Introdução
Apesar do pregão não ser modalidade tão recente no ordenamento jurídico, são extremamente frequente dúvidas dos agentes administrativos e, também, dos licitantes, sobre a aplicabilidade das normas referentes à modalidade pregão. Para a correta resolução de dúvidas sobre a aplicação da legislação na modalidade pregão, é essencial que tenhamos a ciência de quais normas são efetivamente “gerais” e, portanto, de observância e aplicabilidade obrigatória em todo o território nacional e, quais os diplomas que comportam normas específicas sobre o tema (estes, com aplicação restrita à esfera federativa que o regulamentou). Pela importância do entendimento correto destes conceitos, nasce o presente artigo, visando facilitar o trabalho dos agentes administrativos e licitantes que lidam com o tema.
O conceito de normas gerais para fins de licitação
Antes de iniciarmos o tema relativo à legislação do Pregão, é necessária uma breve introdução a respeito do funcionamento da legislação sobre licitações, para que o leitor possua subsídios e sensibilidade para saber quais legislações terão aplicabilidade em suas licitações e quais não possuem aplicação automática – podendo, inclusive, serem afastadas. Para isso é imprescindível abordarmos o conceito das chamadas normas gerais para fins de licitação.
A Lei 8.666/93, regulamentando o art. 37, inc. XXI da Constituição Federal de 1988, veiculou normas gerais sobre licitações e contratos administrativos para toda a Administração Pública. É isso o que dispõe o art. 1º do Estatuto das Licitações. Tal afirmação gera a obrigatoriedade de enfrentarmos duas questões fundamentais sobre o tema: analisarmos o significado conceitual de normas gerais para fins de licitação e verificar se a Lei 8.666/93 veicula apenas normas gerais ou, também, normas especiais.
Sobre a primeira questão, a Constituição Federal de 1988 definiu claramente em seu art. 22, inc. XXVII, a competência privativa da União para instituição de normas gerais sobre licitações e contratos administrativos. Marçal Justen Filho[1] ensina que a expressão “normais gerais” consiste em um conceito jurídico indeterminado, resultando de um lado, na existência de um núcleo de certeza positiva - onde pode-se afirmar com precisão quais as normas efetivamente qualificáveis como gerais na Lei 8.666/93 - e, de outro, uma zona cinzenta de dúvidas. Quanto ao núcleo de certeza positiva, afirma o autor que o conceito de normas gerais “compreende os princípios e as regras destinadas a assegurar um regime jurídico uniforme para as licitações e as contratações administrativas em todas as órbitas federativas”, com o fito de assegurar a padronização mínima na atuação de toda a Administração Pública e a efetividade do controle tanto pelos órgãos externos, quanto pela comunidade.
A Constituição Federal, em seu art. 22, inc. XXVII, é de clareza solar ao determinar que a competência da União é privativa quanto à instituição de normas gerais sobre licitações e contratos administrativos. Isso significa que a União possui competência privativa para instituir normas gerais, cuja observância será obrigatória para todos os entes federativos, ou seja, toda a Administração Pública; significa, também, que tanto a União, quanto os Estados e Municípios, possuem competência para instituir normas específicas, com aplicabilidade restrita ao âmbito federativo de cada ente, desde que respeitem os delineamentos das normas gerais veiculadas pela União.
Nessa esteira, Marçal Justen Filho afirma que a CF/88 não atribuiu à União a competência privativa para legislar sobre licitações como um todo, mas apenas sobre normas gerais de licitações, concluindo que:
Logo, apenas as “normas gerais” são de obrigatória observância para as demais esferas de governo, que ficam liberadas para regular diversamente o restante, exercendo competência legislativa irredutível para dispor acerca das normas específicas.[2]
Delimitado o conceito de normas gerais, cumpre analisar se a Lei 8.666/93 veicula efetivamente, em todo seu texto normativo, somente normas gerais sobre licitações – aplicáveis a todos os entes federativos, ou seja, com aplicabilidade de caráter nacional - ou, também, normas especiais – com aplicabilidade tão somente à esfera federal.
