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Participação popular na tomada de decisão da esfera pública como pilar de cidadania e do Estado Democrático de Direito

16/09/2014 às 10:03
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A participação popular não se limita aos instrumentos clássicos de voto, referendo ou plebiscito. Esse texto analisa como a participação popular nas tomadas de decisões constituem um dos instrumentos de legitimação do Estado Brasileiro.

Um dos pilares do Estado Democrático de Direito é justamente a participação da população nas decisões públicas, trazendo a discussão ao âmbito dos interessados de maneira geral. Assim, ao longo do tempo, diversos institutos foram criados a fim de possibilitar essa maior integração entre sociedade e Estado, tais como o referendo, o plebiscito, consultas e audiência pública, entre outros.

Deste modo, permitiu-se à população ora a influência na gestão da coisa pública, ora a substituição do poder público no processo de tomada de decisão. Ademais, por meio da publicidade, a sociedade tem acesso à motivação administrativa e os atos fundamentados por ela.

Estes novos instrumentos foram criados, assim, especialmente a partir da necessidade de abertura à atuação de interesses cada vez mais diversos e não homogêneos. Isto porque a legitimidade não deriva mais da lei positiva isoladamente considerada, mas sim da participação popular na esfera pública. Esta é a concepção moderna da relação entre sociedade civil e Estado, com o fim do distanciamento radical entre administração e administrado, público e privado, autoridade e liberdade, com o aumento da influência popular na gestão do espaço estatal.

Objetiva-se, assim, o aumento da congruência entre a realidade social e o conteúdo das decisões administrativas. Esta sociedade civil interativa foi o principal ponto de transformação sociopolítico na reforma do Estado. É esta possibilidade de participação a principal marca da concepção de Estado Democrático de Direito. Desta maneira, como afirma Martins Júnior:

“Participação é decisiva para as democracias contemporâneas, contribuindo para a governabilidade (eficiência), a contenção de abusos (ilegalidade), a atenção de todos os interesses (justiça), a tomada de decisões mais sábias e prudentes (legitimidade), o desenvolvimento da responsabilidade das pessoas (civismo) e tornar os comandos estatais mais aceitáveis e facilmente obedecidos (ordem).” [1]

Deste modo, a democracia participativa não se resume à escolha dos governantes pelo povo. [2] Ela vai além da eleição, sendo necessária a interação também na tomada de decisões que envolvem direta ou indiretamente seus interesses individuais ou metaindividuais. Somente assim há de fato o exercício da cidadania globalmente considerada.

A repartição na condução dos interesses públicos entre a sociedade civil e o Estado maximaliza a democracia participativa, a legitimidade e a representatividade plural. Deste modo há a democratização da administração e de seus atos. Isto inclui não apenas a transparência da administrativa por meio da publicidade, para a discussão dos atos já acabados, mas também a interação na fase pré-decisional, por meio de debates públicos, consultas populares e outros meios de formação de opinião pública.

Ademais, houve a superação do monopólio do interesse público pelo Estado. A administração não é a única que persegue os interesses transindividuais. Outras entidades oriundas da organização da própria sociedade civil também visam tutelar estes direitos. Assim, a clássica distinção entre público e privado, Estado e sociedade civil não mais possui contornos tão nítidos, com a formação de entes intermediários, tais como associações, sindicatos, entre outros, que visam influir nas decisões não se seus interesses, mas sim da coletividade.

Há, pois, uma multiplicidade de interesses que não podem ser classificados como individuais, o que leva a um pluralismo dentro da própria administração pública. Daí também a necessidade do aumento da participação social na formação dos atos, visto que apenas assim essa heterogeneidade pode ser mantida.

Além disso, pode-se afirmar que esta participação aperfeiçoa a fiscalização social da gestão da coisa pública. Por meio da publicidade e com o conseqüente aumento de visibilidade dos atos pela comunidade, há o controle acerca da imparcialidade, legalidade, moralidade, razoabilidade e eficiência dos agentes públicos. [3] Estes são os contornos da nova democracia participativa. Assim, nos dizeres de Roberto Amaral:

“A democracia do Terceiro Milênio, sobre ser participativa, será universal, pois dela todos participarão; ignorando distorções econômicas ou sociais, ou raciais, ou de gênero, ou de origem ou de naturalidade; […] todos poderão participar ativa e diretamente, pois todos terão assento na nova ágora, que comportará toda a população.” [4]

A sociedade assim definiria se foram ou não atendidos os critérios da oportunidade da decisão e de sua adequação às demandas sociais. Rompe-se, desta maneira, o isolamento dos agentes públicos, abrindo caminhado para soluções que não sejam puramente burocráticas e que melhor atendam a realidade social. A diminuição gradual do tecnicismo, com a compreensão que os problemas devem ser solucionados de maneira global e não meramente formal, é uma das finalidades da participação popular na esfera estatal.

