O Estado e o poder-dever de punir seus servidores

09/08/2014 às 14:27
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O estudo da abrangência do poder disciplinar do Estado em relação aos seus servidores é tema palpitante e atual, tendo em vista a ânsia generalizada pela eficiência do serviço público.

A máquina estatal é conduzida por uma quantidade relevante de pessoas. Grande parte dessas são os chamados servidores públicos. Para Carvalho Filho (2012), servidores públicos são aqueles agentes que integram o quadro funcional das pessoas federativas, das autarquias e das fundações públicas de natureza autárquica.

Essas pessoas são as principais responsáveis pelo funcionamento das engrenagens que devem fazer com que os serviços legais e constitucionais oferecidos pelo Estado cheguem com qualidade a todos os destinatários.

Como em qualquer outra relação de trabalho, frequentemente aparecem condutas nesse meio em desacordo com as normas e princípios estabelecidos a eles, ou que causam prejuízos a Administração, sem que necessariamente exista um tipo disciplinar previsto. Para tais condutas, Cretella (1970, apud Costa, 2008, p.129) dá o nome de infração disciplinar.

Acrescenta Costa (2008) que essa é apenas mais uma nomenclatura, dentre tantas variações apontadas por outros autores, para transgressão disciplinar, nomenclatura que entendemos ser mais abrangente e propriamente utilizada quando se trata de servidores da administração pública. Independente de nomenclatura, esse tipo de comportamento é o que gera possíveis controles por parte da administração, podendo chegar a aplicar sanções com o intuito de corrigi-las.

O poder de punir está presente em qualquer grupo social organizado hierarquicamente, seja ele público ou privado. A diferença consiste apenas quanto aos sujeitos competentes para a aplicação das sanções consequentes de uma violação disciplinar e na forma como serão instituídas.

O poder disciplinar estatal é aquele que “possibilita à administração pública: punir internamente as infrações funcionais de seus servidores;” (ALEXANDRINO; PAULO, 2011, p. 223). Mas, como mencionado, esse poder não é uma prerrogativa Estatal.

Com conceito semelhante, mas tratando das relações de trabalho privadas, Alice Monteiro de Barros (2010) dispõe que o poder disciplinar traduz a capacidade concedida ao empregador de aplicar sanções ao empregado infrator dos deveres a que está sujeito por força de lei, de norma coletiva ou de contrato. O exercício desse poder tem por fim manter a ordem e a harmonia no ambiente de trabalho.

Em contrapartida, diferente do que ocorre nas relações privadas, nas quais os empregadores têm livre discricionariedade para punir ou não, ou até mesmo para dispensar ou não determinado empregado, porque dele é o risco do negócio, na administração pública é necessário que haja obediência a algumas formalidades, para que exista respeito ao interesse público, posto que nem sempre a vontade geral é representada pela vontade do Administrador.

Assim, apesar de haver o controle disciplinar dos servidores da administração pública, esse é bastante regulado por algumas condições impostas pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88) e também pela legislação em geral – sobretudo os Estatutos de cada categoria de servidor – evitando ao máximo possíveis abusos na condução do Estado e mantendo a regularidade na prestação do serviço.

1 O Poder-Dever Disciplinar

O regime jurídico-administrativo brasileiro, conforme ensina Celso Antônio Bandeira de Mello, é alicerçado em dois princípios, os quais constituem as pilastras fundamentais do direito público em geral: a supremacia do interesse público sobre o particular e a indisponibilidade do interesse público (MELLO, 2008), que, apesar de não estarem explícitos na Constituição Federal de 1988, dela podem ser retirados de forma implícita, sendo objeto de consolidada construção doutrinária. Desses princípios basilares decorrem diversos outros institutos aplicáveis aos atos administrativos.

Do primeiro, supremacia do interesse público sobre o particular, derivam todas as prerrogativas da administração, chamadas de poderes administrativos, os quais devem ser utilizados somente para satisfação das finalidades públicas e nos termos da lei, sob pena de incidir em abuso desses poderes (ALEXANDRINO; PAULO, 2011).

Do outro postulado, a indisponibilidade do interesse público, derivam os deveres da administração pública, que, nas pessoas dos administradores, devem atuar quando necessário, não deixando margem de discricionariedade na escolha de agir da Administração, pois este interesse é público e, por isso, indisponível (ibidem).

Existem ocasiões, contudo, em que o dever e o poder da Administração se confundem. Isso ocorre quando determinado ato se torna não só um poder para agir em defesa do interesse público, mas também uma obrigação por conta de esse interesse ser indisponível e não estar à disposição da discricionariedade do administrador.

Exemplo disso é o próprio poder de aplicar penas disciplinares, consoante preceitua Hely Lopes Meireles: “Todo chefe tem o poder e o dever de punir o subordinado quando este der ensejo, ou, se lhe faltar competência para a aplicação da pena devida, fica na obrigação de levar o fato ao conhecimento da autoridade competente” (MEIRELLES, 1998, p. 110).