Com a finalidade de trazer interpretação sobre quais normas são efetivamente gerais e cogentes à toda Administração Pública e quais são especiais e incidentes apenas sobre a Administração federal, Jessé Torres Pereira Junior[3] comenta artigo por artigo da Lei 8.666/93, informando quais possuem caráter geral e não-geral, afirmando que as normas gerais representam aproximadamente 80% do conjunto constante do Estatuto. Quanto aos 20% restantes, normas de caráter especiais, podem ser afastadas pela legislação estadual, municipal e distrital.
Salientamos, assim, que as normas existentes na Lei 8.666/93, de caráter não-geral – isto é, normas especiais – não deverão, por tal motivo, ser consideradas inválidas, mas somente ter seu âmbito de aplicabilidade limitado à esfera federal.[4] [5]
Desta forma, sempre que fizermos menção a legislações como sendo “normas gerais”, significa que possuem caráter nacional (isto é, são obrigatoriamente aplicáveis a todas as esferas federativas: União, Estados, Distrito Federal e Municípios). Exemplos de normas gerais para fins de licitação, de aplicabilidade nacional, são as seguintes: Lei 8.666/93, Lei 10.520/2002, Lei Complementar 123/2006.
Inversamente, quando indicarmos normas específicas da esfera federal, tais normas, a princípio, possuem aplicabilidade apenas na esfera Federal, não sendo automaticamente estendida para Estados e Municípios. Exemplos de Decretos Federais, com aplicabilidade na esfera federal (União): Decreto Federal 3.555 de 08 de agosto de 2000 (Pregão Presencial), Decreto Federal 5.450 de 31 de maio de 2005 (Pregão Eletrônico), Decreto Federal 7.892 de 23 de janeiro de 2013 (Sistema de Registro de Preços). Nestes casos, cada Estado ou Município poderá instituir normas próprias (podendo, ou não, acatar integralmente as normas federais), desde que não contrariem as normas gerais existentes sobre aquela matéria.
Surgimento do Pregão e Legislação aplicável ao tema
Quando da efetivação do procedimento de licitação, a legislação estabelece a utilização das chamadas “modalidades de licitação”. A modalidade de licitação traz a formatação daquela licitação, que implicará no seguimento de prazos, divulgação etc de acordo com a modalidade adotada. A Lei 8.666/93 prevê as seguintes modalidades: Concorrência, Tomada de Preços, Convite, Leilão e Concurso.
A concorrência é modalidade mais ampla, prevista para contratações de valores mais elevados, sendo aquela realizada entre quaisquer interessados que comprovem possuir os requisitos mínimos exigidos no edital para a execução do objeto (art. 22, § 1o , Lei 8.666/93).
Tomada de Preços é modalidade aberta aos interessados já cadastrados ou, aos não cadastrados que atendam às condições necessárias de cadastramento até três dias corridos anteriores à data marcada para o recebimento das propostas (art. 22, §2°, Lei 8.666/93).
O Convite será realizado entre sujeitos convidados pela Administração, estejam cadastrados ou não e; sujeitos que já estejam cadastrados e, apesar de não terem sido convidados, manifestem a intenção de participar do certame até 24 horas antes da sessão. (art. 22, §3°, Lei 8.666/93).
Conforme entendimento do saudoso Diógenes Gasparini, aqueles que não foram convidados e que não estejam cadastrados, não poderão participar do convite, mesmo que manifestem a intenção no prazo de 24 horas que antecedem a entrega das propostas (GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo, p. 507).
A modalidade leilão tem utilização para venda de bens móveis ou alienação de bens imóveis da Administração (art. 22, §5°, Lei 8.666/93) e o concurso para escolha de trabalho técnico, científico ou artístico, mediante a instituição de prêmios ou remuneração aos vencedores (art. 22, §4°, Lei 8.666/93).
