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Achado, se devolvido, não é roubado, é devido: o direito de recompensa no ordenamento jurídico brasileiro

13/06/2014 às 09:25
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Apresenta-se o instituto da recompensa no âmbito da descoberta de um bem no ordenamento jurídico civil brasileiro.

1. INTRODUÇÃO

Muitas dúvidas são geradas quanto ao que se deve fazer quando se encontra um bem alheio perdido. Algumas pessoas optam por ficar com a coisa para si, quer por falta de informação sobre como proceder à devolução, quer por intenção específica de ter para si o objeto em questão.

Outras pessoas, entretanto, por opção moral e dotadas de um muito válido altruísmo, escolhem tentar devolver a coisa àquele que a perdeu, mesmo quando possuem pouca ou nenhuma informação sobre o real dono do objeto.

Nesta conjectura, é de um desconhecimento quase que geral que o Direito, num incomum momento de aproximação codificada e expressa da Moral, possui um instituto específico que visa a agraciar aqueles que optam pelo segundo dos caminhos acima mencionados, ou sejam, buscam devolver o bem em questão a seu respectivo dono.

Tal instituto é denominado “recompensa” e corresponde a parte do valor do bem que foi encontrado e que se buscou restituir, sendo devida àquele que o encontrou. Esta figura é regulada pelo atual Código Civil brasileiro, em Livro específico que trata do “direito das coisas”, e será objeto de estudo de agora em diante.


2. A PECULIAR RELAÇÃO ENTRE DIREITO E MORAL

Direito e Moral são duas dimensões diferenciadas da Ciência: o primeiro com uma preocupação bem específica em normatizar as relações desenvolvidas dentro da sociedade, a segunda com uma maior preocupação sobre as reais intenções que motivam as atitudes humanas.

Desta breve ideia, já é possível depreender que nem sempre ambos se cruzam. Assim como não é possível reduzir todas as sensações humanas a um texto legal, não existe segurança jurídica se sempre houver a flexibilização de uma ordem legal às vontades específicas e variadas demonstradas na sociedade.

Desta forma, a Moral é tomada pelo Direito como uma dimensão norteadora, buscando ele sempre se aproximar daquela, mas de modo que não perca a sua autonomia científica. Sobre esta peculiar relação, lembra Stolze[1] que

Embora a moralidade deva ser sempre um norte na aplicação da norma jurídica, estando, inclusive, no plano da análise da validade dos atos e negócios jurídicos, não há como, tecnicamente, confundi-los. Mais do que isso, a moral, a partir do pós-guerra, passou a integrar a própria estrutura da ordem jurídica; isso, todavia, não exclui a autonomia do direito como instância específica de direção comunitária por meio da normatização de condutas.

Até esta tomada da Moral como um direcionamento por parte do Direito é algo recente. Antigamente, pregava-se uma total dissociação entre estas duas dimensões, de modo a preservar a pureza de cada um destes ramos da Ciência. A busca de uma maior aproximação entre o Direito e a Justiça, assim como o advento de um Direito Constitucional mais norteador gerou um verdadeiro processo de remoralização jurídica, atingindo, inclusive, a regulação das relações civis. Na visão de Stolze[2],

Essa remoralização do direito se tornou necessária a partir da modificação da percepção da ordem jurídica como um todo, a partir do Direito Constitucional, espraiando-se para o Direito Civil, que teve modificado os paradigmas que norteavam o seu desenvolvimento e sua compreensão, passando a prevalecer a dignidade e a boa-fé.

Nesta conjectura, apesar de ser um objetivo, não é comum encontrar um dispositivo legal que expresse de forma clara um aspecto da Moral, ficando esta geralmente implícita no processo de apreensão do texto jurídico. Uma grata exceção a isto é o instituto da recompensa pela descoberta e devolução de um bem alheio, regulada pelo Código Civil de 2002, valorizando o aspecto moral do altruísmo e a ser desvendada a seguir.


3. A DESCOBERTA DE COISA ALHEIA

Ao fenômeno da descoberta e, por consequência, da recompensa é destinada uma Seção específica do Código Civil dentro do Livro III, o qual trata do “direito das coisas”, compreendendo os artigos 1.233 a 1.237 do aludido ato codificado.

Nas palavras de Gonçalves[3], “descoberta é achado de coisa perdida por seu dono”, sendo o descobridor aquele “que a encontra”. Desta forma, três são as situações jurídicas identificadas: a da pessoa que perdeu a coisa, a da coisa perdida e a da pessoa que encontrou o bem em questão.

