Ética e Serviço Público - Anotações sobre a responsabilidade ética e jurídica de servidores públicos e empresários quando envolvidos em esquema de corrupção: caso prático

06/06/2014 às 07:25
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Pretende-se analisar a responsabilidade ética e jurídica de conduta hipotética de servidor público preso em flagrante com quantia vultosa de dinheiro no porta-luvas do carro, fruto de negociação com empresários para favorecimento em licitações Públicas.

Palavras-Chave:  Ética. Serviço Público. Responsabilidade Ética. Ética do Dever. Ética Utilitarista. Responsabilidade Jurídica. Código de Ética Profissional do Servidor Público Civil Federal. Código Penal.

Sumário: 1. Introdução. 2. Justificativa. 3. Da responsabilidade ética. 4. Da responsabilidade jurídica. 5. Conclusão.

1. Introdução

No presente estudo será analisada a conduta hipotética de servidor público preso em flagrante com quantia vultosa de dinheiro no porta-luvas do carro. No caso em análise, servidor público recebe quantia de empresários em troca de favores para aprovação de licitações públicas.

Diante do caso ora descrito, faremos a análise da responsabilidade ética e jurídica do servidor público envolvido, e dos empresários pelos atos praticados.

Quanto à responsabilidade ética, serão analisadas as suas repercussões à luz de duas dentre as principais vertentes do pensamento ético – ética do dever e ética utilitarista.

Quanto à responsabilidade jurídica serão consideradas as normas do Código de Ética Profissional do Servidor Público Civil do Poder Executivo Federal e do Código Penal Brasileiro a fim de se analisar a situação penal dos empresários e do servidor público.

2. Justificativa

O caso prático que se propõe analisar retrata com similaridade o que se observa nos telejornais corriqueiramente: servidores públicos presos em razão de atos de corrupção.

O tema é debatido com grande frequência em todos os meios sociais - família, no trabalho, escola, etc. -, pois além de ser penalmente reprovada, a corrupção não é a conduta esperada do servidor público, eis que a sociedade deposita neste confiança na prestação do serviço, dignidade e honestidade.

Espera-se, à luz do que se propõe discorrer, conseguir contribuir para o desenvolvimento do tema.

3. Da responsabilidade ética

Ao analisar o caso concreto, a primeira constatação que surge é a de que a conduta do servidor não foi a esperada por quem presta serviço público. Na verdade, a conduta do servidor vai contra os valores universais honestidade, bem, justiça, dignidade e decoro.

Essa conduta do servidor, que vai contra os referidos valores universais, tão caros e preciosos para nossa sociedade, é uma conduta imoral e antiética, na medida em que realiza anti-valores (corrupção).

Não só a conduta do servidor é moralmente reprovável. Os empresários também agiram de forma antiética ao dar a “comissão” em dinheiro a servidor público para obter favorecimento em licitações.

Essa é a constatação sob o prisma de qualquer das grandes linhas de pensamento ético (Ética da Virtude, Ética do Interesse ou Utilitarismo, Ética do Dever e pela Ética da Situação ou Relativismo).

Considerando a doutrina da Ética do Dever, de Immanuel Kant, o servidor público envolvido e os empresários agiram no esquema criminoso movidos por interesses egoístas. A ação de todos eles foi apenas meio para atingir um fim pessoal (auferir vantagem pecuniária).

No caso analisado, a intenção do servidor público não estava pautada em princípios universais (honestidades, dignidade, decoro), e é justamente nessa intenção do agir de cada um que a Ética do Dever observa se a conduta foi ética ou antiética.

Para Kant, o valor moral de uma ação reside na sua intenção. Se esta intenção é boa, a pessoa agiu por dever e, por consequência, realizou um valor moral. Isso é o que anota Horácio Freitas sobre a teoria Kantiana em “E. Kant e a ética do dever”[1]:

(...)

A sua acção foi apenas um meio para atingir um fim pessoal. Segundo Kant, não agiu por dever e portanto não agiu moralmente bem. O valor moral de uma acção reside na intenção. Daí que seja importante distinguir moralidade de legalidade. Se a moralidade caracteriza as acções realizadas por dever, a legalidade caracteriza as acções que estão em conformidade com o dever, mas que podem muito bem ter sido realizadas com fins egoístas. Segundo Kant, é, portanto, o sentimento do dever, o respeito pela lei moral, que nos deve determinar a agir.

(...)

 

Da mesma forma do servidor envolvido, a intenção dos empresários também não estava pautada em princípios universais (honestidades, dignidade, decoro). A aprovação de licitações em benefício próprio mostra claramente o interesse egoístico dessa ação: ganhar dinheiro de forma desonesta, excluindo a competição que é o objetivo principal de qualquer procedimento licitatório, de modo a se conseguir a melhor relação de preço versus técnica para a administração pública, de modo a se alcançar uma aplicação responsável do erário.