Dentre as modalidades Concorrência, Tomada de preços e Convite, o critério que determina qual a modalidade deverá ser adotada pelo agente público em determinada licitação é o valor do objeto a ser contratado, de acordo com os valores-limites estabelecidos no art. 23 da Lei 8.666/93:
Art. 23. As modalidades de licitação a que se referem os incisos I a III do artigo anterior serão determinadas em função dos seguintes limites, tendo em vista o valor estimado da contratação:
I - para obras e serviços de engenharia:
a) convite - até R$ 150.000,00 (cento e cinquenta mil reais);
b) tomada de preços - até R$ 1.500.000,00 (um milhão e quinhentos mil reais);
c) concorrência: acima de R$ 1.500.000,00 (um milhão e quinhentos mil reais);
II - para compras e serviços não referidos no inciso anterior:
a) convite - até R$ 80.000,00 (oitenta mil reais);
b) tomada de preços - até R$ 650.000,00 (seiscentos e cinquenta mil reais);
c) concorrência - acima de R$ 650.000,00 (seiscentos e cinquenta mil reais).
Além das modalidades acima expostas, em julho de 1997 surgiu, inicialmente na ANATEL (Agência Nacional de Telecomunicações), a modalidade Pregão, pela Lei Geral de Telecomunicações – Lei 9.472 de 16.7.1997, que autorizava a adoção do pregão para aquisição de bens e serviços comuns (Arts. 54 a 57) apenas na ANATEL. Após, o pregão foi estendido a todas as agências reguladoras, pela Lei Federal nº 9.986 de 18 de julho de 2000 (Art. 37).
Posteriormente, foi editada a Medida Provisória 2.026, em 4 de maio de 2000, instituindo o pregão apenas no âmbito da União. Esta MP foi reeditada por 18 (dezoito) vezes e renumerada, até ser convertida na Lei 10.520 de 17 de julho de 2002 – Lei do Pregão, com aplicabilidade à União, Estados, Distrito Federal e Municípios.
Entretanto, antes do advento da Lei 10.520/2002, surgiu o Decreto Federal 3.555 de 08 de agosto de 2000, regulamentando o Pregão Presencial, com aplicabilidade restrita à esfera federal (União). No que tange ao Pregão Eletrônico, ainda na esfera federal, foi instituído o Decreto Federal nº 3.697, de 21 de dezembro de 2000, posteriormente revogado pelo atual Decreto Federal nº 5.450, de 31 de maio de 2005.
Na atualidade, portanto, a legislação do pregão pode ser esquematizada da seguinte forma:
1)LEGISLAÇÃO PREGÃO:
?LEI 10.520/2002
Válida em todo território Nacional (União, Estados, DF e Municípios)
•APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA DA
? LEI 8.666/93
Válida em todo território Nacional (União, Estados, DF e Municípios)
•ESFERA FEDERAL (UNIÃO):
?Lei 10.520/2002
?Decreto 3.555/2000 (Presencial)
?Decreto 5.450/2005 (Eletrônico)
•ESTADOS, DF E MUNICÍPIOS:
?Lei 10.520/2002
•?Podem instituir normas específicas, aplicáveis restritamente ao âmbito federativo de cada ente, desde que não contrariem as normas gerais de licitação
O Decreto 3.555/00 foi editado quando vigente as medidas provisórias que instituíram a modalidade pregão, sendo anterior, portanto, à Lei 10.520/02. Dessa forma, nas contradições existentes entre estes dois diplomas, deverá prevalecer a Lei 10.520/02.
Apesar de os Decretos Federais nº 3.555/2000 (Pregão Presencial) e 5.450/2005 (Pregão Eletrônico) não terem aplicação automática aos Estados, Distrito Federal e Municípios, estes poderão baixar normas próprias nas respectivas esferas podendo, inclusive, adotar em regulamento próprio, o da União. Reitere-se, assim, que Estados, Distrito Federal e Municípios poderão editar suas próprias regras, respeitando os delineamentos da Lei 10.520/2002 (normas gerais).
Conforme a melhor doutrina[6], como a Lei 10.520/02 é autoaplicável, Estados, Distrito Federal e Municípios podem por em prática o pregão presencial sem necessidade de instituírem regulamentação própria. Entretanto, o mesmo não ocorre com o pregão eletrônico, uma vez que a Lei 10.520/02 não o disciplinou efetivamente, remetendo ao regulamento fazê-lo[7]. Assim, o pregão eletrônico só pode ser adotado nos Estados, DF e Municípios se existente decreto próprio destes entes federativos.