No mesmo sentido, lecionam Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo

Por outras palavras, quando a administração constata que um servidor público, ou um particular que com ela possua vinculação jurídica específica, praticou uma infração administrativa, ela é obrigada a puni-lo; não há discricionariedade quanto a punir ou não alguém que comprovadamente tenha praticado uma infração disciplinar. (ALEXANDRINO; PAULO, 2011, p. 224)

E ainda Maria Zanella Di Pietro:

A Administração não tem liberdade de escolha entre punir e não punir, pois tendo conhecimento de falta praticada por servidor, tem necessariamente que instaurar o procedimento adequado para sua apuração e, se for o caso, aplicar a pena cabível. (DI PIETRO, 2012, p. 95)

A partir dessas reflexões, podemos concluir que a atribuição disciplinar administrativa não é um simples poder, mas também um dever administrativo do qual o administrador não pode se isentar. Ele é imperativo.

Em se tratando de administração pública e seus servidores, há quem entenda, inclusive, que se trata muito mais de um dever que um poder propriamente dito. Senão vejamos o que dispõe Carvalho Filho em sua obra quando trata de disciplina e hierarquia:

Entendemos, contudo, que tais situações não devem ser qualificadas rigorosamente como “poderes”; falta-lhes a fisionomia inerente às prerrogativas de direito público que cercam os verdadeiros poderes administrativos. Cuida-se, como dissemos, de fatos administrativos – fatos esses que se configuram como características relacionadas à organização administrativa em geral. (CARVALHO FILHO, 2012, p. 67, grifo nosso)

Contudo, na mesma lição ressalta:

A avaliação conferida ao administrador para aplicar a punição não constitui discricionariedade, como costuma afirmar a doutrina tradicional, isso porque não há propriamente juízo de conveniência e de oportunidade. (ibidem, p. 71)

Para conceituar poderes administrativos de forma genérica, o autor expressou-se como sendo o conjunto de prerrogativas de direito público que a ordem jurídica confere aos agentes administrativos para o fim de permitir que o Estado alcance seus fins (ibidem, p. 43).

O conceito de disciplina propriamente dita, por sua vez, extraímos do Dicionário Jurídico Piragibe (2007, p. 417) o seguinte: “Disciplina – Ordem, organização, conjunto de normas impondo comportamento em dado sentido”. Esse sentido, do qual trata o conceito do dicionário, é a ordenação progressiva em que é organizada a estrutura funcional dos servidores públicos.

Assim, apesar de compreendermos as razões explicitadas por Carvalho Filho, entendemos que a capacidade de disciplinar o comportamento dos seus servidores é um poder-dever da administração, assim como os demais autores citados expuseram. Isso se deve ao fato de que, não obstante o poder disciplinar não ser inerente unicamente à administração pública, ele não deixa de ser uma prerrogativa, tampouco de ser um meio pelo qual o Estado busca alcançar os seus fins.

Esse poder-dever disciplinar está intrinsecamente ligado a outro, o poder-dever administrativo, o hierárquico. Concluímos isso a partir do que ensina Maria Zanella Di Pietro (2012) quanto aos pressupostos da organização administrativa, como sendo a distribuição de competências e a hierarquia. Afinal, não se poderia conceber que o subordinado exercesse poder disciplinar sobre o superior hierarquicamente falando.

Discorrendo de forma mais direta, o Poder-Dever Disciplinar é aquele que garante e determina que o Estado (Administração), por meio de seus servidores hierarquicamente superiores, processa e pune os respectivos subordinados que porventura cometam alguma infração administrativa, ou particulares que estiverem a ela ligada por algum vínculo jurídico específico, como um contrato que não está sendo cumprido.

Convém destacar que o poder disciplinar, o qual é aqui estudado, não se confunde com o direito punitivo geral, não obstante os dois avaliarem condutas e preverem sanções para casos de infração. O primeiro é aquele estritamente administrativo e, por isso, somente pessoas com algum vínculo jurídico específico com a administração pública são alcançadas por ele (ALEXANDRINO; PAULO, 2010). O segundo, do qual deriva o Direito Penal, relaciona-se ao poder do Estado sobre os indivíduos em geral e a manutenção de ordem na sociedade como um todo, mormente no combate aos crimes e contravenções (CARVALHO FILHO, 2012).

Outros fatores também são responsáveis pela diferença que afasta os dois, mesmo que ambos sejam derivados do jus puniendi Estatal. Podemos citar, como exemplo primordial de diferença, as sanções e sua aplicação em cada uma das searas. Aqui destacamos o que discorre Hely Lopes Meireles:

A puniça?o disciplinar e a criminal têm fundamentos diversos, e diversa e? a natureza das penas. A diferença na?o e? de grau; e? de substância. Dessa substancial diversidade resulta a possibilidade da aplicaça?o conjunta das duas penalidades sem que ocorra bis in idem. Por outras palavras, a mesma infraça?o pode dar ensejo a puniça?o administrativa (disciplinar) e a puniça?o penal(criminal), porque aquela e? sempre um minus em relaça?o a esta. Dai? resulta que toda condenaça?o criminal por delito funcional acarreta a puniça?o disciplinar, mas nem toda falta administrativa exige sanção penal. (MEIRELES, 1998, p. 109)

Nas palavras do autor, percebemos que o poder-disciplinar é autônomo e não se confunde de forma alguma com o poder punitivo geral, de modo que um mesmo fato é punível nas duas esferas, sem que isso configure bis in idem.

