SUMÁRIO: 1. Introdução: Que é justiça? É possível conceituá-la? 2. Devido processo legal: histórico. 2.1 Conceito. 3. Evolução. 4. Em busca da instrumental justiça. 5. A célere prestação jurisdicional como um corolário do Acesso a Justiça. 6. A execução imediata da sentença com alternativa diante da demora da prestação jurisdicional. 7. Por uma nova visão
1.Introdução: Que é justiça? É possível conceituá-la?
Para dissecarmos um pouco o tema em apreço, iremos traçar inúmeros paralelos e contrapontos com temas ligados à processualística moderna com o fito de trazer ao leitor a ótica hodierna em que perpassa o princípio do Devido Processo Legal como um direito do autor e do réu e não apenas comumente é visto, como um direito do réu, [1]um equívoco que se deu quando o Estado em virtude de receios próprios da época do liberalismo do final do século XIX, construiu um processo destinado unicamente a garantir a segurança e a liberdade do réu diante da possibilidade do arbítrio do juiz. Em virtude da busca incessante por uma ordem jurídica justa, veremos que a clássica idéia de Chiovenda de que "o processo deve dar, quanto for possível praticamente, a quem tenha um direito, tudo aquilo e exatamente aquilo que ele tenha direito de conseguir" [2] ainda é a pedra de toque do direito e o será, por muito tempo.
Tema tormentoso é expressarmos ou teorizarmos o quem vem a ser a justiça. Peso maior será, quando ela ainda tem que ser a mais justa possível. Para tanto, fomos buscar respostas para a questão epigrafada na célebre obra de Hans Kelsen "O que é Justiça" traduzida por Luís Carlos Borges, observando que para Kelsen este assunto é altamente instigando e ao mesmo tempo frustrante, pois, como veremos, para ele esta pergunta continua sem resposta.
Para Hans Kelsen, "nenhuma outra questão foi tão passionalmente discutida; por nenhuma outra foram derramadas tantas lágrimas amargas, tanto sangue precioso; sobre nenhuma outra, ainda, as mentes mais ilustres – de Platão e Kant – meditaram tão profundamente. E, no entanto, ela continua até hoje sem resposta. Talvez por se tratar de uma dessas questões para as quais vale o resignado saber de que o homem nunca encontrará uma resposta definitiva; deverá apenas tentar perguntar melhor". [3]
Para Kelsen a "justiça é, antes de tudo, uma característica possível, porém não necessária, de uma ordem social. Como virtude do homem, encontra-se em segundo plano, pois um homem é justo quando seu comportamento corresponde a uma ordem dada como justa". [4] Daí surge a seguinte indagação: o que significa uma ordem justa? Kelsen assim responde: "significa essa ordem regular o comportamento dos homens de modo a contentar a todos, e todos encontrarem sob ela felicidade. O anseio por justiça é o eterno anseio do homem por felicidade. Não podendo encontrá-la como indivíduo isolado, procura essa felicidade dentro da sociedade. Justiça é felicidade social, é a felicidade garantida por uma ordem social. Nesse sentido Platão identifica justiça a felicidade, quando afirma que só o justo é feliz e o injusto, infeliz". [5]
Assim sendo, asseverando-se que a justiça é felicidade, a questão ainda não está completamente respondida, surgindo daí uma nova pergunta, qual seja, a de se saber o que é felicidade.
