Resumo: A relação tributária entre o Fisco e o contribuinte, apesar de conter traços do direito obrigacional, não pode se sujeitar a regras inadequadas para a sua realidade, ainda mais quando contraria dispositivos do CTN e os Princípios do Direito Constitucional Tributário. Ressalta-se, contudo, que não é autonomia do Direito Tributário que se defende, mas a utilização de institutos de maneira apropriada. Aqui, tem-se como objetivo específico o estudo acerca do instituto jurídico da prescrição no campo do direito tributário, visando demonstrar que, nesta seara, os seus efeitos têm um plus em relação aos da Teoria Geral do Direito. Para deslinde do feito, atestar-se-á tanto para os princípios do Direito Constitucional Tributário quanto para as demais previsões das leis infraconstitucionais, máxime o art. 156, inciso V, do Código Tributário Nacional. Como objetivo geral, será defendida a impossibilidade de as Fazendas Públicas perceberem créditos atingidos pelos efeitos da prescrição, hipótese pela qual o posicionamento adotado será a favor de os contribuintes poderem reaver este quantum indevidamente pago, exaurindo, afinal, todo o tema proposto.
Palavras chave: Prescrição. Pretensão. Obrigação tributária. Crédito tributário. Repetição de Indébito.
1. INTRODUÇÃO
A Carta Magna de 1988 foi promulgada logo após um passado sombrio da história brasileira, o período da ditadura militar. Talvez, por isso, a fim de não abrir brechas para o autoritarismo dos governantes, que ela tenha sido elaborada de forma tão minuciosa e consistente. Seu próprio preâmbulo[1], que tem a função de “ponte no tempo, como documento que, simultaneamente, fala no presente e para o presente, evocando o passado e mirando o futuro” [2], já demonstra o seu desiderato de, sob o manto de uma democracia de direito, salvaguardar direitos necessários para a realização dos indivíduos e, também, restringir o espaço para arbítrios.
Com previsão expressa no Capítulo I, do Título VI, da CRFB, denominado “Sistema Tributário Nacional”, evidencia-se a o cuidado do constituinte quanto à intervenção do Estado na vida do particular. Isso porque se teve em mente que o tributo é um meio de o ente público invadir a esfera privada – vez que se trata de uma obrigação pecuniária compulsória[3] -, sendo, portanto, imprescindível todo esse zelo. Foi nessa toada que a delimitação dos contornos das competências tributárias da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, bem como o tracejado das regras e princípios norteadores para os legisladores infraconstitucionais, figuraram de cabedal tomo para alcançar referido anseio.
A despeito disso, para se evitar juízos de valores maniqueístas com relação à tributação, nunca se pode olvidar que “a tributação é, sem sombra de dúvida, o instrumento de que se tem valido a economia capitalista para sobreviver”[4], razão pela qual o Estado não desenvolveria, satisfatoriamente, as suas funções precípuas, se não lançasse mão desse pode-dever (inteligência do §único do artigo 142 do CTN)[5].
Destarte, há várias nuances que devem ser observadas, antes de, afinal, concluirmos se indigitada intervenção estatal está se dando de forma justa ou não.
No tocante ao estudo do instituto jurídico prescrição, sua importância eside na necessidade do enfrentamento de uma matéria afeta à ordem pública - principalmente no que se refere à preservação da segurança e confiança dos sujeitos nela envolvidos -, mas de pouco aprofundamento pela doutrina tributária, como será verificado adiante.
2. PRESCRIÇÃO
2.1 ORIGEM HISTÓRICA
Etimologicamente, a palavra prescrição “deriva do vocábulo latino “praescripto”, derivado, por sua vez, do verbo praescribere, formado de prae (antes) e de scribere (escrever). A significação literal é óbvia: escrever antes ou escrever previamente.”[6]
Seu surgimento se deu na Legendária Roma, quando se instaurou o procedimento per formulas (período Clássico), logo após o fim do sistema processual da legis actiones (período Pré-Clássico), e que perdurou até a ascensão Diocleciano (284 d. C)[7].
