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A limitação da imunidade parlamentar.

Apontamentos sobre a inconstitucionalidade da Emenda Constitucional nº 35/2001

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01/07/2002 às 00:00
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5. Do Estado Democrático de Direito, da Separação de Poderes e da Soberania Popular

Apesar de aprovada em clima de "unanimidade nacional", a emenda constitucional nº 35/2001, quando limitou o instituto da imunidade parlamentar formal, ofendeu aos princípios democráticos, a separação de poderes e à própria soberania popular, sendo, por tais razões, inconstitucional, dada a supremacia do poder constituinte originário sobre o poder constituinte derivado.

A República Federativa do Brasil, segundo o art. 1º da Constituição, é um Estado Democrático de Direito, que possui como fundamento a soberania (inciso I), e no qual "todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos, ou diretamente, nos termos desta Constituição".

Assim, constitui a representação política parlamentar manifestação constitucional do princípio fundamental da soberania popular, segundo o qual todo poder emana do povo. Apesar dos reclamos doutrinários por um exercício mais constantes dos mecanismos de democracia direta, previstos no art. 14 da Constituição, é realidade inescapável até mesmo aos mais ardorosos defensores da democracia direta que um retorno pura e simples aos moldes da democracia direta da Grécia Antiga é impossível nos tempos atuais, quer devido à inviabilidade prática de reunião diária de milhões de cidadãos em praça pública para deliberações sobre os destinos da polis, quer devido à impossibilidade de dedicação diária e completa do homem moderno às discussões políticas, eis que precisa trabalhar para seu próprio sustento material. Assim, apesar de subordinada ao primado da vontade popular, a representação política parlamentar constitui instrumento indispensável à manutenção do regime democrático. O povo, que não pode dedicar-se diariamente à atividade política, elege representantes para fazê-lo em seu nome, mantendo-os sob vigilância e atenção.

Porém, para que o sistema representativo parlamentar possa funcionar de forma eficiente e apta para servir como verdadeira instância de representação política da sociedade, é preciso que seja dotado de garantias e proteções em face das investidas de outras esferas de poder. Daí a necessidade de adoção da separação de poderes, expressamente assegurada no art. 2º da Constituição Federal.

Assim, o instituto da imunidade parlamentar, tanto material como formal, apresenta-se como garantia do Poder, da representação política da sociedade, da instituição, contra as indevidas investidas de outras esferas de poder, e não como garantia do parlamentar. E, nesse diapasão, apresenta-se como verdadeira proteção ao próprio Estado Democrático de Direito e à soberania popular, servindo como instrumento de garantia do exercício do poder político independente do povo, por intermédio de seus representantes.

A Constituição Federal também prevê garantias dos demais Poderes, como forma de assegurar a sua independência e harmonia (assim, por exemplo, as garantias da magistratura: irredutibilidade de subsídios, inamovibilidade e vitaliciedade).

Ocorre que a separação de poderes é cláusula pétrea do texto constitucional (art. 60, § 4º, inciso III), não sendo admitida sequer como objeto de deliberação qualquer proposta de emenda constitucional que tenha tendência à sua abolição. Em conseqüência, o arcabouço constitucional dos poderes, no tocante às prerrogativas e garantias de uns em face dos outros, é imutável, sob pena de prejuízo à sua independência recíproca (esse é um argumento recorrente utilizado por membros da magistratura, por exemplo, quando se coloca em debate qualquer proposta de adoção do controle externo do Poder Judiciário). Admitida emenda constitucional que reduza garantia de um poder em face do outro significa torná-lo frágil, vulnerável e menos independente.

É exatamente o que acontece com a emenda constitucional nº 35/01. Ao restringir a imunidade formal parlamentar às acusações de práticas de crimes comuns por parlamentares apenas após a diplomação, bem como ao permitir como regra o normal processamento do feito no STF, sem necessidade de licença prévia, o poder constituinte reformador reduziu sobremaneira as garantias do exercício da função parlamentar em face dos demais poderes, como instituídas pelo poder constituinte originário, ficando aí claramente delineada não apenas a tendência à abolição da separação de poderes, mas, no caso, uma profunda restrição à sua independência.

