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Os Direitos Fundamentais e a tipologia das restrições a que estão submetidos

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Os Direitos Fundamentais não possuem caráter absoluto. Se assim o fosse, estaríamos diante da possibilidade de serem exercidos de forma arbitrária e desprovida de parâmetros, quando a intenção é pela forma mais justa e razoável.

Os Direitos Fundamentais são reconhecidos como posições jurídicas concernentes às pessoas, que, sob a ótica do direito constitucional positivo, foram, por seu conteúdo e importância, integradas ao texto da Constituição e, portanto, retiradas da esfera de disponibilidade dos poderes constituídos, quer sejam ou não integrantes do sistema constitucional positivado, ou seja, quer estejam ou não descritos no texto da constituição formal.[1]

Apesar de serem os direitos fundamentais universais, absolutos, históricos, inalienáveis e indisponíveis, constitucionalizados, vinculantes dos poderes públicos e aplicáveis imediatamente, em relações de fato e de direito, não possuem caráter absoluto. Se assim o fosse, estaríamos diante da possibilidade de serem exercidos de forma arbitrária e desprovida de parâmetros, quando a intenção é pela forma mais justa e razoável.

As restrições a direitos fundamentais podem ocorrer por determinação do texto constitucional, por reserva de lei restritiva, pela colisão entre direitos ou direitos e valores fundamentais, por força dos limites imanentes, ou pela reserva de jurisdição que decorra de uma colisão de direitos em caso concreto.


1. Restrição por determinação do texto constitucional

Não vamos nos aprofundar nessa definição. Estes são os casos mais claros de restrição que podemos encontrar, vez que estão expressamente previstos pelo texto constitucional. São verdadeiros mandamentos restritivos impostos pelo constituinte, a respeito dos quais não há dúvida em se obedecer. É o que encontramos, por exemplo, no artigo 136, § 1º, a-c, da Constituição, que, a respeito do estado de defesa, prevê a restrição aos direitos de reunião, sigilo de correspondência  e da comunicação telefônica.


2. Restrição por reserva legal

Entende-se por reserva legal, em relação às normas constitucionais, o fato de a Constituição permitir, em alguns casos, implícita ou explicitamente, a restrição de alguns direitos, por meio de lei, sendo por isso, chamada de reserva. É reservado à lei o direito de restringir a aplicação imediata e vinculante de determinadas normas e direitos fundamentais, sendo que a lei restritiva deverá ser editada para o fim precípuo indicado na norma originária, in casu, a norma constitucional.  São casos de normas constitucionais de eficácia contida ou limitada.

A restrição por reserva legal pode se dar explícita ou implicitamente. É explícita quando há disposição expressa na Constituição acerca de uma lei para regulamentar a matéria (norma de eficácia limitada) ou da possibilidade de que essa lei futuramente regule a matéria (norma de eficácia contida). E implícita quando a análise da norma, in concreto, possibilita que se visualize a necessidade clara de que se tenha uma lei para dirimir controvérsias, sob pena de ocorrer arbitrariedade ou abuso no exercício positivo ou negativo dos direitos. A reserva legal expressa poderá ser simples ou qualificada.

 Reserva legal simples encontramos nas hipóteses em que a Constituição apenas exige que a restrição seja prevista em lei, como  encontramos, p. eg., no inciso VII do artigo 5º da Constituição de 1988: “é assegurada, nos termos de lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares e internação coletiva”. São outros exemplos também os incisos VI, XV, XLV, XLVI e LVII. Há também casos em que o constituinte utiliza-se de formas menos precisas, submetendo o direito fundamental à aplicação de conceito ou instituto jurídico que reclama densificação. Para melhor esclarecer, vamos ao exemplo do inciso LXVI: “ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir liberdade provisória, com ou sem fiança.” Como se vê, é uma hipótese mais genérica, que submeterá à análise do legislador os casos em que se admitirá a liberdade provisória, ou seja, possibilitará uma interpretação da Constituição segundo a lei, que terá conteúdo constitucional. São outros exemplos os incisos XLIII e LXVII.[2]