Naqueles tempos, a solução dos litígios era mediada pelo pretor, figura eminentemente política, nomeada por uma autoridade, que, não raras vezes, estava despido de qualquer conhecimento jurídico[8]. Seu julgamento se baseava em fórmulas predeterminadas, que já previam um tipo de ação para cada direito pleiteado. Assim, caso um individuo pretendesse uma tutela que não constava da equação preestabelecida, teria sua pretensão, fatalmente, fadada ao fracasso[9].
Com a edição da Lex Aebutia, cuja data não é muito precisa, mas remonta entre os anos de 149 e 126 a. C[10], os pretores passaram a poder criar novas “ações”, momento em que se afloraram as denominadas “ações temporárias”, que deveriam durar dentro de um determinado prazo, sob pena de serem declaradas extintas. Assim, nas hipóteses em que o autor demandasse uma ação temporária sem obedecer ao lapso temporal, o pretor, ao exarar a fórmula para o caso concreto, dispunha, na parte introdutória, a chamada praescrito, declarando o fim da ação[11].
Conclui-se que a acepção do termo prescrição de outrora era bem diferente da atualidade, tendo em vista que se aproximava de exceção de direito processual - atacando a própria ação (ver item 2.3.1) -, e não de direito material como ocorre nos dias de hoje, por força cogente do artigo 189 do CC/02 e do inciso IV, do artigo 269 do Código de Processo Civil.
2.2 NATUREZA JURÍDICA
A prescrição é um fato jurídico no qual estão ínsitos preceitos de segurança jurídica, sendo, pois, de sua natureza impedir a perpetuidade de direitos, proporcionando maior equilíbrio e previsibilidade às relações jurídicas[12].
Assim sendo, tendo em vista o escopo de reduzir as circunstâncias de incertezas, criadas pelas inúmeras possibilidades da complexa sociedade contemporânea, dessume-se que a prescrição é figura essencial para que o Estado possa atingir a sua função apaziguadora de ânimos.
2.3 CONCEITO: VISÃO CRÍTICA
2.3.1 SUPERAÇÃO OU AFIRMAÇÃO DE PARADIGMA: DISTINÇÃO ENTRE DIREITO DE AÇÃO E PRETENSÃO
Talvez pelo fato de o Direito Romano ter influenciado tanto o Direito Nacional, arraigando-se principalmente nos institutos da Teoria Geral do Direito, que muitos doutrinadores, julgadores e legisladores tenham sido levados a cometerem alguns deslizes, ao anotarem uma vinculação conceitualmente necessária entre direito de ação e o direito a ser afirmado em juízo.
Nesse sentido, DIDIER assenta que:
esta vinculação do direito de ação ao direito material ainda é bastante visível nas leis civis, que vez por outra falam que alguém ‘tem ação contra outrem. Fala-se, por exemplo, em ‘ação regressiva’, como sinônimo de direito de reembolso.[13]
Dessa forma, mesmo após a famosa celeuma entre Windsheid e Muther, por volta do século XIX, na qual “acabou por demonstrar que são realidades distintas o direito lesado e ação”[14], permaneceu-se a dificuldade de se destacar essas duas figuras diversas (direito subjetivo de ação e o direito subjetivo violado), podendo ser verificada até os dias recentes, especialmente no que concerne a definição do conceito de prescrição.
Exemplos dessa equivocidade não nos faltam.
Para BALEEIRO, atualizado por DERZI, v.g., “a prescrição atinge, assim, o direito de ação, que visa a pleitear a reparação de direito lesado.”[15]
Seguindo, perigosamente, o mesmo caminho, COÊLHO entende que “é cediço afirmar que a prescrição do direito de ação somente a extingue, deixando intacto o direito material que lhe conferia substrato.”[16]
Não destoando de seus colegas, MACHADO assevera que “na Teoria Geral do Direito a prescrição é a morte da ação que tutela o direito, pelo decurso do tempo previsto em lei para esse fim..”[17]
Apesar de perfilharmos os posicionamentos de todos esses eminentes estudiosos em inúmeras questões, não podemos corroborar a tese de que a prescrição importa no fim do direito de ação. Em vez disso, fazemos de nossas palavras as de CAHALI, quem há anos defende que “referido critério não resiste a critica que lhe tem sido endereçada, em especial desde que tomou corpo a teoria autonomista de ação como remédio jurídico processual, seja sob a forma de direito potestativo, seja sob a forma de direito público subjetivo.”[18]
Aliás, é nesse rumo que a hodierna processualística entende que o direito de ação é um direito fundamental assegurado pela Constituição de 1988, do qual se derivam outros direitos ou princípios, tais como “um processo devido (adequado, tempestivo, efetivo e leal), em que se respeitem todas as garantias processuais (contraditório, juiz natural, proibição de utilização de prova ilícita etc.)”[19].