Ademais, a sociedade civil, ao influenciar nas decisões tomadas pela administração, determina também a legitimidade do direito e dos atos praticados. A formação democrática da vontade não retira suas forçar de um direito natural e metafísico, mas sim de pressupostos comunicativos os quais permitam a todos influenciarem no espaço público. Esse direito de participação em igualdade de chances, no processo de formação da vontade pública é inclusive apontado por Habermas como um dos direitos fundamentais nuclear do conceito de democracia. [5]

Apenas com a participação popular efetiva e ativa atingiremos verdadeiramente a democracia participativa. Ela se assenta não em cidadãos como sujeitos passivos da relação com o Estado, mas sim como verdadeiras fontes de todo o poder público. Assim, a sua interação no espaço público deixa de ser apenas presumida para se tornar concreta e influenciar as decisões a serem tomadas e legitimar os atos já decididos.

A legitimidade, dentro da concepção moderna de Estado, é fundamental para a permanência das instituições. Contudo, o próprio conceito de legitimidade variou historicamente. Até a Revolução Industrial, ela era tida apenas como uma questão de definição de pautas. Neste sentido, legítimo seria aquilo que estivesse em conformidade com a tradição e o jusnaturalismo racionalista. A legitimação era tida, assim, em grande medida, por meio do consentimento dado a um regime político em razão de sua longa permanência no poder. [6]

Com os crescentes movimentos sociais impulsionados pelo aumento da estratificação da sociedade, o conceito de tradição e a importância do jusnaturalismo racionalismo decresceram, com as transformações históricas tomando seus lugares. Também a legitimidade perde seu caráter existencialista e metafísico, tornando-se um construído histórico, a partir da construção e reconstrução de contexto determinados. [7] Nenhum Estado ou instituição permanece sem que haja um esforço contínuo de justificação. Assim, pode-se afirmar que a legitimidade é, em maior ou menor grau, resultado de uma técnica de legitimação. Afirma Comparato que até o século XX percebe-se um aumento crescente no número de intelectuais encarregados de exercer a legitimação da ordem social estabelecida. [8]

Todavia, o conceito de legitimidade do Estado democrático de Direito não mais está ligado a um grupo hermético de “intelectuais” que manipulam informações. Ele é determinado pela possibilidade de existência de um espaço público diferente da esfera estatal em que haja a comunicação livre e o exercício ativo da cidadania. Não pode existir apenas uma simulação dessa cidadania, pois é ela que fundamenta e determina a legitimidade do direito e do Estado. [9]

Ferraz Júnior defende que a legitimidade modernamente é constituída a partir de princípios ou regras legitimantes. Ele as divide em três grupos principais: regras de fixação de valores, regras de programação e regras de consecução. As primeiras seriam aquelas que permitem definir os traços constantes das Constituições. São, assim, regras materiais, dentre as quais se encontram a liberdade e a participação popular e a transparência administrativa. Neste sentido, afirma o jurista:

“Pela regra da transparência, uma Constituição é legitima, pois, quando se revela como mediação entre os membros da sociedade, que se manifestam, assim, uns perante os outros, como cidadãos. Uma constituição que não instaura a cidadania, mas relações de subserviência, é ilegítima.” [10]

Os princípios de programação, por sua vez, asseguram a legitimidade constitucional no sentido de sua permanência e adaptabilidade às mudanças sociais. Uma Constituição, para ser considerada legítima, necessita de acompanhar as alterações da realidade, modificando-se de acordo com o contexto em que se insere. Neste grupo encontram-se regras como as da intangibilidade, alterabilidade e projeção. [11]

Por fim, as regras de consecução garantem legitimidade a partir da própria incidência constitucional. Seus principais componentes são os princípios da onipotencialidade, da onicompreensividade e de eficácia eqüitativa. [12]

Percebe-se, pois, que o conceito de liberdade, na qual o cidadão pode atuar livre de represarias e emitir opiniões sem que seja censurado, é mister para a concretização desta participação popular aqui defendida. O indivíduo é livre, inicialmente, porque, sendo titular do poder, pode participar de seu exercício. Este o sentido da liberdade para os antigos. Alguns dos mecanismos para tanto são: as eleições, o plebiscito, o referendo, a iniciativa popular das leis.

