Dolo e culpa nos crimes de trânsito

10/06/2014 às 11:07
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Este artigo visa discorrer sobre o dolo e culpa nos crimes de trânsito, ressaltando-se o posicionamento dos tribunais superiores sobre a matéria.

Uma das maiores controvérsias ocorridas no âmbito do direito penal foi a qualificação dos crimes de trânsito como dolosos ou culposos. Partindo-se da difícil percepção do agente no momento da ação, há controvérsias se o mesmo seria capaz de prever, em qualquer momento, o resultado lesivo ou se teria ele assumido o risco de produzi-lo.

Com a vigência do Código de Trânsito Brasileiro (Lei nº 9.503/97), passou-se a regulamentar diversas condutas do agente em crimes de trânsito, antes reguladas pelo Código Penal.

A jurisprudência brasileira sempre foi inclinada a acatar a culpa do agente em tais casos, havendo negligência, imperícia ou imprudência. Porém, em busca de uma resposta à sociedade clamada por justiça, passou-se a apresentar certa tendência em afastar a culpa dos crimes de trânsito, presumindo a ocorrência do dolo eventual.

Nesse sentido:

RECURSO ORDINÁRIO EM habeas corpus. HOMICÍDIO NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. DOLO EVENTUAL. CULPA CONSCIENTE. PRONÚNCIA. TRIBUNAL DO JÚRI. 1. Admissível, em crimes de homicídio na direção de veículo automotor, o reconhecimento do dolo eventual, a depender das circunstâncias concretas da conduta. Precedentes. 2. Mesmo em crimes de trânsito, definir se os fatos, as provas e as circunstâncias do caso autorizam a condenação do paciente por homicídio doloso ou se, em realidade, trata-se de hipótese de homicídio culposo ou mesmo de inocorrência de crime é questão que cabe ao Conselho de Sentença do Tribunal do Júri. 3. Não cabe na pronúncia analisar e valorar profundamente as provas, pena inclusive de influenciar de forma indevida os jurados, de todo suficiente a indicação, fundamentada, da existência de provas da materialidade e autoria de crime de competência do Tribunal do Júri. 4. Recurso ordinário em habeas corpus a que se nega provimento.

(RHC 116950)

 

HABEAS CORPUS. SUBSTITUTIVO DO RECURSO CONSTITUCIONAL. INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. HOMICÍDIO DOLOSO. TRÂNSITO. PRONÚNCIA. 1. O habeas corpus tem rica história, constituindo garantia fundamental do cidadão. Ação constitucional que é, não pode ser amesquinhado, mas também não é passível de vulgarização, sob pena de sua descaracterização como remédio heroico. Contra a denegação de habeas corpus por Tribunal Superior prevê a Constituição Federal remédio jurídico expresso, o recurso ordinário. Diante da dicção do art. 102, II, a, da Constituição da República, a impetração de novo habeas corpus em caráter substitutivo escamoteia o instituto recursal próprio, em manifesta burla ao preceito constitucional. Precedente da Primeira Turma desta Suprema Corte. 2. Não cabe na pronúncia analisar e valorar profundamente as provas, pena inclusive de influenciar de forma indevida os jurados, de todo suficiente a indicação, fundamentada, da existência de provas da materialidade e autoria de crime de competência do Tribunal do Júri. 3. Mesmo em crimes de trânsito, definir se os fatos, as provas e as circunstâncias do caso autorizam a condenação do paciente por homicídio doloso ou se, em realidade, trata-se de hipótese de homicídio culposo ou mesmo de inocorrência de crime é questão que cabe ao Conselho de Sentença do Tribunal do Júri. 4. Habeas corpus extinto sem resolução do mérito.

(HC 109210)

 

PENAL E PROCESSO PENAL. CONSTITUCIONAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO. HOMICÍDIO. “PEGA” OU “RACHA” EM VIA MOVIMENTADA. DOLO EVE NTUAL. PRONÚNCIA.

FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA. ALTERAÇÃO DE ENTENDIMENTO DE DESEMBARGA DORA NO SEGUNDO JULGAMENTO DO MESMO RECURSO, ANTE A ANULAÇÃO DO PRIMEIRO. AUSÊNCIA DE ILEGALIDADE. EXCESSO DE LINGUAGEM NO ACÓRDÃO CONFIRMATÓRIO DA PRONÚNCIA NÃO CONFIGURADO. DOLO EVENTUAL X CULPA CONSCIENTE. PARTICIPAÇÃO EM COMPETIÇÃO NÃO AUTORIZADA EM VIA PÚBLICA MOVIMENTADA. FATOS ASSENTADOS NA ORIGEM. ASSENTIMENTO QUE SE DESSUME DAS CIRCUNSTÂNCIAS. DOLO EVENTUAL CONFIGURADO. AUSÊNCIA DE REVOLVIMENTO DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO. REVALORAÇÃO DOS FATOS. ORDEM DENEGADA. (...) 10. O aprofundamento maior no exame das provas, no afã de demonstrar que havia elementos no sentido de tratar-se de delito praticado com dolo eventual, da relevância da tese então levantada pela defesa e a sua inegável repercussão sobre o status libertatis do paciente cumpre o postulado constitucional da motivação das decisões judiciais. É que, para afastar a competência do Tribunal do Júri, faz-se mister um juízo de certeza acerca da ausência de dolo. Nesse sentido a doutrina de Eugênio Pacelli de Oliveira: “O que se espera dele [juiz] é o exame do material probatório ali produzido, especialmente para a comprovação da inexistência de quaisquer das possibilidades legais de afastamento da competência do Tribunal do Júri. E esse afastamento, como visto, somente é possível por meio desconvencimento judicial pleno, ou seja, por meio de juízo de certeza, sempre excepcional nessa fase.” ( Curso de Processo Penal, 10. ed., Lumen Juris, Rio de Janeiro: 2008, pp. 575-57 6) IV – ELEMENTO SUBJETIVO DO TIPO 11. O caso sub judice distingue-se daquele revelado no julgamento do HC nº 107801 (rel. min. Luiz Fux, 1ª Turma, DJ de 13/10/2011), que cuidou de paciente sob o efeito de bebidas alcoólicas, hipótese na qual gravitava o tema da imputabilidade, superada tradicionalmente na doutrina e na jurisprudência com a aplicação da teoria da actio libera in causa, viabilizando a responsabilidade penal de agentes alcoolizados em virtude de ficção que, levada às últimas consequências, acabou por implicar em submissão automática ao Júri em se tratando de homicídio na direção de veículo automotor. 12. A banalização do crime de homicídio doloso, decorrente da sistemática aplicação da teoria da “ação livre na causa” mereceu, por esta Turma, uma reflexão maior naquele julgado, oportunidade em que se limitou a aplicação da mencionada teoria aos casos de embriaguez preordenada, na esteira da doutrina clássica. 13. A precompreensão no sentido de que todo e qualquer homicídio praticado na direção de veículo automotor é culposo, desde não se trate de embriaguez preordenada, é assertiva que não se depreende do julgado no HC nº 107801. 14. A diferença entre o dolo eventual e a culpa consciente encontra-se no elemento volitivo que, ante a impossibilidade de penetrar-se na psique do agente, exige a observação de todas as circunstâncias objetivas do caso concreto, sendo certo que, em ambas as situações, ocorre a representação do resultado pelo agente. 15. Deveras, tratando-se de culpa consciente, o agente pratica o fato ciente de que o resultado lesivo, embora previsto por ele, não ocorrerá. Doutrina de Nelson Hungria (Comentários ao Código Penal, 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1 980, v. 1., p. 116-117); Heleno Cláudio Fragoso (Lições de Direito Penal – parte geral, Rio de Janeiro: Forense, 2006, 17. ed., p. 173 – grifo adicionado) e Zaffaroni e Pier angelli (Manual de Direito Penal, Parte Geral, v. 1, 9. ed – São Paulo: RT, 201 1, pp. 434-435 – grifos adicionados). 16. A cognição empreendida nas instâncias originárias demonstrou que o paciente, ao lançar-se em práticas de expressiva periculosidade, em via pública, e diante alta velocidade, consentiu em que o resultado se produzisse, incidindo no dolo eventual previsto no art. 18, inciso I, segunda parte, verbis: (“Diz-se o crime: I – doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo” - grife i). 17. A notória periculosidade dessas práticas de competições automobilística sem vias públicas gerou a edição de legislação especial prevendo-as como crime autônomo, no art. 308 do CTB, in verbis: “Art. 308. Participar, na direção de veículo automotor, em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística não autorizada pela autoridade competente, desde que resulte dano potencial à incolumidade pública ou privada:”. 18. O art. 308 do CTB é crime doloso de perigo concreto que, se concretizado em lesão corporal ou homicídio, progride para os crimes dos artigos 129 ou 12 1, em sua forma dolosa, porquanto seria um contrassenso transmudar um delito doloso em culposo, em razão do advento de um resultado mais grave. Doutrina de José Marcos Marrone (Delitos de Trânsito Brasileiro: Lei n. 9.503/97. São Paulo: Atlas, 1998, p. 7 6). 19. É cediço na Corte que, em se tratando de homicídio praticado na direção de veículo automotor em decorrência do chamado “racha”, a conduta configura homicídio doloso. Precedentes: HC 91159/MG, rel. Min. Ellen Gracie, 2ª Turma, DJ de 24/10/2008; HC 71800/RS, rel. Min. Celso de Mello, 1ªTurma, DJ de 3/5/1996. (...)