Como sói, THEODORO Jr. diferencia o direito de ação o direito a ela subjacente com inteira sabedoria, dizendo que “a ação – direito subjetivo público exercitado pelo autor contra o Estado-juiz – revela, pois, a par do pedido de tutela jurídica estatal uma pretensão de direito material contra o réu (sujeito passivo do processo)”.[20]
Assim, apesar de serem figuras indissociáveis, visto que seria impossível alcançar uma solução para a lide sem haver o ajuizamento de uma ação e a adequada dedução do direito por ela sustentado, é inconteste que são figuras inconfundíveis[21]. Nota-se, pois, a existência de duas espécies próximas, porém, que não se misturam, a saber: i) a ação processual, na qual o indivíduo exercita seu direito de ação constitucional; e ii) a pretensão de direito material, em decorrência do direito subjetivo lesado, que será deduzido em juízo mediante a petição inicial.
Por isso, quando se diz que a prescrição fulmina a ação que tutela o direito, confunde-se duas realidades autônomas. Ora, obviamente, o exercício do direito de ação não se trata daquilo que será pretendido em juízo. Noutro giro, assevera-se que a ação é o meio pelo qual se pretende afirmar a presença de um direito, sendo, portanto, este objeto daquela[22].
Ademais, reconhece-se, outrossim, que o direito de ação, se amolda ao conceito das chamadas faculdades legais, por se tratar de um direito facultativo, pertencente ao sujeito como consequência natural de um direito, e que, por isso, não está suscetível à prescrição.[23]
Por derradeiro, os direitos fundamentais sem cunho patrimonial, insculpidos no artigo 5º da Constituição, tais como o direito de ação, são imprescritíveis[24].
2.3.2 MATÉRIA DE DIREITO SUBSTANCIAL
Já restou evidenciado que prescrição não significa o fim do direito de ação, e nem representa uma exceção processual, como visto alhures. Assim, para definir referido instituto, faz-se mister perscrutar o direito substantivo, com fito de localizar onde de fato ela atua, bem como para identificar qual seria o seu real conteúdo.
Partimos, então, do pressuposto que seja a relação jurídica obrigacional o cerne dessa questão, tendo em vista que i) o objeto da prescrição é a pretensão; e ii) o dies a quo da contagem do prazo prescricional se inicia a partir da violação de um direito subjetivo, segundo o artigo 189 do Código Civil de 2002[25], vejamos:
Art. 189. Violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206.
Assim, considerando que o direito obrigacional “trata dos direitos pessoais, ou seja, do vinculo jurídico entre sujeito ativo (credor) e passivo (devedor), em razão do qual o primeiro pode exigir do segundo uma obrigação”[26], chega-se a conclusão de que é esse o ramo do direito que se estuda a relação jurídica obrigacional, sendo, portanto, nosso subsídio.
Ademais, sendo o vínculo jurídico que nasce com a relação entre os sujeitos o objeto dessa seara, este será o ponto fulcral para compreender a relação jurídica obrigacional, para que se possam tecer futuras ilações acerca do tema proposto.
Quanto a esse vínculo, com espeque em GONÇALVES.[27], observando o surgimento desse liame abstrato (mediante um corte estático da realidade, para fins didáticos[28] e inobstante as controvérsias que pairam as várias teorias para explicá-lo[29]), verifica-se que ele encampa tanto a figura do débito quanto da responsabilidade. Do ponto de vista do sujeito ativo, o débito representa a expectativa de direito, e a responsabilidade, uma pretensão. Ao passo que, do ponto de vista do sujeito passivo, o débito representa um dever moral, e a responsabilidade, uma sujeição patrimonial. Conjugando-se um com o outro, estabelece-se, afinal, uma ligação jurídica entre esses indivíduos[30].