Na lembrança de Nelson Nery[4], o antigo Código Civil, datado de 1916, compreendia a descoberta, sob o nome de invenção, como uma forma específica de aquisição e perda de propriedade móvel. A presente legislação civil, entretanto, realizou uma alteração e retirou deste instituto o caráter de aquisição de propriedade da coisa, visto que, nos ensinamentos de Gonçalves[5], “descoberta não é modo de adquirir a propriedade, uma vez que o descobridor não pode conservar para si o objeto extraviado, tendo a obrigação de restituí-lo”.

Questão interessante corresponde a qual seria a natureza jurídica do instituto da descoberta. Mello[6] defende-a como um “ato-fato jurídico na espécie de ato real, ou seja, é o ato jurídico voltado para o resultado (no caso, a descoberta) independentemente da vontade do agente (no caso, a vontade de descobrir) em descobri-lo”. Registramos discórdia. O parágrafo único do artigo 1.233 do Código Civil é bem claro quando discrimina todos os atos que o descobridor deve realizar para ser reconhecido como tal, de modo que a descoberta não é um ato de mera acidentalidade, mas sim a reafirmação da vontade da pessoa que encontrou a coisa perdida em ser reconhecida como descobridora do bem.

O artigo 1.233 do Código Civil de 2002 é bem explícito em seu caput quando expõe que “quem quer que ache coisa alheia perdida há de restituí-la ao dono ou legítimo possuidor”, lembrando, em seu parágrafo único, que o descobridor, para assim ser reconhecido, deve procurar o dono ou possuidor da coisa; não o encontrando, deve entregá-la à autoridade competente. Tartuce[7] lembra que o descobridor é guiado pela boa-fé para realizar estes passos em busca do real dono ou possuidor do bem.


4. A RECOMPENSA PELA DESCOBERTA E RESTITUIÇÃO DE UM BEM AO SEU LEGÍTIMO DONO

A todo aquele que, nos moldes do já citado artigo 1.233 do Código Civil, for descobridor de coisa alheia, restituindo-a a seu dono ou possuidor ou entregando-a à autoridade competente para restituir, faz jus, caso o possuidor ou dono não opte por abandoná-la, a uma recompensa no valor mínimo de 5% (cinco por cento) do valor total da coisa restituída, bem como imbui-se no direito de cobrar os valores gastos com a conservação e transporte do bem achado, conforme dispõe o caput do artigo 1.234 do Código Civil de 2002. Algumas considerações sobre este instituto são necessárias.

4.1 O significado do termo “achádego”

Em primeiro lugar, uma curiosa questão doutrinária: o significado do termo “achádego”. Mello[8] entende que o termo significa a própria coisa achada, ao passo que Tartuce[9] e Gonçalves[10] defendem que a palavra significa a recompensa devida ao descobridor. Nesta questão terminológica, seguir-se-á a posição dos dois últimos autores.

4.2 O abandono da coisa perdida

Em sequência, a parte final do caput do artigo 1.234 do Código Civil fala que tanto o achádego como a indenização só serão devidos se o dono não optar por abandonar a coisa encontrada. O abandono da coisa, vale lembrar, pode ser expresso ou tácito.

O abandono expresso ocorre quando o descobridor encontra o dono ou possuidor da coisa achada e tenta restituir-lha diretamente, mas este a recusa, abandonando-a. Neste caso, como bem lembra Gonçalves[11], o descobridor ganha o direito de ocupar o bem e, nos termos do artigo 1.263 do Código Civil, adquirir-lhe a propriedade, pois a coisa “deixa de ser coisa perdida e passa a ser tida como abandonada”.

O abandono tácito, por outro lado, ocorre quando o descobridor não encontra o dono e entrega a coisa à autoridade competente[12], esta informa[13] o dono ou possuidor sobre a coisa achada e este não retoma o domínio do bem. Neste caso, o Município em que o objeto foi encontrado pode, nos moldes do artigo 1.237 do Código Civil, agir de duas formas: ou vende o objeto em hasta pública e entrega ao descobridor o valor do achádego somado à indenização pelas despesas de transporte e conservação (caput) ou abandona a coisa[14] em favor daquele que a descobriu (parágrafo único).

Desta forma, apesar da ressalva da parte final do caput do artigo 1.234 do Código Civil, o descobridor sempre terá para si assegurado o direito à percepção mínima de 5% (cinco por cento) do valor da coisa achada.

4.3 A responsabilidade do descobridor

Conforme disposição normativa do artigo 1.235 do Código Civil, o descobridor da coisa perdida será responsabilizado pelos prejuízos gerados ao proprietário ou possuidor legítimo do bem, desde que tenha agido com dolo. A configuração deste elemento é indispensável para que a culpa possa ser atribuída ao descobridor, sendo a imprudência, negligência ou imperícia insuficientes para responsabilizar o restituidor da coisa. Sobre esta questão, Tartuce[15] entende que

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A norma é clara no sentido de que o descobridor somente responde por dolo, ou seja, havendo clara intenção de prejudicar, o que deve ser provado pela outra parte, nos termos do art. 333, inc. I, do CPC. Desse modo, o descobridor não responde por culpa em sentido estrito (imprudência, negligência ou imperícia), pois há presunção relativa de sua boa-fé, que não pode induzir à sua culpa stricto sensu.

