Fico bastante preocupado quando leio textos como o que foi publicado no website Jus Navigandi exigindo o fim da Justiça do Trabalho.
O predomínio do capital já é avassalador mesmo com a existência da Justiça do Trabalho. Prova disto é a avalanche de processos que atolam as Varas do Trabalho e os TRTs porque os empregadores se recusam a cumprir suas obrigações trabalhistas. O que seria da economia brasileira se a Justiça do Trabalho fosse extinta?
Há países em que os trabalhadores não tem qualquer proteção trabalhistas. As taxas de crescimento deles geralmente são maiores que as do Brasil. O custo humanitário desta maior eficiência econômica nunca é levado em conta pelos defensores da extinção da Justiça do Trabalho.
A economia do país não deve visar apenas crescimento da produção de bens de consumo, o aumento da produtividade dos empregados, a maximização dos lucros dos empresários. Exportar ou morrer, dizem os ideólogos do capitalismo predatório. Amém! – respondem alguns advogados acreditando que se pode fazer isto revogando a CLT e desmantelando a Justiça do Trabalho. A finalidade da economia é proporcionar bem estar às pessoas, inclusive àquelas que desgastam suas vidas operando as máquinas que produzem as coisas que serão comercializadas.
Os defensores da desregulamentação trabalhista e da destruição da Justiça do Trabalho partem de um mito: o de que o crescimento econômico é bem em si mesmo que deve ser alcançado a qualquer custo. Mito este que já na década de 1970 vinha sendo questionado por economistas como E. J. Michan, que é bastante eloqüente:
“...as fontes principais de bem-estar não são encontradas em crescimento econômico per se, mas em uma forma mais seletiva de desenvolvimento que deve incluir uma radical remodelação de nosso ambiente físico na qual se tenha principalmente em mente as necessidades de vida aprazível e não as necessidades de tráfego e indústria.” (DESENVOLVIMENTO A QUE PREÇO?, editora Ibrasa, 1976, p. 32)
O condicionamento intelectual que leva alguns a não ver os benefícios da regulamentação do trabalho e a existência da Justiça do Trabalho é evidente. Como afirma o referido economista britânico:
“O público, durante muito tempo condicionado por seus jornais, não tem a menor dúvida de que precisamos exportar para sobreviver. Se conseguimos sobreviver durante tanto tempo sem exportar o suficiente para ‘equilibrar nosso orçamento no mundo’, presumivelmente isto aconteceu porque o mundo foi complacente conosco até agora. A transição de mentalidade de exportação para mercantilismo é, porém, rápida e fácil. Não é incomum grandes pedidos de exportação, obtidos ou perdidos, ocuparem a primeira página dos jornais. Aparentemente, mercadorias exportadas emitem um odor de santidade negado às mercadorias comuns ou hortigranjeiras que ficam para ser consumidas no interior do país. Persiste a impressão de que por meio das exportações amontoamos reservas de forças econômicas juntamente com divisas estrangeiras e que, importando, nós dissipamos.” (DESENVOLVIMENTO A QUE PREÇO?, editora Ibrasa, 1976, p. 45/46)
Um pouco mais adiante como E. J. Michan mostra a diferença que existe entre economia e sua representação jornalística vulgar:
“O economista treinado, porém, tem presente em sua mente a noção de uma quantidade ‘ideal’ ou fluxo de coisas ‘ideal’. O volume ideal de comércio seria o exatamente certo (em um sentido a ser indicado mais tarde), mais ou menos do qual deve ser evitado. Embora este conceito seja bastante direto, como veremos, devido a um ambiente econômico amplamente volátil é praticamente impossível medir esse volume ideal de comércio exterior com pretensão a qualquer coisa que se aproxime de exatidão. Apesar de tudo isso, a noção de um volume ideal de comércio como meta a ser atingida poderia com vantagem substituir o atual ponto de vista mercantilista predominante entre os homens de negócio, jornalista e políticos. Aumentaria sua receptividade à possibilidade, probabilidade mesmo, de ser grande demais o volume de nosso comércio exterior; de ficarmos mais confortáveis com um volume de comércio menor.” (DENVOLVIMENTO A QUE PREÇO?, editora Ibrasa, 1976, p. 46)
A conclusão é evidente. Crescer mais, produzir mais, exportar mais, reduzir os custos (ou praticar dumping social) são alternativas, mas podem não ser a melhor coisa a fazer num determinado momento da história econômica de um país. E. J. Michan é absolutamente categórico:
“Não há ‘coisas obrigatórias’ em comércio internacional, como de fato não há no terreno da economia política. Slogans como exportar ou perecer são uma forma enganosa de retórica. A economia interessa-se, inter alia, pela investigação das implicações de escolhas alternativas que estão abertas a nós. E se homens presumivelmente honestos nos falam como se de fato não existisse escolha, fazem-no na ignorância das oportunidades que nos estão abertas ou então na convicção – que de vez em quanto, pelo menos, deveria ser tornada explicita – de que devemos concordar com eles e rejeitar todas as alternativas mesmo que as conheçamos.” (DESENVOLVIMENTO A QUE PREÇO?, editora Ibrasa, 1976, p. 47)
Apesar da retórica dos jornalistas econômicos e dos advogados que se deixam influenciar pelos mitos que os jornais divulgam diariamente, rebaixar os padrões das relações do trabalho no Brasil e desmantelar a Justiça do Trabalho não é um imperativo categórico imposto pela ciência econômica. Isto é apenas uma escolha, uma escolha que não leva em conta o bem estar da população em geral, o qual por sua vez é um objeto de preocupação dos cientistas que se devotam à economia política. Ao contrário dos jornalistas, os economistas são capazes de admitir que produzir menos, exportar menos e crescer menos também são alternativas político/econômicas perfeitamente racionais ou necessárias num determinado contexto histórico, como E. J. Michan já afirmava na década de 1970.