(HC 101698)

 

Saliente-se que, neste cenário, a prova produzida mostra-se, de certo modo, irrelevante, pois o condutor, ao ingerir bebida alcoólica ou implantar velocidade acima da permitida, em desrespeito à sinalização de trânsito, terá presumidamente a conduta considerada dolosa. As decisões acima refletem a desnecessidade de prova do risco potencial de dano causado pela conduta do agente, em virtude desta atingir toda a sociedade.

Por sua vez, houve a promulgação da Lei n.º 11.705/08, denominada “lei seca”, a qual passou a aplicar maior rigor na fiscalização dos condutores. Após, com o advento da Lei n.º 12.760/2012, assim se prevê os crimes em comento:

“Art. 306. Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência:

 

Penas - detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

 

Parágrafo único.  O Poder Executivo federal estipulará a equivalência entre distintos testes de alcoolemia, para efeito de caracterização do crime tipificado neste artigo.”

 

“Art. 310. Permitir, confiar ou entregar a direção de veículo automotor a pessoa não habilitada, com habilitação cassada ou com o direito de dirigir suspenso, ou, ainda, a quem, por seu estado de saúde, física ou mental, ou por embriaguez, não esteja em condições de conduzi-lo com segurança:

 

Penas - detenção, de seis meses a um ano, ou multa.”

 

Assim, afirmou-se certa tendência pela aplicação do dolo consciente nas hipóteses de embriaguez ao volante, combinada ou não com o excesso de velocidade, passando a ser classificado como crime doloso de perigo abstrato.

Outra questão se refere à aplicação da abolitio criminis nessas hipóteses. Isso porque, apesar de não exigir o dano concreto, se este se fizer presente, o crime não estará descaracterizado. Em outras palavras, o crime não deixa de existir, mas tem um de seus requisitos, outrora exigidos, revogados. Sobre o tema:

HABEAS CORPUS. CONTRAVENÇÃO PENAL. DIREÇÃO SEM HABILITAÇÃO EM VIA PÚBLICA (ARTIGO 32). REVOGAÇÃO. OCORRÊNCIA. ABOLITIO CRIMINIS. 1. "1. Para além de regular, inteiramente, o direito penal do trânsito de qualquer natureza nas vias terrestres do território nacional, abertas à circulação, o Código Brasileiro de Trânsito, na letra do seu artigo 161, que é também regra hermenêutica autêntica contextual, assegurando a incidência cumulativa de normas sancionatórias, exclui, por outro lado - diversamente do que dispunha a lei anterior - toda punição penal estranha ao Capítulo XIX da Lei nº 9.503/97, qual seja, o "Dos Crimes de Trânsito", com o que certifica, tão evidente quanto peremptoriamente, a revogação parcial da contravenção tipificada no artigo 32 da lei específica. 2. Precedente do Supremo Tribunal Federal (RHC 80.362/SP, Relator Ministro Ilmar Galvão)." (HC 15.765/SP, da minha Relatoria, in DJ 3/9/2001). 2. Ordem concedida. (HC 200201556152).

PENAL. RECURSO ESPECIAL. DIREÇÃO SEM HABILITAÇÃO. ABOLITIO CRIMINIS. ARTIGO 32 DA LCP E ARTIGO 309 DA LEI 9.503/97. A novatio legis, que acrescentou a elementar do perigo de dano à direção sem habilitação, revogou a contravenção (artigo 32 da LCP) (Plenário do Pretório Excelso). Recurso desprovido, com a ressalva do entendimento do relator. 

(RESP 200100312330)

Por isso, verifica-se que não são todos os casos em que a combinação de embriaguez com velocidade excessiva resulta em dolo eventual, devendo ser analisadas todas as circunstâncias envolvidas no caso concreto, o elemento anímico do agente. Some-se isso aos fatos de que os efeitos decorrentes da embriaguez podem variar de uma pessoa para outra, dependendo de sua resistência.

Quanto às provas, há o elemento quantitativo da concentração de álcool no sangue do condutor embriagado. Para sua apuração, em um primeiro momento, exigiu o legislador a realização de exame de sangue.

O art. 277 do Código de Trânsito Brasileiro assim dispunha,

Art. 277. Todo condutor de veículo automotor, envolvido em acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito, sob suspeita de dirigir sob a influência de álcool será submetido a testes de alcoolemia, exames clínicos, perícia ou outro exame que, por meios técnicos ou científicos, em aparelhos homologados pelo CONTRAN, permitam certificar seu estado.

§ 1o Medida correspondente aplica-se no caso de suspeita de uso de substância entorpecente, tóxica ou de efeitos análogos.

§ 2o  A infração prevista no art. 165 deste Código poderá ser caracterizada pelo agente de trânsito mediante a obtenção de outras provas em direito admitidas, acerca dos notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor apresentados pelo condutor.

§ 3o  Serão aplicadas as penalidades e medidas administrativas estabelecidas no art. 165 deste Código ao condutor que se recusar a se submeter a qualquer dos procedimentos previstos no caput deste artigo.”

Assim, antes do advento da lei 11.275/06, o art. 277 exigia a concentração de álcool acima de 6 (seis) decigramas por litro de sangue, determinando a realização de exame de sangue e, na recusa do condutor, permitindo a produção de qualquer prova admitida em direito. Entretanto, com o passar dos anos, adotou-se a intolerância a qualquer concentração de álcool no sangue, pois seria inapropriado utilizar o critério quantitativo quando o sujeito, mesmo com concentração acima do permitido, estivesse conduzindo seu veículo normalmente. Ocorre que tal previsão referia-se à penalidade administrativa, e não à sanção penal.

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PROCESSUAL PENAL. PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. CRIME DE TRÂNSITO (ART. 306, CTB). CORRUPÇÃO ATIVA (ART. 333, CP). RESISTÊNCIA (ART.329, CP). LESÃO CORPORAL LEVE (ART. 129, CP). AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADAS. DOLO EVIDENCIADO. INEXISTÊNCIA DE FATO EXCLUDENTE DA CULPABILIDADE. EMBRIAGUEZ VOLUNTÁRIA. DOSIMETRIA. HIGIDEZ. PENA FIXADA NO PATAMAR MÍNIMO LEGAL. SUBSTITUIÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE POR RESTRITIVA DE DIREITOS. IMPOSSIBILIDADE. PRISÃO DOMICILIAR. MATÉRIA AFETA AO JUÍZO DA EXECUÇÃO. (...) 2. No que tange ao crime de embriaguez ao volante, não se pode olvidar que a confissão espontânea do acusado, nas fases inquisitiva e judicial, porquanto harmônica com o acervo probatório colacionado aos autos, notadamente o resultado do exame com etilômetro (bafômetro), torna incontestes a autoria e a materialidade delitiva. (...)