Abstrai-se, destarte, que a violação de direito subjetivo, mencionada no artigo 189 do CC/02, refere-se ao momento em que o devedor de uma obrigação, em certo momento do tempo e espaço (após firmado o vínculo jurídico), deixa de cumprir uma prestação em proveito do credor – quebrando a expectativa de direito deste –, e, por essa razão, surde uma pretensão para o sujeito ativo, que poderá submeter à execução o patrimônio do sujeito passivo. Razão por que a prescrição é matéria atinente ao direito substantivo, sendo, pois, um fato extintivo de direito, que irá ocorrer após o transcurso de um prazo iniciado com o desabrochar de direito de reparação em favor daquele que teve seu direito subjetivo violado.
2.3.3 DEFINIÇÃO MODERNA
Sem delongas, a prescrição é um fato jurídico, extrínseco à relação jurídica obrigacional, capaz de extinguir a pretensão do sujeito ativo em face do sujeito passivo – que se desobrigará legalmente[31] da obrigação contraída. Em suma, violado o direito subjetivo e transcorrido o prazo prescricional, não há mais se falar na responsabilidade de o devedor ter que se sujeitar à execução de seus bens, e nem de o credor exigir a respectiva reparação.
Observa-se, portanto, que os efeitos da prescrição atingem diretamente a pretensão, um dos elementos do vinculo jurídico, e não a ação – que poderá ser extinta por via oblíqua, em razão de matéria preliminar meritória.
Nesse sentido, GONÇALVES anota:
Hoje, no entanto, predomina o entendimento, na moderna doutrina, de que a prescrição extingue a pretensão, que é a exigência de subordinação de um interesse alheio ao interesse próprio. O direito material, violado, dá origem à pretensão (CC, art. 189), que é deduzida em juízo por meio da ação. Extinta a pretensão, não há ação. Portanto, a prescrição extingue a pretensão, atingindo também a ação. O instituo que extingue a ação (conservando do direito material e a pretensão, que só podem ser opostos em defesa) é a perempção. [32]
Perfilhando o entendimento esposado, DINIZ assevera que “ prescrição tem por objeto extinguir a pretensão de exigir, judicialmente, a pretensão do inadimplente, por gerar uma exceção oposta ao exercício da ação[33].
Indo além, como de cotio, DIDIER acresce que “a prescrição encobre a eficácia de determinada pretensão, em razão do não exercício dela em determinado lapso de tempo”,[34] sendo perceptível, nesse ponto, a realidade em que, com exatidão, a prescrição atua, qual seja, o plano da eficácia – assunto que será pormenorizado doravante, nos itens 3.1.2 (Delimitação dos planos da existência, validade e eficácia) e 3.1.3 (Níveis de eficácia da obrigação tributária).
Sob outro enfoque, mas de profícua valia, NAPOLEÃO entende que a prescrição seria uma jaez de acoimar a inércia do titular, e, como toda sanção, só incidirá quando se verificar a concorrência do conjunto de fatores responsáveis por deflagrar seu efeitos, quais sejam: i) a inércia do titular do direito subjetivo violado, ou seja, a desídia em deduzir a sua pretensão em juízo; e ii) o decurso in albis do prazo fixado em lei sem que o titular de um direito deduza a sua pretensão.
Dessa forma, temos que a prescrição é um fato jurídico composto[35], cujo suporte fático requer a reunião dos seguintes elementos: i) o tempo em sua perspectiva dinâmica, ou seja, um decurso de prazo[36]; e ii) um ato-fato jurídico, que se traduz na inação de um suposto titular de uma pretensão em deduzi-la em juízo. Nota-se, pois, que o termo prescrição, enquanto um substantivo, indica uma situação ou um estado – embora seja dinâmico –, valorado pelo homem mediante uma operação lógico-jurídica. Assim, sua conceituação não pode partir apenas dos efeitos que dela emanam – cujos quais atenderão a vontade do legislador de cada ramo do direito -, como faz parcela da doutrina [37].