A liberdade, de outro lado, é a segurança garantida nas fruições privadas. É dizer, desfrutam de espaços individuais de ação, intangíveis pelo Estado. Eis o sentido da liberdade para os modernos. São exemplos: o direito de propriedade, de exploração de atividade econômica, de manifestação e expressão. No Estado Democrático de Direito somam-se as liberdades nos dois sentidos, o antigo e o moderno: como garantia da participação no exercício do poder e como garantia da segurança nas fruições privadas. [13]

A participação popular na administração pública constitui, assim, uma liberdade que deve ser garantida a partir de praticas efetivas e não suposições. Neste sentido, o direito à publicidade dos atos administrativos seria uma das liberdades antigas, à medida que permite ao cidadão participar e influenciar na vida política.  “(…) A liberdade no sentido antigo traduz limite aos poderes do Estado, na medida em que o conjunto dos cidadãos controla e participa da formação dos órgãos públicos e do exercício de suas competências” [14] (grifo do autor).

Ademais, na definição habermasiana a publicidade pode também ser considerada uma liberdade de comunicação. Não haveria, segundo o autor, o Estado Democrático de Direito não apenas garante liberdades negativas, mas também “liberdades comunicativas, ele também mobiliza a participação dos cidadãos na disputa pública acerca de temas que concernem a todos coletivamente.” [15]

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Assim, o espaço público aberto constitucionalmente não se restringe apenas a sua corporificação física num documento escrito, mas na reativação do pilar da comunidade, na qual os cidadãos interagem entre si e com a esfera estatal. Os membros da sociedade deixam de ser administrados e tornam-se cidadãos ativos e que influem de fato os atos do poder tomados em seu nome.

Apenas assim poderá ocorrer a incorporação da sociedade civil com um dos intérpretes da Constituição tal como defendida por Peter Häberle. A integração ativa e participativa dos membros da comunidade como cidadãos, influenciando e decidindo na administração, é um dos pressupostos para a realização de uma sociedade aberta dos intérpretes da Constituição.

Desta maneira, a publicidade é um dos pressupostos da participação popular na esfera pública e na interpretação constitucional. Sem ela, não há como haver uma liberdade


Notas

[1] MARTINS JÚNIOR, op. cit., p. 298.

[2]DALLARI, op. cit, p. 247.

[3] MARTINS JÚNIOR, op. cit., p. 305.

[4] AMARAL, Roberto.  A Democracia Representativa Está Morta; Viva a Democracia Participativa! In: GRAU, Eros Roberto; GUERRA FILHO, Willis Santiago (org.).  Direito Constitucional: estudos em homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros Editores, 2001, p. 49.

[5] BINENBOJM, Gustavo. A Nova Jurisdição Constitucional Brasileira: legitimidade democrática e instrumentos de realização. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 107-111.

[6] COMPARATO, Fábio Konder. A Democratização dos Meios de Comunicação de Massa, In: GRAU, Eros Roberto; GUERRA FILHO, Willis Santiago (org.).  Direito Constitucional: estudos em homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros Editores, 2001, p. 150.

[7] FARIA, José Eduardo. A crise Constitucional e a Restauração da Legitimidade. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1985, p. 13.

[8] COMPARATO, op. cit., p. 153.

[9] DALLARI, Dalmo de Abreu. Estado de Direito e Cidadania. In: GRAU, Eros Roberto; GUERRA FILHO, Willis Santiago (org.).  Direito Constitucional: estudos em homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros Editores, 2001, p. 199.

[10] FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio; DINIZ, Maria Helena; GEORGAKILAS, Ritinha Alzira Stevenson. Constituição de 1988: legitimidade, vigência e eficácia, supremacia. São Paulo: Atlas, 1989, p. 25.

[11] Ibidem, p. 25-26.

[12] Ibidem, p. 26-27.

[13] SUNDFELD, op. cit., p. 115.

[14] Ibidem, p. 117.

[15] As bases pré-políticas e morais do Estado democrático. Jornal Folha de São Paulo, São Paulo, 24 abr. 2005. Caderno Mais!, p. 04.

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Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MANGIA, Cinthya Campos. Participação popular na tomada de decisão da esfera pública como pilar de cidadania e do Estado Democrático de Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4094, 16 set. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29663. Acesso em: 16 abr. 2024.

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