Entre os mitos que sugerem a inevitabilidade de praticar dumping social para poder exportar mais, crescer mais e maximizar os lucros, está o “potencial de crescimento” do Brasil. O desmantelamento da Justiça do Trabalho seria indispensável porque a mesma estaria limitando ou reduzindo nosso “potencial de crescimento”. Já na década de 1970 o economista britânico citado havia notado que:
“Uma expressão simples como ‘potencial de crescimento’ é carregada de compulsão: sugere que há desperdício sempre que deixamos, como inevitavelmente fazemos, de realizar esse crescimento potencial. É uma expressão apropriada à visão tecnocrática das coisas, que encara o país como uma espécie de vasta casa de força, na qual cada homem ou mulher adulto é uma unidade potencial de energia a ser ligada a um sistema gerador do qual flui essa coisa vital chamada produção industrial. E uma vez que essa escolha pode ser medida estatisticamente como PIB (Produto Interno Bruto), segue-se que quanto mais melhor. Considerados como casas de força para produção do PIB, certos países parecem ter desempenho melhor que a Grã-Bretanha [ou que o Brasil]. É obvio que, portanto, que devemos fazer todo esforço para alcançá-los. Além disso, outros países usam mais engenheiros e mais doutores em Filosofia por milhão de habitantes do que nós. Para continuar, a produção de aço poderia, se nos esforçássemos o suficiente, aumentar para z milhões de toneladas em 1970 [ou em 2015], tanto per capita quanto os Estados Unidos têm agora. Em conseqüência, precisamos expandir a capacidade siderúrgica a w por cento ao ano. Também, a fim de que toda família na Grã-Bretanha [ou Brasil] tenha seu carro, em 1975 [ou em 2015] , precisamos expandir a indústria automobilística a v por cento ao ano. Com tais ‘necessidades da indústria’ para serem atendidas, precisaremos mais transporte comercial e, portanto, mais importações de combustível. Conseqüentemente precisamos trabalhar mais a fim de pagar coisas de que precisamos. E assim por diante, vamos nós, escorregando de escolhas implícitas para imperativos explícitos.” (DESENVOLVIMENTO A QUE PREÇO?, editora Ibrasa, 1976, p. 39)
O autor do texto “Pelo Fim da Justiça do Trabalho” também escorrega de escolhas implícitas para imperativos explícitos. É isto que ocorre quando jornalistas e advogados procuram soluções econômicas sem se dar ao trabalho de estudar economia, ciência que vai além dos mitos neocapitalitas divulgados pelos jornais e telejornais. Ontem mesmo, o Jornal da Gazeta divulgou um destes mitos ao noticiar a queda na produção de carros, fato que o comentarista econômico do telejornal creditou ao desanimo dos consumidores que não querem comprar carros em razão da situação econômica do país.
Do jeito que o telejornalista noticiou o fato, ficou parecendo que estamos à beira de um colapso (apesar taxa de desemprego no Brasil ser a mais baixa dos últimos 20 anos). Nem ocorreu ao suposto especialista em economia que o problema decorre do excesso de produção de veículos e da redução das importações de automóveis brasileiros. Além disto, o comentarista do Jornal da Gazeta (que costumo chamar de Paulo Fancis genérico, pois é evidente que ele tenta imitar o falecido comentarista da Rede Globo) se mostra muito ignorante, pois é incapaz de ver os benefícios econômicos marginais decorrentes da redução da produção de carros: em razão das férias coletivas dadas pelas montadoras aos seus empregados haverá mais energia elétrica e água à disposição dos outros industriais; o não aumento do número de carros rodando nas ruas significará uma não piora do trânsito e a diminuição do ritmo de crescimento do consumo de combustível e da poluição atmosférica (fenômeno que beneficiará a saúde de todos, inclusive dos jornalistas econômicos, levando o SUS gastar menos dinheiro com cuidados médicos das vítimas da poluição) etc.
A prática de dumping social por alguns países não o transforma numa escolha obrigatória para o Brasil. Muito pelo contrário, ao invés de rebaixar os padrões de suas relações de trabalho e destruir a Justiça do Trabalho, nosso país pode e deve conservá-los e lutar para que o dumping social seja abandonado onde tem sido praticado.
O bem estar da população brasileira é algo que devemos preservar e, se possível ampliar, pois é isto que a economia política almeja. O bem estar das populações super-exploradas nos países que crescem mais e exportam mais (maximizando os lucros dos seus empresários à custa do sofrimento dos seus trabalhadores) pode ser transformado numa cláusula limitadora de importações capaz de proteger nosso mercado e elevar os padrões das relações de trabalho nos países que praticam dumping social? Ao invés de destruir nossa Justiça do Trabalho porque não estimular os nossos concorrentes a criar Justiças semelhantes para proteger seus trabalhadores do dumping social que tem praticado? As alternativas são muitas, não estamos obrigados a desregulamentar nossas relações de trabalho ou destruir nossa Justiça do Trabalho. De fato, creio que o melhor a fazer neste momento é ampliá-la e melhorá-la para que ela sirva de um modelo a ser exportado pelo Brasil.