tímidos.
Com efeito, a distinção que fizemos, conquanto interessante para fins didáticos, na prática, não deveria implicar diversidade de tratamento. A possibilidade jurídica do pedido não é condição da ação, e nem poderia ser, pois atine ao próprio exame do direito material: não há correspondência entre o fato alegado pelo autor com o fato legalmente previsto como embasador de sua pretensão; a fattispecie legal não incide na fattispecie material; a análise, pois, é de mérito.
12. Direito positivo. Crítica.
Quando se pede, em países que não permitem o divórcio46, a dissolução do vínculo matrimonial, está-se a pedir algo que o direito positivo repele; quando se pede uma determinada indenização, e o pedido foi julgado improcedente, a ordem jurídica também o repeliu. Qual a diferença, então? Ontologicamente, nenhuma.
Quando o autor afirma na inicial de uma ação de usucapião que possui determinado bem imóvel por apenas dois anos, é caso de impossibilidade jurídica do pedido (exemplo clássico na doutrina); se o mesmo autor tivesse alegado na inicial que possuía o imóvel há 25 anos, e o tempo de posse fosse comprovado, ao longo da audiência, insuficiente para a usucapião, extinguir-se-ia o processo com julgamento do mérito. Há diferença entre essas duas situações? Ontologicamente, também não47.
Sucede que, por razões de economia (?), se convencionou extinguir as demandas em que houvesse manifesta inviabilidade jurídica do pedido, de logo vista quando do exame da petição inicial. Correta a intenção do legislador? Sim, sem dúvida. Pitoresca a solução? Novamente sim, sem quaisquer resquícios de dúvida.
Ora, a improcedência macroscópica é apenas a forma mais avultante de improcedência, e por isso deve ser tratada com mais rigor – como já acontece com os casos de decadência e prescrição. Nosso direito, estranhamente, considera rigor excessivo a extinção prematura do processo sem julgamento do mérito. "– Não vamos permitir que o aparelho jurisdicional se movimente em razão de um pedido manifestamente repelido pelo ordenamento." O curioso é que essa medida economicamente esqueceu-se do mais elementar antídoto contra a proliferação de demandas judiciais: a coisa julgada material.
Quando a inviabilidade jurídica é manifesta, é caso de improcedência prima facie, com extinção do processo com julgamento do mérito, à semelhança do que ocorre quando verificadas a prescrição ou a decadência, as quais, não obstante se configurem como exemplos de inépcia da inicial (que é causa de extinção do processo sem julgamento do mérito), geram extinção do processo com julgamento do mérito, produzindo coisa julgada material. Cabe a remissão ao quanto já discorremos sobre a matéria:
"Diria o juiz, preliminarmente, ao autor, novamente de forma vulgar, mas ilustrativa: '– Beltrano, não permitirei o prosseguimento do feito, pois já sei que julgarei tua pretensão pela improcedência'. Que julgue, então, ora bolas! O direito de ação consiste exatamente em obter uma decisão do Poder Judiciário sobre a matéria; e não necessariamente uma decisão pelo acolhimento do pedido."49
Para fundamentar nossa posição, em princípio, permaneceremos apenas no plano lógico. É razoável imaginar a situação em que o magistrado extingue o processo, dizendo que não está examinando o mérito, porque o pedido (direito material; mérito, pois) do autor é juridicamente inviável? É razoável imaginar, ainda no mesmo plano lógico, que o nosso ordenamento jurídico permite que se extinga o processo por impossibilidade jurídica do pedido, por razões de economia, mas permita que se o repita, pois não veda o ingresso de nova e idêntica ação, bem como não empresta a essa decisão força de coisa julgada material?
Ao pensarmos em sentido contrário, chegaríamos ao paradoxo de conceber a possibilidade de o autor, que tivera seu processo extinto por ausência desta condição da ação, poder repeti-lo, quantas vezes o seu bel prazer assim o desejar, pois sequer perempção ensejaria a sua atitude.
