Não é novidade no mundo jurídico que o Congresso Nacional aprovou, em 11 de setembro de 2001, a Emenda Constitucional n.º 32, versando sobre o tão debatido tema das medidas provisórias, instituto que substituiu os decretos-lei.
Num ordenamento jurídico onde as leis são alteradas da noite para o dia e onde a Constituição, que deveria ser o símbolo máximo de unidade do sistema, alterável somente em circunstâncias excepcionalíssimas, sofre retalhos constantemente (já são mais de trinta emendas em pouco mais de 13 anos), há uma preocupação constante com os períodos de transição, nos quais as regras antigas convivem com as regras novas. Com a Emenda Constitucional n.º 32 não foi diferente.
Ao mesmo tempo em que, a partir de 11 de setembro de 2001, as novas medidas provisórias passaram a obedecer ao regime instituído pela Emenda Constitucional, continuam a vigorar as medidas provisórias editadas anteriormente à promulgação da emenda, guardando obediência ao antigo regime e ignorando o novo. São 35 as medidas provisórias editadas após a emenda, juntando-se às 66 já editadas ao tempo da emenda e ainda não apreciadas pelo Congresso Nacional [1].
Enquanto as novas medidas provisórias obedecem aos ditames do novo regime, no qual perdem a eficácia se não convertidas em lei no prazo de sessenta dias, prorrogável por mais outro tanto, criou-se uma situação de total indefinição no que toca às medidas provisórias pré-existentes. O art. 2.º da Emenda Constitucional n.º 32 determinou que as medidas provisórias editadas em data anterior à da publicação desta emenda continuam em vigor até que medida provisória ulterior as revogue explicitamente ou até deliberação definitiva do Congresso Nacional. Isto quer dizer que tais medidas permanecerão em vigor indefinidamente, até deliberação posterior em contrário.
A própria Constituição, ainda que em sua vertente derivada (em norma trazida por emenda), determinou a perpetuidade de um instituto jurídico originalmente provisório, como diz seu próprio nome. As medidas provisórias foram criadas para serem justamente provisórias, ficando na dependência de aprovação do Congresso Nacional sua conversão em lei; sendo a elaboração de leis uma prerrogativa exclusiva dos legisladores, é de flagrante inconstitucionalidade a norma que, mesmo encartada na própria Constituição, determina a perpetuidade indefinida de diplomas normativos com força de lei que não tenham sido elaborados por quem detém a competência para tanto. Na prática, as medidas provisórias editadas antes da Emenda n.º 32 têm força de lei e produzem efeitos como se leis fossem, com duração indeterminada, ainda que – e justamente porque – não tenham passado pelo crivo dos legisladores.
A lei vigora por prazo indeterminado, salvo disposição em contrário (art. 2.º da Lei de Introdução ao Código Civil), mas a medida provisória é editada com previsão expressa de seu tempo de vigência, sendo ab initio fadada a termo certo ou à conversão em lei (§ 3.º do art. 62, com a redação dada pela Emenda Constitucional n.º 32). O que fez o constituinte derivado foi equipará-las, em termos de duração, subvertendo a lógica do ordenamento jurídico e provocando insegurança e incerteza nas relações jurídicas. Ainda que a Constituição proteja expressamente o direito adquirido, o atual sistema permite que uma situação jurídica sofra modificações substanciais do dia para a noite, sem anúncio prévio ou debate, com grandes prejuízos aos interessados e benefícios para poucos.
Recente exemplo desta questão advém da Medida Provisória n.º 2.164-40, de 27/07/2001, reeditada com o número 2.164-41 em 24/08/2001.
Um dos eventos básicos do processo civil é a sucumbência, que consiste em atribuir à parte vencida na causa a responsabilidade por todos os gastos do processo [2]. Sendo voluntário o direito de ação, não seria medida de justiça ou eqüidade atribuir ao vencedor o ônus de pagar as despesas processuais, a partir do momento em que se considera que o perdedor da ação deu causa a ela: o perdedor, cuja conduta ensejou o exercício do direito de ação pela outra parte, é o responsável pelo ressarcimento de quaisquer ônus que o vencedor tenha suportado no curso do processo.
Até o advento da Medida Provisória n.º 2.164-40, a sucumbência era a grande regra geral do processo civil, no que diz respeito ao pagamento das despesas do processo. Seu art. 9.º inseriu na Lei n.º 8.036/90, que dispõe sobre o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS (considerado como direito social dos trabalhadores pelo art. 7.º, III, da Constituição Federal), o art. 29-C, com a seguinte redação: nas ações entre o FGTS e os titulares de contas vinculadas, bem como naquelas em que figurem os respectivos representantes ou substitutos processuais, não haverá condenação em honorários advocatícios.
O efeito prático desta regra tem proporções violentas em termos econômicos e constitui uma grave violação aos direitos dos advogados.