Novamente nos apoiamos nas meditações de Kelsen que aduz: "é evidente que não pode haver uma ordem justa, isto é, que proporcione felicidade a todos, se entendermos por felicidade, conforme o sentido original da palavra, o sentimento subjetivo que cada um compreende para si mesmo. É inevitável, então, que a felicidade de um entre em conflito com a felicidade de outro. Um exemplo: o amor é a principal fonte tanto de felicidade como de infelicidade. Suponhamos que dois homens amem a mesma mulher e que cada uma – com ou sem razão – acredite que não poderá ser feliz se não tiver essa mulher só para si. Pela lei – e talvez também por seus próprios sentimentos – a mulher só poderá pertencer a um deles. A felicidade de um é, sem dúvida, a infelicidade do outro. Nenhuma ordem social poderá solucionar essa problema de forma justa, isto é, de maneira que os dois homens possam ser igualmente felizes. Nem mesmo a famosa sentença do sábio rei Salomão. Como se sabe, ele resolveu dividir em duas partes uma criança por cuja posse duas mulheres brigavam; todavia, concordava em entregá-la àquela que abdicasse de seu direito, a fim de salvar a criança – comprovando assim, segundo o rei, amá-la verdadeiramente. A sentença salomômica só é justa – se é que o é – sob a condição de apenas uma das duas mulheres amar a criança. Se ambas a amarem – o que é possível e até provável, pois ambas a querem – e por essa razão ambas abdicarem de seu direito, o litígio permanecerá pendente; se, mesmo assim, a criança for finalmente adjudicada a uma das partes, a sentença certamente não será justa, pois tornará a outra infeliz. Nossa felicidade depende freqüentemente da satisfação de necessidade que nenhuma ordem social pode garantir". [6]
Para Kelsen não basta este tipo de felicidade, qual seja, a subjetiva, individual; mas esta tem que dar lugar a uma outra elevando-a a um nível de categoria social, sendo a felicidade da justiça. [7]
E continua o ilustre pensador: "a metamorfose através da qual a felicidade individual e subjetiva se transforma na satisfação de necessidades reconhecidas socialmente se equipara àquela a que se deve sujeitar o conceito de liberdade a fim de tornar-se um princípio social; e o conceito de liberdade é freqüentemente identificado como o de justiça, na medida em que uma ordem social é considerada justa se garantir a liberdade individual". [8]
Essa tormenta parece inesgotável e Kelsen outra vez pergunta: "mas quais interesse humanos têm esse valor e qual é a hierarquia desses valores? É essa questão que se coloca quando surgem conflitos de interesses. E somente onde existem tais conflitos de interesses, a justiça se torna um problema. Onde não há conflitos de interesses, não há necessidade de justiça. Um conflito de interesses se apresente, todavia, quando um interesse só pode ser satisfeito á custa de outro, ou seja, quando dois valores se contrapõem e não é possível concretizá-los ao mesmo tempo se a concretização de um implicar a rejeição do outro; quando é inevitável, para dar prioridade à concretização de um dos dois, decidir qual deles é mais importante, mais elevado, maior. O problema dos valores é, antes de tudo, o problema dos conflitos de valores. E esse problema não poderá ser solucionado com os meio do conhecimento racional. A resposta às questões que aqui se apresentam é sempre um juízo, o qual, em última instância, é determinado por fatores emocionais e possui, portanto, um caráter subjetivo. Isso significa que o juízo só é válido para o sujeito que julga, sendo, nesse sentido, relativo". [9]
A idéia que se procura passar aqui, não é esgotar o inesgotável, pois, como vemos a cada resposta que se chega uma nova pergunta surge. A missão de conceituar o que é justiça segue seu caminho das ilações e meditações, sem, contudo satisfazer igualmente àqueles que a buscam: todos nós.