Por fim, importante notar que a Lei 8.666/93 é aplicável subsidiariamente ao pregão[8]. Isso significa que:
- A licitação na modalidade pregão, ao receber tratamento normativo próprio, será regida pela Lei 10.520/2002, de modo que havendo contrariedade entre as normas da Lei 10.520/2002 e da Lei 8.666/93, valerá a primeira (princípio da especialização), restando excluída a segunda;
- Por outro lado, em caso de omissões ou lacunas da Lei 10.520/02(ou seja, matérias nas quais a Lei do Pregão não tratou ou tratou insuficientemente), será aplicável a Lei 8.666/93. É, por exemplo, o que ocorre após a assinatura do contrato administrativo decorrente de licitação na modalidade pregão: a Lei do Pregão 10.520/02, não trata da matéria do contrato administrativo após sua assinatura, ocasião na qual o fato passará a ser regido pela Lei 8.666/93 que traz o regramento geral sobre os contratos administrativos.
São estes os entendimentos necessários para minimizar problemáticas no momento de aplicação da correta legislação às licitações processadas pela modalidade pregão.
[1] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 14. ed. São Paulo: Dialética, 2010, p.15.
[2] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 14. ed. São Paulo: Dialética, 2010, p. 16-17.
[3] JUNIOR, Jessé Torres Pereira. Comentários à lei das licitações e contratações da administração pública. 8. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p.17.
[4] Nesse sentido, ensina Marçal Justen, que negar condição de norma geral a um dispositivo da Lei 8.666 não equivale a negar-lhe sua constitucionalidade, mas apenas que o dispositivo será considerado uma disposição específica no âmbito da União, estando liberados os demais entes federativos para disciplinas com autonomia a mesma matéria. JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 14. ed. São Paulo: Dialética, 2010, p. 19.
[5] Sobre este tema, interessante trazer a tona o julgamento da ADIn 3.670-0 Distrito Federal, em 02 de abril de 2007, Ministro Relator Sepúlveda Pertence reconhecendo, por unanimidade de votos, a inconstitucionalidade da Lei Distrital nº 3.705, de 21 de novembro de 2005, que proibiu a contratação pela Administração Pública direta e indireta do Distrito Federal de pessoas jurídicas de direito privado que, comprovadamente, discriminem na contratação de empregados, pessoas que estejam com o nome incluído nos serviços de proteção ao crédito, por invasão de competência privativa da União pelo DF.Referida Lei Distrital estabeleceu, em seu art. 1º: “Ficam proibidas de firmar contrato com a administração pública direta, indireta e autárquica as pessoas jurídicas de direito privado que comprovadamente discriminarem na contratação de mão-de-obra pessoas que estejam com o nome incluído nos serviços de proteção ao crédito, ressalvados os casos de falta contumaz de pagamentos de dívidas legalmente exigíveis”.
Neste caso, o voto do relator julgou a inconstitucionalidade da Lei distrital tanto do ponto de vista formal (por invasão, pelo Distrito Federal, de matéria de competência legislativa privativa da União no que tange às normas gerais de licitações e contratos administrativos), como do ponto de vista material (pela criação de critério de diferenciação violador do princípio da igualdade, uma vez que o texto constitucional apenas permite critérios de diferenciação necessários à garantia da execução contratual).
[6] NIEBUHR, Joel de Menezes. Pregão Presencial e Eletrônico. 6.ed. Belo Horizonte: Ed. Fórum, 2011, p. 31. No mesmo sentido JUSTEN FILHO, Marçal. Pregão (comentários à legislação do pregão comum e eletrônico). 4. ed. São Paulo: Dialética, 2005, p. 23.
[7] Lei 10.520, art. 2º, §1º: “poderá ser realizado o pregão por meio da utilização de recursos de tecnologia da informação, nos termos de regulamentação específica”.
[8] É o que dispõe o art. 9º, da Lei 10.520/2002: Art. 9º Aplicam-se subsidiariamente, para a modalidade de pregão, as normas da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993.