Nesse esteira, os personagens do caso não agiram segundo a ética kantiana, pois foram movidos por interesses particulares/subjetivos, e não por dever moral. Nesse sentido explica Júlio Sameiro[2] que “O indivíduo tem na sua razão o critério dos deveres: pensando desinteressada e imparcialmente ele sabe o que é o dever.”. O servidor público, por certo, não agiu por dever.

De igual sorte, sob a perspectiva da Ética Utilitarista, ou Ética do Interesse, cultuada por John Studart Mill, o servidor público envolvido no caso em estudo e os empresários também não agiram eticamente.

Segundo a Ética Utilitarista, uma conduta ou uma ação humana é considerada justa e ética quando ela traz mais felicidade do que sofrimento àqueles que serão atingidos por essa conduta. Dessa forma, para o Utilitarismo de Mills, é ética a ação humana que se realiza no interesse e no benefício da maioria.

É isso que anota Horácio Freitas[3] sobre o pensamento de Mill:

(...)

Para que o indivíduo saiba discernir as boas das más acções, isto é, para que possa justificar devidamente as suas escolhas, é preciso encontrar um critério geral de moralidade. Este critério é apresentado por Stuart Mill do seguinte modo: "O credo que aceita a utilidade, ou Princípio da Maior Felicidade, como fundamento da moralidade, defende que as acções estão certas na medida em que tendem a promover a felicidade, e erradas na medida em que tendem a produzir o reverso da felicidade. Por felicidade, entende-se o prazer e a ausência de dor; por infelicidade, a dor e a privação de prazer." (Grifo nosso)

(...)

Como se observa, a conduta do servidor público e dos empresários envolvidos em nada toca a felicidade humana, na medida em que os sentimentos nobres de honestidade, retidão, dignidade e decoro, que são buscados pelo homem para alcança-la, são deixados de lado. Sob a ótica da Ética Utilitarista, fraudar uma licitação pública produz (traz como consequência) um sentimento e uma repulsa contrária a felicidade de todos. Causa mais infelicidade para a maioria (a sociedade toda perde) do que para o pequeno grupo beneficiado (servidores e empresários).

A Ética Utilitarista se lastreia na consequência da conduta humana, diferentemente da Ética do Dever que se preocupa com a intenção da conduta, independente do resultado. Se o resultado da ação humana for favorável a uma maioria, ela é ética para Mills, na medida em que “causa” felicidade a um maior número de pessoas.

Nessa medida, é do interesse de toda a sociedade o bom funcionamento do serviço público, e que os servidores públicos ajam com a dignidade, o decoro, o zelo, a eficácia e a consciência que seus comportamentos e atitudes serão direcionados para a preservação da honra e da tradição dos serviços públicos. Atos de corrupção e desvios de condutas causam consequências negativas para toda a sociedade, produzindo um efeito reverso a felicidade buscada para um agir ético.

4. Da responsabilidade jurídica

Nesse ponto, as consequências jurídicas das condutas do servidor público e dos empresários serão analisadas em separado, pois cada um gera uma consequência jurídica diferente.

Quanto ao aspecto penal, a conduta do servidor público ao receber dos empresários vantagem pecuniária em troca de favores para aprovação de licitações públicas encontra-se tipificado no art. 317 do Código Penal - CP no crime de corrupção passiva:

Corrupção passiva

Art. 317 - Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem:

Pena - reclusão, de 1 (um) a 8 (oito) anos, e multa.

§ 1º - A pena é aumentada de um terço, se, em conseqüência da vantagem ou promessa, o funcionário retarda ou deixa de praticar qualquer ato de ofício ou o pratica infringindo dever funcional.

§ 2º - Se o funcionário pratica, deixa de praticar ou retarda ato de ofício, com infração de dever funcional, cedendo a pedido ou influência de outrem:

Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa. (Grifo nosso)

Por sua vez, o grupo de empresários favorecido nas licitações que o servidor público executava responde por corrupção ativa na forma que prometeram/ofereceram a vantagem indevida. Vejamos o dispõe o art. 333 do CP:

Corrupção ativa

Art. 333 - Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício:

Pena - reclusão, de 1 (um) ano a 8 (oito) anos, e multa.

Parágrafo único - A pena é aumentada de um terço, se, em razão da vantagem ou promessa, o funcionário retarda ou omite ato de ofício, ou o pratica infringindo dever funcional. (Grifo nosso)

Sob a perspectiva do Código de Ética Profissional do Servidor Público Civil do Poder Executivo Federal, Decreto 1.171/94, o servidor público envolvido infringiu os princípios gerais, e regras relacionadas aos deveres e as proibições do servidor públicos. Somente a título de exemplo, foram violados os seguintes dispositivos do anexo do referido decreto: Capítulo I, Seção I: I (dignidade, decoro), II (elemento ético da conduta), III (moralidade administrativa); na Seção II: XIV “c” (ser probo, reto leal e justo), “m” (comunicar fato contrário ao interesse público), “u” (abster-se de exercer a sua função com finalidade estranha ao interesse público); na Seção II: XV “a” (uso do cargo para obter favorecimento), “c” (ser conivente com erro ou infração), “g” (pleitear, solicitar, receber qualquer tipo de ajuda financeira).