2.Devido processo legal: histórico
A garantia constitucional do devido processo legal prescinde da história do homem pela busca de sua liberdade, ou seja, libertar-se da servidão que lhe foi imposta pelo próprio semelhante. Revela, sobretudo, a luta pela contenção do poder. [10]
Nos primórdios, vivia o homem em regime tribal, com total liberdade e comunhão de patrimônio, restringidos apenas pelo interesse de sobrevivência do grupo. Após a criação do Estado, os séculos vieram demonstrar que perdeu ele sua liberdade, quase que total, porque o detentor do poder passou a utilizá-lo, de modo geral, em proveito próprio, ignorando o interesse do povo, chegando Luís XIV a dizer: "L’État c’ est moi" (O Estado sou eu). [11]
Todavia, a saga pela liberdade nunca foi abandonada, pois, para o homem constitui o seu mais precioso bem, sendo o modo natural de manifestação da vida, da inteligência, da criatividade, das quais decorrem, inelutavelmente, a indústria e o progresso, enfim, a civilização. O homem nasceu para ser livre, sujeitando-se ao mínimo de restrições necessárias à realização do bem comum. [12]
Com exatidão Silveira nos mostra que "a lição que se extrai é que as ditaduras e impérios que se apoiaram em ordem absoluta, individual do tirano ou do grupo dominante, contrariando a natureza das coisas, por mais poderosos que tenham sido, entraram sem em colapso, como registra a história. Apenas o governo democrático, que tem o povo como base, com suas múltiplas diversidades individuais e diferentes anseios, pode desenvolver-se serenamente, administrando a conjuntura variável, pois, ainda que cometa erros, serão, por certo, reparáveis". [13]
No Direito Inglês a garantia do devido processo legal surgiu no reinado de John, chamado de Sem-Terra, cujo reinado usurpou de seu irmão Ricardo Coração de Leão que morreu em virtude de um ferimento de flecha recebido em uma batalha.
Silveira nos ensina que "Sem-Terra", ao "assumir a coroa passou a exigir elevados tributos e fez outras imposições decorrentes de sua tirania, o que levou os barões a se insurgirem: ‘Os desastres, cincas e arbitrariedades do novo governo foram tão assoberbantes, que a nação, sentindo-lhe os efeitos envilecedores, se indispôs, e por seu representantes tradicionais reagiu. Foram inúteis as obsecrações. A reação era instintiva, generalizada; e isso, por motivo de si mesmo explícito: tão anárquico fora o reinado de João, que se lhe atribuía outrora, como ainda nos nossos dias se repete, a decadência; postergou regras jurídicas sãs de governo; descurou dos interesses do reino; e, a atuar sobre tudo, desservindo a nobres e a humildes, ameaçava a desnervar a energia nacional, que se revoltou’". [14]
Assim, em 15/06/1215 John foi obrigado a concordar apondo seu selo real, com os termos da declaração de direitos, que lhe foi apresentada pelos barões, a qual ficou conhecida como Magna Carta, ou Great Charter, da qual ainda existem preservados quatro exemplares originais. Por esse documento, o Rei John jurou respeitar os direitos, franquias e imunidades que ali foram outorgados, como salvaguarda das liberdade dos insurretos, entre eles a cláusula do devido processo legal (due process of law). Destaca-se que a Magna Carta (1215) evidenciou pela primeira vez, de modo inequívoco, que nenhuma pessoa, por mais poderosa que fosse, estaria acima da lei, ao assegurar, em seu § 39, com as alterações da Carta de 1225, com regra absoluta a ser observada, o devido processo legal (due process of law) [15]:
"Nenhum homem livre será detido ou sujeito a prisão, ou privado dos seus direitos ou seus bens, ou declarado fora da lei, ou exilado, ou reduzido em seu status de qualquer outra forma, nem procederemos nem mandaremos proceder contra ele senão mediante um julgamento legal pelos seus pares ou pelo costume da terra"
Portanto, pela primeira vez na história instituiu-se o devido processo legal que constitui a essência da liberdade individual em face da lei, ao afirmar que ninguém perderá a vida ou a liberdade, ou será despojado de seus direitos ou bens, salvo pelo julgamento de seu pares, de acordo com a lei da terra. [16]
No Direito Americano a origem o devido processo legal surgiu por meio de dissidentes protestantes ingleses, que, em fuga, aportaram nas praias americanas da Virgínia em 1607, trazendo consigo os fundamentos da common law, entre os quais o princípio do devido processo legal.