Reserva legal qualificada ocorre quando a Constituição não se limita a exigir que eventual restrição seja prevista em lei, estabelecendo, também as condições especiais, os fins a serem perseguidos ou os meios a serem utilizados na restrição.[3]É uma forma mais complexa de restrição, pois que limita ainda mais a liberdades restritiva do legislador. Utilizamo-nos, a essa altura, de nosso objeto de estudo, qual seja, ao inciso XII do Artigo 5º da Carta Magna, para exemplificar: “é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.” (grifamos) Tais  imposições do constituinte impedem autoridades administrativas de decidirem acerca da quebra do sigilo e proíbem que o legislador a regulamente, por exemplo, para apurar infração administrativa. Além disso, deixam bem claro que só poderá haver restrição à comunicação telefônica.[4]

Há de se destacar, todavia, que a falta de previsão quanto à reserva legal não assegura maior efetividade à garantia fundamental, pois o esforço hermenêutico de compatibilização pode levar à redução do âmbito de proteção, ou mesmo legitimar a imposição de restrições. Vale também que a utilização abusiva dessas reservas pode reduzir ou nulificar a garantia outorgada pela Constituição.[5]

 Nos casos em que a Constituição não previu expressamente a existência de lei para regulamentar o exercício de determinado direito, mas percebe-se claramente a necessidade de que ela exista, estamos diante de uma reserva legal implícita. Duas observações devem ser feitas neste ponto. Primeiramente, percebemos que a norma por nós estudada encaixa-se nesse tipo de restrição, por se tratar de norma de eficácia restringível. Percebemos, ainda, que tal tipo de reserva confunde-se com a restrição devido à colisão, uma vez que, quando não se tem lei que legitime o direito do Estado de restringir, a justificativa para que se restrinja somente poderá ser aquela que esclareça que tal direito está sofrendo a restrição porque, no caso concreto, teve de prevalecer o direito de outrém, não mais importante, porém mais adequado. Por isso, cabe-nos a análise da colisão de direitos fundamentais e seus efeitos no plano restritivo de um direito em face do outro, o que chamamos de restrição devido à colisão de direitos.


3.  Restrição devido à colisão entre direitos e/ou direitos e valores fundamentais             

 São essas as palavras da Jurisprudência alemã que, sabiamente reproduzidas por Gilmar Ferreira Mendes[6],  definem nossa opinião:

Apenas a colisão entre direitos de terceiros e outros valores jurídicos com hierarquia constitucional podem excepcionalmente, em consideração à unidade da Constituição e à sua ordem de valores, legitimar o estabelecimento de restrições a direitos não submetidos a uma expressa reserva legal.”

Assim, temos que a restrição de um direito fundamental não submetido a reserva legal expressa é passível de ocorrer em função de seu embate com outro direito fundamental, norma de igual hierarquia no plano constitucional; ou com outro valor constitucional, não menos importante. Portanto, podem colidir direitos fundamentais consigo ou com outros valores consagrados pela Máxima Lei. Esta última hipótese é bem aclarada por Edilsom Pereira de Farias:

 “Sucede a colisão entre os direitos fundamentais e outros valores constitucionais, quando interesses individuais (tutelados por direitos fundamentais) se contrapõem a interesses da comunidade, reconhecidos também pela constituição, tais como: saúde pública, integridade territorial, família, patrimônio cultural, segurança pública e outros.” [7]

Quando ocorre a restrição em função da aplicação de outro direito ou valor constitucional, mais adequado ao caso concreto, dizemos que a restrição opera-se pela colisão de direitos. Imperioso é que o intérprete do caso concreto haja com razoabilidade, que lhe permita optar pela aplicação da norma que se lhe afigura mais própria. Importante ressaltar que a restrição de uma norma devido à aplicação de outra não implica na importância maior ou menor desta ou daquela, uma vez que, em se tratando de valores consagrados constitucionalmente, não há hierarquia. O que ocorre é apenas uma primazia de uma em relação  a outra, no caso concreto; primazia esta que pode ser inversa dependendo do caso que se venha a analisar. 


4. Restrição por reserva de jurisdição decorrente da colisão de direitos fundamentais

Entendemos estar incluída nas restrições diretamente constitucionais, bem como nas tácitas constitucionais, a restrição por reserva de jurisdição.

Explicando melhor: há casos em que o texto constitucional ou a lei infraconstitucional que o regulamenta traz explicitamente a necessidade de ordem judicial para a restrição de um direito (hipóteses de reserva de lei qualificada), daí serem casos de restrição por reserva de jurisdição diretamente constitucional.