Ademais, seria erro primário questionar-se sobre a possibilidade de proposição de nova demanda, em caso de preenchimento de determinado requisito (como queria Theodoro Jr., pois haverá ocorrido mudança na tríplice identidade, portanto nova ação, não ensejando coisa julgada material. E lembra ainda Furtado Fabrício que alguma ulterior alteração dos dados de fato, ou possível superveniência de ius novum, pudesse elidir essa nossa conclusão, pois ocorrendo quaisquer dessas modificações, a ação também já não será a mesma, pois diversa a causa de pedir49.
13. A possibilidade jurídica como concessão à concepção concretista do direito de ação.
A existência da possibilidade jurídica do pedido como condicionadora da ação é uma concessão ao antigo pensamento de Wach e Chiovenda, que vinculava a existência do direito de ação à existência do direito material. Com toda razão, portanto, Calmon de Passos e Marinoni, quando afirma que o pensamento de Enrico Liebman é restritivo, à semelhança dos concretistas, podendo ser colocado ao lado deles, expressando um meio termo entre a concepção tradicional e a concepção abstrata50.
A verdade é uma só: a possibilidade jurídica do pedido foi uma grande falha, que originou outras tantas. Não obstante a reformulação do pensamento de Liebman; a incoerência de posicionamento do nosso código (cf. item 2), que conquanto tenha seguido a doutrina de Pávia, cometeu alguns "escorregões"; a inviabilidade de se condicionar um direito que é abstrato e autônomo a um outro direito, o material, a que serve de instrumento de realização, como queriam os concretistas; o sofisma de afirmar-se que não se entra no mérito quando há carência de ação em razão da ausência desta condição,
"os doutrinadores nacionais continuam a tentar explicar, herculeamente e com olhos postos no texto da lei, a possibilidade jurídica do pedido como condição da ação, elaborando, para tanto, construções teóricas tão mais mirabolantes quanto infirmes"51.
14. Posições doutrinárias explicativas da possibilidade jurídica do pedido. Crítica.
Vejamos Rodolfo de Camargo Mancuso, quando tenta justificar a possibilidade jurídica do pedido:
"Normalmente, a possibilidade jurídica do pedido é concebida como a necessidade da previsão, in abstracto, no ordenamento jurídico, da pretensão formulada pela parte. O que bem se compreende porque, sendo nosso sistema jurídico filiado à legalidade estrita, cabendo ao juiz fazer a subsunção do fato à norma (da mihi factum dabo tibi jus), tal atividade ficaria inviável, à míngua de texto legal que previsse, mesmo que genericamente, a pretensão formulada pelo autor"52.
Para nós, trata-se de uma explicação sobre possibilidade jurídica paradigmática: não explica nada, apenas elenca frases lugares-comuns para justificar o injustificável.
O primeiro dos equívocos está na conceituação – o calcanhar de aquiles da doutrina nacional. A possibilidade jurídica do pedido não seria a "previsão, in abstracto, no ordenamento jurídico, da pretensão formulada pela parte", pois, como bem explica o prof. Moniz de Aragão, citado, curiosamente, também pelo próprio autor:
"A possibilidade jurídica, portanto, não deve ser conceituada, como se tem feito, com vistas à existência de uma previsão no ordenamento jurídico, que torne o pedido viável em tese, mas, isto sim, com vistas à inexistência, no ordenamento jurídico, de uma previsão que o torne inviável"53.
Eduardo Oliveira complementa o pensamento do professor paranaense, para abarcar, também, as hipóteses em que o ordenamento não permita o pedido expressamente, como nos casos de permissões numerus clausus, quando haveria tanta proibição quanto o veto explícito54. É a aplicação direta do princípio ontológico do direito. Que cabe "ao juiz fazer a subsunção do fato à norma" é duvidoso, pois o que entendemos é que a ele cabe verificar se o fato se subsume à norma – quando há norma –, o que é diferente.