Não destoando da história de embates políticos e às vezes até sangrentos, os virginianos Thomas Jefferson, Madison e Mason submeteram ao Congresso emendas à Constituição, a fim de que nela figurasse o que foi chamado de Bill of Rights (Emendas n. 1 a 10), que foram incorporadas em abril de 1791. O que Jefferson pretendia era um controle legal contra o governo nacional – ele não estava grandemente preocupado com os Estados, uma vez que tinham seu próprio Bill of Rigths, contenção estatal que os elaboradores julgavam confortavelmente satisfatórios.
Após a Guerra Civil (1861/65), o Congresso aprovou, em 1866 – visando conferir, harmoniosamente, os direitos expressos no Bill of Rights, em face das dispares constituições dos diversos Estados da União – a Emenda XIV, a qual só foi ratificada em 9/7/1868, por ¾ dos legislativos estaduais, como exige o art. V, da Constituição americana. Essa emenda, na Seção I, traz a seguinte redação:
"Todas as pessoas nascidas ou naturalizada nos Estados Unidos, e sujeitas à sua jurisdição, são cidadãos dos Estados unidos e do Estado em que residem. Nenhum Estado fará ou executará qualquer lei que restrinja os privilégios ou imunidades dos cidadãos dos Estados Unidos; nenhum Estado privará qualquer pessoa da vida, liberdade ou propriedade sem o devido processo legal; nem negará a qualquer pessoa dentro de sua jurisdição a igual proteção da leis". [17]
O Direito Brasileiro não registra histórico no sentido de que, ao tempo da Constituição imperial outorgada por D. Pedro I, em 1824, haja o direito brasileiro tomado conhecimento do instituto do devido processo legal, senão vaga, nebulosa e, imprecisamente, na área criminal procedimental, senão vejamos:
"Constituição Política do Império do Brasil, jurada a 25 de março de 1824
Título 8º - Das Disposições Geraes, e Garantias dos Direitos Civis, e Políticos dos Cidadãos Brazileiros
Art. 179 A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Políticos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império, pela maneira seguinte:
...
VIII – Ninguém poderá ser preso sem culpa formada, excepto nos casos declarados na Lei; e neste dentro de vinte e quatro horas contadas da entrada na prisão, sendo em Cidades, Villas, ou outras Povoações proximas aos logares da residencia do Juiz; e nos logares remotos dentro de um prazo razoavel que a Lei marcará, attenta a extensão do territorio o Juiz por uma Nota, por elle assignada, fará constar aos Réo o motivo da prisão, os nomes do seu accusador, e os das testemunhas, havendo-as". [18]
Com a proclamação da República em 15/11/1889, veio a Constituição de 1891 inspirada na Constituição americana de 1787, que instituiu entre nós o federalismo, transformando as antigas províncias em Estados-Membros do País, já que antes o Brasil era um Estado unitário.
Formalista, essa segunda Constituição não estava em descompasso com a realidade de seu tempo, ao formular princípios ou outorgar direitos que jamais foram efetivamente concretizados, cuja observação de Paulo Bonavides e Paes de Andrade é:
"Promulgou-se a lei maior, mas não diminuiu a distância entre as regras fundamentais e o meio político e social constitutivo do País real, aquele regido por impulsos autônomos exteriores ao espaço abstrato dos mandamentos constitucionais. As forças substancialmente efetivas de um constitucionalismo sem Constituição entravam a atuar nos condutos subterrâneos da inspiração revolucionária, movendo a sociedade para os anseios de mudança e reforma". [19]
Da Lei Fundamental de 1891, constou, também, uma declaração de direitos, entre os quais não figurou expressamente o devido processo legal, não obstante, no campo criminal, houvesse menção à plena defesa com os recursos e meios essenciais a ela, bem como à cláusula proibitiva da prisão sem prévia formação de culpa, vejamos:
"Constituição da República dos Estados unidos do Brazil, promulgada a 24 de fevereiro de 1891.
Secção II – Declaração de Direitos
Art. 72 A Constituição assegura a brazileiros e a estrangeiros residentes no paíz a inviolabilidade dos direitos concernentes á liberdade, á segurança individual e á propriedade nos termos seguintes:
...