Doravante, fácil será o uso abusivo do aparato estatal para que sejam forjados processos criminais em face de parlamentares que exerçam com independência a sua função. Pior: sobre os parlamentares independentes, sempre vai pairar a ameaça de alguma acusação de prática de crime comum totalmente desprovida de materialidade (o que não é algo raro, registre-se, no sistema persecutório criminal brasileiro), como instrumento coibidor do exercício pleno e independente de suas funções.

O uso indevido da imunidade formal parlamentar - como instrumento de "impunidade" – por parte de alguns parlamentares, não deve ser motivo autorizador de tamanha ofensa ao regime democrático. Ao contrário: sendo o povo o titular da soberania, ao povo compete a decisão final, e, em caso de suspeita de uso indevido do instituto, a solução está em suas mãos: a não reeleição do parlamentar para o mandato subseqüente, medida que o tornará novamente um cidadão comum, não representante de ninguém a não ser de si mesmo, e passível de responder ao processo por crime comum na instância judicial competente, sem foro privilegiado.

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Assim, inconstitucional se apresenta a restrição à imunidade parlamentar produzida pela emenda constitucional nº 35/01.


6. Conclusões

Apesar de aprovada com consenso raro na história nacional, e com o respaldo aparente da sociedade, a limitação da imunidade parlamentar produzida pela emenda constitucional nº 35/2001 fere princípios fundamentais da Constituição, tais como o do Estado Democrático de Direito, da soberania popular e da separação de poderes, merecendo a devida reprimenda através dos mecanismos do controle de constitucionalidade.

A imunidade parlamentar, mesmo formal, representa garantia inafastável do exercício independente da função parlamentar e, conseqüentemente, da soberania popular. Restringi-la significa tornar vulnerável o exercício da função parlamentar, e, portanto, vulnerabilizar a própria soberania popular.

É de se espantar que os setores políticos minoritários, geralmente os mais afetados pelos abusos de poder, não tenham esboçado reação contra tamanha ofensa ao regime democrático e, pior, tenham aderido acriticamente ao discurso oficial. Poderão ser os primeiros a sentir na pele os efeitos de seus equívocos de avaliação.

É o momento de reconhecer a inovação da linha de pensamento aqui adotada. Mas a idéia é exatamente provocar o debate, tendo como norte a preocupação com aquilo que Paulo Bonavides já considera como um direito fundamental de quarta geração: a democracia.


7. Bibliografia

BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. A Cidadania Ativa, 3ª edição, São Paulo: Ática, 1998.

BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado, 3ª edição, São Paulo: Malheiros, 1995.

MORAES, Alexandre. Direito Constitucional, 11ª edição, São Paulo: Atlas, 2002.

SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo, 16ª edição, São Paulo: Malheiros, 1999.

TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional, 17ª edição, São Paulo: Malheiros, 2001.

Folha de São Paulo, edição de 01 de janeiro de 2002.

www.camara.gov.br

www.senado.gov.br

www.stf.gov.br

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Sobre o autor
Maurício Gentil Monteiro

Advogado militante no ramo do Direito Público. Membro do Conselho Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil de Sergipe. Presidente da Comissão de Estudos Constitucionais da mesma entidade. Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará. Professor universitário. Atualmente lecionando a matéria Direito Constitucional na Universidade Tiradentes (graduação e pós-graduação).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MONTEIRO, Maurício Gentil. A limitação da imunidade parlamentar.: Apontamentos sobre a inconstitucionalidade da Emenda Constitucional nº 35/2001. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 57, 1 jul. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3005. Acesso em: 22 nov. 2024.

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