A subsunção do fato à norma ocorre quando há procedência do pedido; em caso de improcedência (impossibilidade jurídica do pedido ser atendido), não houve subsunção, direta ou por algum dos processos de integração, e exatamente por isso houve improcedência. Dizer que "tal atividade ficaria inviável, à míngua de texto legal que previsse" – e queremos entender que o autor se refere à jurisdição – é manifesto equívoco, pois distorce a função jurisdicional, limitando-a apenas aos casos de procedência, o que nem mesmo Liebman fê-lo. Enfim, ao dizer que o pedido é juridicamente impossível, o julgador aplica a norma de direito material, pois é lá que ele verifica a impossibilidade – e essa aplicação também é jurisdição.
Cândido Dinamarco, brilhante jurista e discípulo dileto de Liebman, elaborou construção teórica para tentar melhor aplicar a possibilidade jurídica do pedido, por nós seguida, em parte, no estudo anterior. Demonstra, o eminente professor paulista, que a impossibilidade jurídica deve estender-se para os casos em que, embora previsto o pedido no direito positivo, haja uma ilicitude na causa de pedir, como ocorre nos casos de cobrança de dívida de jogo: a cobrança de dívida pecuniária é possível; a antijuridicidade decorre de vício na origem do crédito. O conceito haveria de ser entendido como impossibilidade jurídica da demanda56.
Embora coerente com seus princípios e bem intencionada, a construção não explica os questionamentos por nós já formulados: quando averiguamos a ilicitude da causa de pedir57, estamos inspecionando o próprio direito material; não é algo que está à sua margem. A relação jurídica a ser composta tem como elementos os sujeitos, o objeto (o pedido) e o fato propulsor; quando se analisa o fato está-se analisando, também, o direito material. Além disso, a própria expressão "impossibilidade jurídica da demanda" é equívoca, porquanto não explica que espécie de fenômeno ocorreu até o momento em que essa impossibilidade fosse declarada. Por fim, também aqui não se justifica que se extinga o processo sem julgamento do mérito. Se a demanda é impossível, continuará a ser impossível, devendo, por isso, o Legislativo emprestar a essa decisão as qualidades de imutabilidade e indiscutibilidade. Conceitualmente, não há como diferenciar a hipótese de inexistir previsão legal ou esta existir para hipóteses de fato distintas; em ambos os casos, a conseqüência é a mesma. Não há, finalmente, como separar a análise da possibilidade jurídica do pedido da análise da causa petendi. Para quem, entretanto, quiser continuar aplicando a possibilidade jurídica do pedido, a teoria terá a sua utilidade.
Um passo à frente das outras, mais coerente e corajosa é a linha de pensamento adotada pelo prof. Humberto Theodoro Jr., não menos prenhe, entretanto, de certos equívocos.
Em breve síntese do seu pensamento, podemos elencar as seguintes conclusões:
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a) o entendimento generalizado na doutrina brasileira, de que o exame da possibilidade jurídica deve ser feito sob o ângulo da adequação do pedido ao direito material, é equivocado, pois o cotejo do pedido com o direito material só pode levar a uma conclusão de mérito (funda-se, o autor mineiro, em posição de Allorio);
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b) a possibilidade jurídica do pedido deve ser restringida a seu aspecto processual;
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c) como, ao ingressar em juízo, o pedido formulado pelo autor é dúplice (imediato, contra o Estado, que se refere à prestação da tutela jurisdicional; mediato, contra o réu, que se refere à providência material que se pretenda aplicar), a análise da possibilidade jurídica do pedido deve ser localizada no pedido imediato;
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d) cita como exemplo de impossibilidade jurídica a ação de acidente do trabalho, sem a discussão prévia da questão na esfera administrativa;
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e) diz que a distinção dos pedidos foi agasalhada pelo nosso Código, no art. 295, parágrafo único, ao cuidar dos casos de indeferimento da inicial;
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f) quando "da narração dos fatos não decorrer logicamente a conclusão"58, seria impossibilidade de direito material, com extinção do processo com julgamento do mérito;
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g) quando o "pedido for juridicamente impossível", seria impossibilidade jurídica de ordem processual, extinção do processo sem julgamento do mérito, pois o juiz diz que o pedido de tutela jurisdicional é insuscetível de apreciação59.