§ 16 – Aos accusados se assegurará na lei a mais plena defesa, com todos os recursos e meios essenciaes a ella, desde a nota de culpa, entregue em vinte e quatro horas ao preso e assignada pela autoridade competente, com os nomes do accusador e das testemunhas." [20]
Veio a Revolução de 1930 e Getúlio Vargas toma o poder em suas mãos. Surge nova Constituição, a de 1934 que teve existência efemêra, já que em 1937 foi outorgada ao País nova ordem constitucional, por força da ditadura decorrente do Estado Novo. Embora contenha no bojo destas, a ventilação do princípio da ampla defesa, não há de se cogitar de liberdades civis durante a vigência dessas duas cartas políticas.
"Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, promulgada a 16 de julho de 1934.
Cap. II – Dos Direitos e das Garantias Individuaes
Art. 113 A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no paiz a inviolabilidade dos direitos concernentes á liberdade, á subsistencia, á segurança individual e á propriedade, nos termos seguintes:
...
24 – A lei assegurará aos accusados ampla defesa, com meio e recursos essenciaes a esta." [21]
"Constituição dos Estados Unidos do Brasil, decretada a 10 de novembro de 1937.
Dos Direitos e garantias individuais
Art. 122 A Constituição assegura aos brasileiros, estrangeiros residentes no país o direitos à liberdade, à segurança individual e á propriedade, nos termos seguintes:
...
11 – À exceção do flagrante delito, a prisão não poderá efetuar-se senão depois de pronúncia do indiciado, salvo os casos determinados em lei e mediante ordem escrita da autoridade competente. Ninguém poderá ser conservado em prisão sem culpa formada, senão pela autoridade competente, em virtude de lei e na forma por ela regulada; a instrução criminal será contraditória, asseguradas, antes e depois da formação da culpa, as necessárias garantias de defesa." [22]
Elaborada com bases democráticas, haja vista, a participação do povo; tivemos a Constituição de 1946, dedicando o Capítulo II aos direitos e garantias individuais (art. 141/4/25). Contudo, embora tenha ampliado o leque das liberdades civis, não fez referência expressa ao devido processo legal, vejamos:
"Constituição dos Estados Unidos do Brasil, promulgada a 18 de setembro de 1946.
Art. 141 A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos têrmos seguintes:
...
§ 4º - A lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de direito individual.
...
§ 25 – É assegurada aos acusados plena defesa, com todos os meio e recursos essenciais a ela, desde a nota de culpa, que, assinada, pela autoridade competente, com os nomes do acusador e das testemunhas, será entregue ao prêso dentro de vinte e quatro horas. A instrução criminal será contraditória." [23]
Após o Golpe Militar de 31/3/64, seguiram-se as constituições outorgadas de 1967 e 1969 (Emenda n. 1), nas quais, não obstante constarem formalmente direitos individuais, por óbvio não foram respeitados.
"Constituição do Brasil, promulgada a 24 de janeiro de 1967.
Cap. IV – Dos Direitos e Garantias individuais
Art. 150 A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos têrmos seguintes:
...
§ 15 – A lei assegurará aos acusados ampla defesa, com os recursos a ela inerentes. Não haverá fôro privilegiado nem tribunais de exceção." [24]
Por fim chegamos a atual Constituição Federal promulgada em 05/10/1988, fruto da ampla participação do povo, onde pela primeira vez na história constitucional brasileira, previu expressamente, como princípio garantidor das liberdades civis, o devido processo legal (due process of law), ao dispor no art. 5º, inciso LIV:
"Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal."
O constituinte a complementou, pelo inciso LV, onde diz:
1.Conceito"Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes".