Com a enxurrada de ações versando sobre a correção das contas vinculadas do FGTS em decorrência dos expurgos provocados pelos planos econômicos das décadas de 80 e 90, o Governo Federal viu-se na obrigação de tomar medidas destinadas a aliviar a sangria financeira que a derrota em tais ações provocaria em seus cofres.
Cortou a carne dos trabalhadores, impondo-lhes descontos nas restituições das diferenças perante a via administrativa (Lei Complementar n.º 110, de 2001) e, ao mesmo tempo, retirou dos advogados que os representam em juízo a prerrogativa de perceber honorários sucumbenciais. Esqueceu que o ofício dos advogados é remunerado pelos honorários percebidos em cada ação ganha, e que deles sai o sustento seu e de sua família (art 22 da Lei n.º 8.906/94). Desprezou o princípio da sucumbência (art. 20 do Código de Processo Civil) e, acima de tudo, atentou contra o direito ao trabalho e contra o fundamento da República Federativa do Brasil que é o valor social do trabalho (Constituição Federal, arts. 7.º, caput, e 1.º, IV, respectivamente). Em suma, um ato de total arbitrariedade, com objetivos unicamente financeiros e desprovidos que qualquer sentido ético, que relembra os decretos-lei da ditadura militar.
É incrível vislumbrar o poder de contradição que detêm os ocupantes do Governo, tanto no Executivo quanto no Legislativo. Ao mesmo tempo em que era reeditada a Medida Provisória n.º 2.164, a Emenda Constitucional n.º 32 vedou a edição de medidas provisórias sobre matérias de direito penal, processual penal e processual civil (art. 62, § 1.º, b, da Constituição Federal, com a nova redação). A medida provisória em apreço foi reeditada em 24/08/2001, sendo que menos de um mês depois (em 11/09/2001) sobreveio a emenda constitucional que, alguns dias antes, teria proibido a iniqüidade cometida contra a advocacia. Isto demonstra que a vontade política e o humor dos detentores de mandatos eletivos são determinantes do rumo da Nação, pois o "engavetamento" de projetos no Congresso Nacional – e, por que não dizer, no Palácio do Planalto, berço das medidas provisórias – é capaz de deturpar todo o ordenamento jurídico, trazendo à tona os contra-valores da incerteza e da insegurança jurídica.
Para estas situações existe a Ação Direta de Inconstitucionalidade, instrumento de correção de situações capazes de corromper o sistema. Por ironia do destino, cabe aos advogados a tarefa de elaborar as petições que dão a largada a tais ações, dentro das regras de legitimidade previstas no art. 103 da Constituição Federal. Entretanto, não se tem notícia, até o presente momento, do ajuizamento de Ação Direta de Inconstitucionalidade contra a Medida Provisória n.º 2.164-41.
Na falta de manifestação do Supremo Tribunal Federal, cujos efeitos vinculariam todos os juízos monocráticos e cortes de justiça do país, cabe aos aplicadores da lei nos casos concretos a tarefa de controlar a constitucionalidade dos diplomas legais e restringir sua aplicação quando violarem outras regras do sistema ou os princípios constitucionais.
O Tribunal Regional Federal da 4.ª Região, com sede em Porto Alegre, já se manifestou no sentido de cercear ao máximo a aplicação da Medida Provisória n.º 2.164-41, determinando-a somente aos feitos ajuizados após sua edição. Nesse sentido decidiu em Agravo de Instrumento o Desembargador Federal Amaury Chaves de Athayde: o disposto no art. 29-C da Lei n.º 8.036/90 não aproveita à exclusão de honorários advocatícios nas ações versando sobre FGTS, aforadas anteriormente à edição da Medida Provisória (n.º 2.164) que o contemplou, eis que a norma é de cunho material, ausente de força retroativa.
O mais grave é que a Medida Provisória n.º 2.164-41 está em vigor por tempo indeterminado, até deliberação definitiva do Congresso Nacional ou disposição de nova medida provisória, dentro da sistemática de transição adotada pelo art. 2.º da Emenda Constitucional n.º 32. Ou seja, a garantia de atendimento a um direito fundamental de uma classe profissional está suspensa por um regime pretensamente excepcional, cuja aplicação inconseqüente derruba os valores da segurança e certeza jurídicas na medida em que ganha ares de perenidade e força de lei.
Enquanto permanecer a falta de vontade política e de senso moral dos governantes, a classe dos advogados terá cerceado um de seus direitos mais prementes, em nome de um ajuste econômico-financeiro que obriga o Estado a cortar ao máximo os gastos sem importar-se com as conseqüências e sem lembrar do respeito à Constituição como regra basilar do Estado Democrático de Direito.
Até quando?
Notas
1. Os dados foram extraídos do site oficial do Palácio do Planalto: http://www.planalto.gov.br, consultado em 03/04/2002.
2. THEODORO JR., Humberto. Curso de Direito Processual Civil. 31.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 79.