A infração a esses dispositivos tem como penalidade máxima a censura, nos exatos termos do inciso XXII do capítulo II do anexo do Decreto 1.171/94, ao servidor público, a ser aplicada pela Comissão de Ética instituída pela respectivo órgão ou entidade federal, sem prejuízo da apuração das penalidades administrativas previstas na Lei nº 8.112/90 (estatuto do Servidor Público Federal) e na Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/92).

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É importante destacar que não se aplicam as normas do Código de Ética do Servidor público Federal aos empresários envolvidos no caso de corrupção ora destacado, não podendo, desse modo, ser aplicada a eles a penalidade de censura.

5. Conclusão

Diante do exposto, pode-se concluir que:

a) Não só a conduta do servidor público ao receber a propina é moralmente reprovável e antiética, mas também os empresários agiram de forma antiética ao dar a “comissão” em dinheiro aos servidores para obter favorecimento em licitações.

 

b) Seja pela doutrina da Ética do Dever, seja pela Ética Utilitarista, as condutas dos personagens do caso relatado são consideradas antiéticas. Para a primeira doutrina filosófica, a intenção do servidor público não estava pautada em princípios universais (honestidades, dignidade, decoro), e é justamente nessa intenção do agir de cada um que a Ética do Dever observa se a conduta foi ética ou antiética. Por sua vez, a segunda doutrina se lastreia na consequência da conduta humana, diferentemente da primeira que se preocupa com a intenção da conduta, independente do resultado. Se o resultado da ação humana for favorável a uma maioria, ela é ética para Mills, na medida em que “causa” felicidade a um maior número de pessoas.

 

c) No que toca às consequências jurídicas das condutas do servidor público e dos empresários, pode-se concluir que todos infringiram normas Penais e devem responder criminalmente por suas condutas. Sob a perspectiva do Código de Ética Profissional do Servidor Público Civil do Poder Executivo Federal, Decreto 1.171/94, somente o servidor público é passível da aplicação de penalidade. Para este, a infração a esses dispositivos aos dispositivos do Código de Ética tem como penalidade máxima a censura, a ser aplicada pela Comissão de Ética instituída pelo respectivo órgão ou entidade federal, sem prejuízo da apuração das penalidades administrativas previstas na Lei nº 8.112/90 (estatuto do Servidor Público Federal) e na Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/92).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Congresso Nacional. Decreto nº. 1.171, de 22 de junho de 1994. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 23 jun. 1994. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D1171.htm>. Acesso em: 03 set. 2008. Apostila Ética e Serviço Público. Rio de Janeiro: FGV On-Line, 2014.

_________________________. Lei nº 8.429, 02 de junho de 1992. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 3 jun. 1992. Disponível em: <http://www.bcb.gov.br/pre/leisedecretos/Port/lei8429.pdf > Acesso em 20 jun. 2006. Apostila Ética e Serviço Público. Rio de Janeiro: FGV On-Line, 2014.

CORRUPÇÃO passiva. Disponível em: <http://www.licoesdedireito.net/penal/penal-corrpassiva.html> . Acesso em: 03 set. 2008. Apostila Ética e Serviço Público. Rio de Janeiro: FGV On-Line, 2014.

FREITAS, Horácio. E. Kant e a ética do dever. Disponível em: <http://filomoniz.blogs.sapo.pt/2004.html >. Acesso em: 04 set. 2008. Apostila Ética e Serviço Público. Rio de Janeiro: FGV On-Line, 2014.

__________________. O utilitarismo de Stuart Mill. Disponível em: <http://filomoniz.blogs.sapo.pt/2093.html>. Acesso em: 04 set. 2008. Apostila Ética e Serviço Público. Rio de Janeiro: FGV On-Line, 2014.

SAMEIRO, Júlio. Os princípios de Kant - aplicações. 27 abr. 2007 Disponível em: <http://www.filedu.com/jsameirokantoprincipiomoral.html>. Acesso em: 04 set. 2008. Apostila Ética e Serviço Público. Rio de Janeiro: FGV On-Line, 2014.


[1] FREITAS, Horácio. E. Kant e a ética do dever. Disponível em: <http://filomoniz.blogs.sapo.pt/2004.html >. Acesso em: 04 set. 2008. Apostila Ética e Serviço Público. Rio de Janeiro: FGV On-Line, 2014.

[2] SAMEIRO, Júlio. Os princípios de Kant - aplicações. 27 abr. 2007 Disponível em: <http://www.filedu.com/jsameirokantoprincipiomoral.html>. Acesso em: 04 set. 2008. Apostila Ética e Serviço Público. Rio de Janeiro: FGV On-Line, 2014.

[3] Op. Cit.

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Sobre o autor
Rodrigo Saito Barreto

Procurador Federal. Especialista em Direito Tributário pelo IBET - Instituto Brasileiro de Estudos Tributários, e em Direito Público pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Pós-graduando em Gestão Pública pela FGV – Fundação Getúlio Vargas.

Informações sobre o texto

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