(ACR 00019674420114058302)

 

RECURSO ESPECIAL. ACIDENTE DE TRÂNSITO. PRONÚNCIA. POR HOMICÍDIO QUALIFICADO. DOLO EVENTUAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. DESCLASSIFICAÇÃO PELO TRIBUNALDE ORIGEM PARA HOMICÍDIO CULPOSO - ARTIGOS 302 E 303 DA LEI N. 9.503/97. ADEQUAÇÃO DO FATO À NORMA JURÍDICA PERTINENTE. POSSIBILIDADE NA FASE DE PRONÚNCIA. ELEMENTO VOLITIVO NÃO CARACTERIZADO. INCOMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DO JÚRI. ARTS. 18, I, E 413 DO CPP. EXEGESE. 1. De ressaltar, desde logo, que a jurisprudência desta Corte firmou-se no sentido de ser possível a revaloração jurídica dos fatos delimitados nas instâncias inferiores, que não se confunde com reexame de provas vedado pelo Enunciado n. 7/STJ. 2. Admissível, portanto, em sede de Recurso Especial, o reexame dos critérios jurídicos utilizados pelo Tribunal de origem na apreciação dos fatos considerados incontroversos, à luz dos dispostos nos arts. 74, § 1º e 413, ambos do Código de Processo Penal, e no art. 18, I, do Código Penal, tidos por violados pelo Ministério Público. 3. É certo que, na fase do iudicium accusationis, não se admite longas incursões sobre o mérito da acusação, sob pena de usurpar a competência do Tribunal do Júri. Entretanto, não se pode transferir para a Corte Popular, utilizando-se do brocardo in dubio pro societate, o juízo técnico a respeito da adequação do dolo eventual e da culpa consciente, nas hipóteses de homicídio praticado na direção de veículo automotor, ante as dificuldades óbvias de compreensão desses institutos. 4. Apesar de existir vários conceitos teóricos sob o tema, quando se parte para o campo prático nota-se a extrema dificuldade de distinguir quando o agente assumiu ou não o risco de produzir determinado resultado lesivo, ainda mais quando se tratar de crimes de trânsito, para os quais há legislação própria, inclusive com tipos penais específicos. 5. Nesse contexto, diante da tênue diferença entre dolo eventual e culpa consciente - visto que em ambos o agente prevê a ocorrência do resultado, mas somente no dolo o agente admite a possibilidade de o evento acontecer -, cumpre ao Juiz togado verificar se há elementos de convicção suficientes para confirmar a competência do Tribunal do Júri. 6. No caso, observa-se que a Corte de origem para chegar a conclusão de que o réu agiu com culpa consciente, ao contrário do sustentado pelo Parquet, não realizou exame aprofundado do meritum causae, mas sim mera aferição acerca da existência ou não de elementos mínimos para submeter o ora recorrido a julgamento pelo Tribunal do Júri, na forma como autoriza o art. 413 do mencionado diploma. 7. O excesso de velocidade e o número excessivo de passageiros, conquanto possam demonstrar negligência em relação às normas de trânsito, não autorizam a conclusão de que o condutor do veículo, ora recorrido, tenha assumido o risco de causar a morte das vítimas, dentre elas, amigos de longa data e o seu próprio irmão. 8. A embriaguez, como a própria Corte local ressaltou, não foi comprovada, visto que o réu realizou o teste do bafômetro, cujo resultado apresentou índice abaixo do permitido pela lei vigente na época do evento delituoso. 9. Ressalte-se que o acidente ocorreu antes da edição da Lei n. 12.760, cuja norma alterou o Código de Trânsito Brasileiro, especificamente o art. 306, permitindo a utilização de quaisquer meios de prova em direito admitidos para comprovar a embriaguez do motorista. Portanto, na época do fato, uma pessoa somente podia ser considerada embriagada por meio do teste do bafômetro ou exame de sangue. 10. De outra parte, não houve prova suficiente de que o acidente ocorreu em virtude da participação do recorrido em uma disputa automobilística, pois o depoimento de uma única testemunha, afirmando "achar que o acusado estava fazendo racha, por causa do pista alerta ligado", mostrou-se isolado do contexto probatório dos autos. 11. Diante desse quadro, agiu com acerto a Corte de origem em desclassificar a conduta para a modalidade culposa, visto que não há outros fatores que, somados à alta velocidade empregada - 100km/h - e ao excesso de passageiros, permitam aferir a plausibilidade da acusação pelo delito contra a vida, na modalidade dolosa. 12. Com efeito, a descrição constante na denúncia e os elementos de convicção até aqui colacionados demonstram a ocorrência de uma conduta tipicamente culposa, pois clara e indiscutível a negligência e imprudência do recorrido, mas não aponta para a configuração do dolo eventual, vale dizer, a insensibilidade e a indiferença do acusado pela vida das vítimas que lhe eram tão próximas. 13. Cumpre notar, ainda, que somente quando houver fundada dúvida, ou seja, elementos indiciários conflitantes acerca da existência de dolo, a divergência deve ser dirimida pelo Conselho de Sentença, o que não se vislumbra do contexto probatório delineado pela Corte de origem. 14. Recurso especial a que se nega provimento.