Como já dissemos, concordamos com o fato de a discussão sobre a possibilidade jurídica do pedido estar equivocada; de que a extinção do processo, nestes casos, deveria produzir coisa julgada material, porque decisória da lide; de que a análise, à luz do direito positivo, da possibilidade jurídica deverá ser puramente processual, e que há, de fato, uma divisão didática dos pedidos.
Para mantermo-nos em linha coerente, contudo, não podemos aceitar a viabilidade lógica de o chamado pedido imediato ser recusado. Que natureza possui o ato do juiz que extingue o processo, nestes casos, senão a de sentença, provimento jurisdicional, pois? Se o pedido imediato se refere à prestação da tutela jurisdicional, qualquer que seja ela, jamais o Estado poderia negar-se a prestá-la: rejeitando a inicial, ou julgando procedente ou improcedente o pedido, o magistrado estará cumprindo a sua missão de "jurisdizer", que é inescusável. O Estado, uma vez acionado, sempre haverá de manifestar-se; ou seja, sempre haverá a tutela jurisdicional, o que nos leva à conclusão de que o "pedido imediato" jamais será "insuscetível de apreciação", jamais será impossível.
Sérgio Gischkow e Eduardo Ribeiro de Oliveira60, com propriedade, levantam mais um obstáculo ao pensamento de Theodoro Jr., afirmando que se ter em conta apenas o pedido imediato, sem se considerar o bem da vida que se pretende assegurar, não permite conclusão alguma sobre a possibilidade jurídica; a análise deve ser feita sob o aspecto do pedido mediato. Até porque, completamos, a distinção entre os pedidos mediato e imediato é meramente didática, não se referindo a ela o Código em nenhum momento, máxime quando regula o pedido (arts. 286. e segs., CPC). Justificar a possibilidade jurídica do pedido, com este fundamento, nos parece, pois, arbitrário.
Estamos, ainda, com Calmon de Passos61 e Furtado Fabrício62, ao defenderem que quaisquer das hipóteses de impossibilidade jurídica do pedido, seja a contida no inciso II, seja a contida no inciso III do art. 295, CPC, redundam em sentença declaratória de impossibilidade jurídica, denegatória do bem da vida pretendido, cujos efeitos devem ser os da coisa julgada material. A distinção feita por Theodoro Jr., portanto, não tem pertinência.
Ademais, o exemplo de impossibilidade sugerido pelo professor da Escola de Minas não se aplica ao conceito de impossibilidade, pois o que haveria, naqueles casos, é ausência de interesse processual, pois a intervenção do Estado-juiz ainda não se faz necessária, porquanto caibam as vias administrativas. Pode-se dizer, sem medo, que se trata de um exemplo clássico de ausência de interesse de agir – e ressalte-se que consideramos o interesse de agir, como hoje se entende, como pressuposto processual. Fabrício, sem identificar com o interesse processual, comunga conosco quando afirma tratar-se de um pressuposto processual extrínseco, o que nos parece corretíssimo. O Estado não analisará se o autor possui ou não razão, até que as vias administrativas estejam esgotadas – opção legislativa. Trata-se de uma análise puramente processual, que em nada diz com o pedido, tampouco podendo ser alçada à categoria de condicionadora da existência do direito de ação.
A tentativa do mestre é válida, pois se predispõe a distinguir, com precisão, as esferas do mérito e do processo, defendendo, inclusive, ser a análise da possibilidade jurídica, como vem sendo feita, uma análise de direito material – o que é inegável avanço, no pudico mundo jurídico em que vivemos. Mas, de acordo com o ponto de vista que adotamos sobre os conceitos de ação e jurisdição, já amplamente demonstrados, os quais reputamos como dogmaticamente mais aceitáveis, a construção é imprestável. Para quem defende a possibilidade jurídica do pedido, porém, será útil.