Paulo Fernando Silveira, em sua obra "Devido Processo Legal" aduz que "qualquer pretensão de conceituar o devido processo legal deverá levar em consideração sua origem, que remonta, aos reinados de Henry I (1100/11350 e Henry II (1154/1189), culminando com a assinatura da Magna Carta pelo Rei João Sem Terra – (Jonh Lackland (1199/1216), que sucedeu ao seu irmão Ricardo Coração de Leão-Richard the Lion Heart (1189/1199)". [25]
É bem verdade, que em sua gênese o devido processo legal confundiu-se com a própria common law. Houve evolução do conceito passando a ser visto como modo de contenção do chefe de governo, objetivando evitar o cometimento de arbitrariedades, como retirar do membro da comunidade seu direito à vida, liberdade ou propriedade. [26]
O Chief Justice Burger da Suprema Corte dos Estados Unidos, nesse sentido pronunciou:
"O conceito do devido processo abraçado em nossa constituição remonta diretamente, há 600 anos atrás. É mais do que um conceito técnico legal, pois ele permeia nossa Constituição, nossas leis, nosso sistema, e nosso próprio modo de vida – que a toda pessoa deverá ser concedido o que é devido". ("The Due Process concept embraced in our Constitution traces directly back nearly 600 years to Runnymede. It is more than a technical legal concept for it pervades our Constitution, our laws, our system, and our very way of life-that every person shall be accorded what is due.") [27]
Em 1884, a abrangência do conceito foi delineada pelo Associate Justice Harlan (Hurtado v. California), quando afirmou:
"O governo deve ser confinado dentro dos limites daqueles princípios fundamentais de liberdade e justiça, deitados na fundação de nossas instituições civis e políticas, os quais nenhum Estado pode violar consistentemente com o princípio do devido processo legal requerido pela emenda n. 14 nos procedimentos envolvendo vida, liberdade ou propriedade." ("Governments should be confined within the limits of those fundamental principles of liberty and justice, lying at the foundation of our civil ond political institutions, which no State can violate consistently with that due process of law required by the Fourteenth Amendment in proceedings involving life, liberty, or property.") [28]
Noção ampla e mais refinada são os dizeres de Abraham e Perry:
"O conceito do devido processo legal e sua aplicação aos nossos governos estadual e federal é baseado em um extensivo reservatório de limitações constitucionais expressas e implícitas sobre a autoridade governamental, fundamentalmente determinado pelo processo judiciário, sobre as noções básicas de lisura e decência que governam, ou devem governar, o relacionamento entre legislador e legislado". ("The concept of due process of law and its application to our federal and state governments is based on an extensive reservoir of constitutionally expressed and implied limitations upon governmental authority, ultimately determined by the judicial process, and upon those basic notions of fairness and decency which govern, or ought to govern, the relationships between rulers and ruled.") [29]
Dada a dificuldade de se definir o devido processo legal, Ademar Maciel informa que que Thomas Cooley procurou dar uma idéia do leque de proteção do instituto:
"O termo devido processo legal é usado para explicar e expandir os termos vida, liberdade e propriedade e para proteger a liberdade e a propriedade contra legislação opressiva ou não razoável, para garantir ao indivíduo o direito de fazer de seu pertences o que bem entender, desde que seu uso e ações não sejam lesivos aos outros como um todo". [30]
Finalizeremos o tópico, trazendo alguns pronunciamentos da Suprema Corte dos Estados Unidos sobre essa garantia constitucional:
Holden v. Hardy – 1898: "Este tribunal jamais tentou definir com precisão as palavras due process of law [...] basta dizer que existem certos princípios imutáveis de justiça aos quais é inerente a própria idéia de governo livre, o qual nenhum membro da União pode desconhecer". Solesbee v. Balkcon – 1950: "Acha-se assentada a doutrina por essa Corte que a cláusula do due process enfeixa um sistema de direitos baseados em princípios morais tão profundamente enraizados nas tradições e sentimento de nossa gente, de tal modo que ela deve ser julgada fundamental para uma sociedade civilizada como concebida por toda a nossa história. Due process é aquilo que diz respeito às mais profundas noções do que é imparcial, reto e justo". [31]