(RESP 201201170180)

Assim, observa-se nos julgados que há uma certa tendência para que não haja aplicação da máxima “ninguém é obrigado a produzir provas contra si mesmo”, derivada do princípio da presunção de inocência e da não culpabilidade, mesmo diante de diversos posicionamentos contrários à exigibilidade do exame de sangue, única prova capaz de realmente provar a ocorrência ou não de embriaguez.

Além disso, após o advento da Lei Seca, o caput do art. 306 do CTB teve a redação alterada: "Art. 306. Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência", qualquer espécie de prova admitida em direito é considerada válida. Dessa forma, o limite de álcool passou a ser uma das formas de se comprovar a embriaguez, e não mais um requisito de punição.

Por fim, questão interessante é a aplicação da prisão preventiva nos crimes de trânsito. Sobre o tema:

HABEAS CORPUS. PENAL. PROCESSUAL PENAL. HOMICÍDIO CULPOSO. PRISÃO PREVENTIVA. NÃO CABIMENTO. ILEGALIDADE DA MEDIDA. RELATIVIZAÇÃO DO ÓBICE PREVIST O NA SÚMULA 691/STF. ORDEM CONCEDIDA. I. Homicídio culposo na direção de veículo automotor, sem prestação de socorro à vítima. Conduta tipificada no art. 302, parágrafo único, III, da Lei 9.50 3/97. II. Acusado que, citado por edital, não comparece em Juízo nem indica advogado para apresentação de defesa preliminar. Decreto de prisão preventiva do paciente, com fundamento no art. 366, parte final, do Código de Processo Penal, para garantia da aplicação da lei penal. III. Ilegalidade da medida. Consoante o disposto no art. 313 do referido código, somente se admite a imposição de prisão preventiva em face de imputação da prática de crimes dolosos. IV. Hipótese em que, consoante jurisprudência iterativa da Corte, admite-se a relativização do óbice previsto na Súmula 691/STF. V. Ordem de habeas corpus concedida, para cassar a decisão mediante a qual foi decretada a prisão cautelar do paciente.

(HC 116504).

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Sobre o autor
Danilo Chaves Lima

Procurador Federal. Pós-graduado em Direito Público.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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