Gonçalves[16], por sua vez, leva a crer que a culpa grave pode ser equiparada ao dolo, citando um antigo princípio romano que, em suas palavras, foi acolhido pelo direito moderno. Apesar da importante lembrança, segue-se aqui a primeira posição apresentada.

4.4 A mensuração do quantum correspondente ao achádego

O parágrafo único do artigo 1.234 do Código Civil vigente apresenta os parâmetros pelos quais o Juiz deve guiar-se para determinar o valor da recompensa devida ao descobridor. Conforme o aludido dispositivo, devem-se considerar três aspectos, sejam estes o esforço desenvolvido pelo descobridor para encontrar o dono ou possuidor legítimo, as chances que aquele que perdeu o bem teria de encontrá-lo e a situação econômica das pessoas envolvidas na situação, respeitando-se, naturalmente, o percentual mínimo de 5% (cinco por cento) fixado no caput do dito artigo.

Assim, a análise que o magistrado deve fazer não é tão simples, sendo consideradas algumas circunstâncias relevantes à aferição do justo valor. Tartuce[17], inclusive, lembra que “a recompensa deve ser fixada com equidade, cabendo análise caso a caso pelo juiz da causa onde ela será fixada”.


5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Uma disposição legislativa que esteja imbuída de um valor moral é até natural, considerando-se os próprios princípios gerais norteadores do Direito. Uma norma que expressamente valorize um valor moral, num universo em que a legalidade, por vezes, sobrepõe-se à própria Justiça, por sua vez, é incomum.

Foi dentro desta ideia que este estudo desenvolveu-se. Para além de uma mera apresentação de aspectos técnicos, algo que esta singela contribuição também fez, o grande objetivo deste trabalho foi apresentar o instituto da recompensa devida àquele que, encontrando uma coisa alheia perdida, busca restituí-la a seu original dono ou possuidor, de modo a expor à comunidade científica este tão pouco abordado instituto.

Este instituto merece ser conhecido, visto que é uma diferente forma jurídica de reconhecimento ao tão válido aspecto moral do altruísmo. Que sejam, desta forma, juridicamente reconhecidos os atos de altruísmo, que sempre merecem reconhecimento.


REFERÊNCIAS

GAGLIANO, Pablo Stolze; FILHO, Rodolfo Pamplona. Novo Curso de Direito Civil: parte geral. 13. ed. Volume I. São Paulo: Saraiva, 2011.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: direito das coisas. 8. ed. Volume 5. São Paulo: Saraiva, 2013.

MELLO, Cleyson de Moraes. Código civil interpretado. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2007.

NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando. Direito Civil: direito das coisas. 4. ed. Volume 4. São Paulo: Método, 2012.


NOTAS

[1]GAGLIANO, Pablo Stolze; FILHO, Rodolfo Pamplona. Novo Curso de Direito Civil: parte geral. 13. ed. Volume I. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 49.

[2]Ibidem, p. 52.

[3]GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: direito das coisas. 8. ed. Volume 5. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 250, grifo do autor.

[4]NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 858.

[5]GONÇALVES, op. cit., idem, grifo do autor.

[6]MELLO, Cleyson de Moraes. Código civil interpretado. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2007. p. 975.

[7]TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando. Direito Civil: direito das coisas. 4. ed. Volume 4. São Paulo: Método, 2012. p. 191.

[8]MELLO, 2007, p. 975.

[9]TARTUCE; SIMÃO, op. cit., p. 192.

[10]GONÇALVES, 2013, p. 251.

[11]GONÇALVES, 2013, p. 251.

[12]Sendo esta, nos moldes do artigo 1.170 do Código de Processo Civil brasileiro, a autoridade judiciária ou policial.

[13]Nos moldes do artigo 1.236 do Código Civil de 2002.

[14]Sendo necessário, para tanto, que o valor desta seja diminuto.

[15]TARTUCE, SIMÃO, 2012, p. 193, grifo do autor.

[16]GONÇALVES, 2013, p. 252.

[17]TARTUCE; SIMÃO, 2012, p. 193.

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Sobre o autor
Péttrus de Medeiros Lucena

Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – CERES – Campus de Caicó.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LUCENA, Péttrus Medeiros. Achado, se devolvido, não é roubado, é devido: o direito de recompensa no ordenamento jurídico brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3999, 13 jun. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29461. Acesso em: 4 nov. 2024.

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