Porém, quando o texto constitucional ou lei que o regulamenta não explicita a necessidade de ordem judicial para determinado tipo de ato restritivo de direito fundamental, acreditamos que esta dedução existe tacitamente, quando se trata de restrição que envolva conteúdo constante do núcleo essencial do direito, que não pode ser modificado. Uma restrição que afete a essência do direito fundamentalmente protegido somente poderá ser autorizada - e dependendo do caso concreto -, por aquele que interpreta e materializa a norma constitucional abstrata, ou seja, o juiz, responsável pelos provimentos jurisdicionais. Sempre que se estiver diante da possibilidade de reserva de jurisdição,deve esta ser regulamentada.

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As leis restritivas não podem diminuir a extensão e o alcance do núcleo essencial dos direitos fundamentais, por ser este o coração do direito, que não pode ser violado.[8]{C}Portanto, quando houver essa necessidade, provocada por um embate entre o direito e outro valor constitucional no caso concreto, é a jurisdição a responsável pela resolução, permitindo, por meio de um provimento judicial, se necessária, a devida afetação ao núcleo essencial, nos casos estabelecidos por lei.

Há casos em que ocorre colisão - entre direitos e valores constitucionalmente garantidos - e  não há previsão legal de resolução, ou porque o legislador não vislumbrou a hipótese, ou porque implica em afetação ao núcleo essencial do direito discutido, que a lei não pode invadir.

Vieira de Andrade aclara tal hipótese, admitindo que

“nem sempre se tratará de situações em que os direitos não existem enquanto tais, por se terem ultrapassado os limites (imanentes) de sua protecção constitucional. Estará em causa apenas um conflito entre o direito fundamental e outros valores comunitários, ou, mais correctamente, entre o  direito e o modo como o legislador (democrático) perspectiva ou define certos valores da comunidade. De facto, estaremos normalmente perante formas ou situações típicas (não anómalas) de exercício dos direitos, e tal modo que não é correcto concluir que a Constituição as não teve em vista ao formular a hipótese normativa. Só no caso concreto, em virtude da concorrência de outras circunstâncias, é que esse exercício vai colidir com outros direitos ou valores, que podem exigir o sacrifício parcial ou total (restritivo) do direito.”[9]

Se o sacrifício do direito, colocado por Vieira de Andrade, for atinente a matéria que não envolva o núcleo essencial, é necessário dispositivo legal que regule o exercício da restrição que se afigure necessária para que ela possa ser legitimada (desde que tal restrição não afete o núcleo essencial). Porém, se o sacrifício exigir que se afete o conteúdo essencial do direito fundamental, a lei não poderá, por si só, autorizá-lo. A necessidade do provimento jurisdicional para os casos de afetação ao núcleo essencial de direito fundamental depreende-se, v,g., do artigo 5º, inciso XII, da Constituição Federal, no tocante à possibilidade de interceptação das comunicações telefônicas mediante ordem judicial. Assim, além da lei, é o juiz quem deverá decidir de acordo com cada caso concreto.


Notas

[1]SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 2. ed. Porto Alegre: Livrara do advogado, 2001, p. 82.

[2]MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Hermenêutica Constitucional e Direitos fundamentais .Brasília: Brasília Jurídica, 2002, pp.232-236.

[3]MENDES. Op. cit., p. 238.

[4]  No caso do sigilo epistolar, não há reserva legal explícita, motivo pelo qual nos cabe a análise da possibilidade ou não de se considerar que ela exista implicitamente para tal caso. A esse respeito trataremos mais adiante, em capítulo oportuno.

[5]MENDES. Op. cit., p. 230.

[6]Op. cit., p. 240.

[7]FARIAS, Edilsom Pereira de. Colisão de direitos: a honra, a intimidade, a vida privada e a imagem versus a liberdade de expressão e informação.Porto Alegre: S.A. Fabris, 2000, p.155.

[8]FARIAS. Op. cit., p.79.

[9]ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. Coimbra, 1987, p. 231.  

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Sobre o autor
Juliana Silva Barros de Melo Sant'Ana

Graduada em Direito<br>Graduada em Administração de Empresas e Administração Pública<br>Pós-Graduada em Direito Público<br>Procuradora Federal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANT&#39;ANA, Juliana Silva Barros Melo. Os Direitos Fundamentais e a tipologia das restrições a que estão submetidos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4128, 20 out. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29909. Acesso em: 28 mar. 2024.

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