Por outro lado, o exercício do poder-dever disciplinar, assim como o poder punitivo geral (penal), possuem também suas semelhanças. Os dois são regidos pelos princípios constitucionais explícitos e implícitos da Constituição, sobretudo quando tratamos de questões formais.

A Carta Magna, inclusive, tratou alguns pontos específicos de forma literal quanto à relação de subordinação disciplinar dos servidores públicos, garantindo prerrogativas àqueles que são estáveis. Vejamos o Art. 41 da C.R.F.B/1988:

Art. 41. São estáveis após 3 (três) anos de efetivo serviço os servidores nomeados para cargo de provimento efetivo em virtude de concurso público.

 §1. O servidor público estável só perderá o cargo

I – em virtude de sentença judicial transitada em julgado

II – mediante processo administrativo, em que lhe seja assegurada ampla defesa

 

Dessa forma, o exercício do Poder-Dever disciplinar não é pleno, sendo limitado pela necessidade de apuração por meio de Processo Administrativo Disciplinar, o qual deverá seguir o devido processo legal e obedecer aos princípios do contraditório e da ampla defesa. Por isso é que, diferente do que ocorre nas relações de emprego em geral, no serviço público o Poder disciplinar é mitigado pelo próprio interesse público, o qual requer continuidade e eficiência nos serviços, não deixando ao bel prazer dos administradores a imposição de sanções de forma abusiva.

Outra importante característica do Poder-Dever Disciplinar é sua função de evitar um caos na administração com a impunidade, prova disto é a preocupação do legislador com o estabelecimento de sanções, também, para coibir possíveis omissões ou desídia na apuração de transgressões de servidores públicos.

Podemos exemplificar com a previsão do Estatuto dos Servidores Públicos da União, o qual em seu Art. 143 que diz que “a autoridade que tiver ciência de irregularidade no serviço público é obrigada a promover a sua apuração imediata, mediante sindicância ou Processo Administrativo Disciplinar, assegurada ao acusado ampla defesa” (BRASIL, Lei 8.112/90).

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Esse ponto guarda estreito laço com o instituto da prescrição, pois o reconhecimento desta, durante o curso de uma apuração administrativa disciplinar, fere a razão de ser e o fundamento primeiro do Poder-Dever Disciplinar, gerando precedente a impunidade e a consequente ineficiência do sistema.

A aplicação de uma sanção é a consequência mor do exercício do Poder Disciplinar por parte do Estado frente aos seus servidores, e é resultado de um processo de apuração, o qual estudaremos a seguir, que deve comprovar conduta contrária à legislação, praticada pelo servidor.

2 Os Processos Disciplinares

 

Como foi destacado, quando uma transgressão disciplinar é praticada, o titular do poder disciplinar deve agir. Quando esses fatos ocorrem no âmbito da administração, é necessário que haja apuração e para isso existem os meios formais propícios, qual seja, os Processos Disciplinares.

Processo administrativo disciplinar, assim denominado de forma geral por Hely Lopes Meireles, é conceituado da seguinte forma: “e? o meio de apuraça?o e puniça?o de faltas graves dos servidores pu?blicos e demais pessoas sujeitas ao regime funcional de determinados estabelecimentos da Administraça?o” (MEIRELLES, 2011, p. 746).

No mesmo sentido leciona Carvalho Filho: “Processo administrativo-disciplinar é o instrumento formal através do qual a Administração apura a existência de infrações praticadas por seus servidores, se for o caso, aplica as sanções adequadas” (CARVALHO FILHO, 2012, p. 975).

Dos conceitos relacionados, podemos observar que processos dessa natureza são regulados por base normativa diversa. Isso se dá pelo fato de os servidores terem seu vinculo com diferentes entes administrativos (União, Estados ou Municípios, e, além disso, muitas vezes dentro de um mesmo ente existem legislação diferentes para categorias diferentes.

O conceito de Carvalho Filho, inclusive, muito se aproxima do que é previsto no Art. 148 da lei 8.112/90 (Estatuto dos Servidores Federais):

Art. 148. O processo disciplinar é o instrumento destinado a apurar responsabilidade de servidor por infração praticada no exercício de suas atribuições, ou que tenha relação com as atribuições do cargo em que se encontre investido.(grifo no original)

Apesar da semelhança no conceito, é necessário que se note a diferença de nomenclatura utilizada por ambos. Carvalho Filho define em suas palavras o que chama de processo administrativo-disciplinar, enquanto a legislação, que levaremos como parâmetro, de, simplesmente, processo disciplinar. Importante destacar que não se trata de confusão ou divergência nos conceitos, mas sim de gênero e espécie de um mesmo instituto.

A CRFB/88, conforme destacamos, dispôs em seu artigo Art. 41 que o processo administrativo é um meio necessário para que o servidor estável perca o seu cargo. O referido dispositivo deve ser interpretado, contanto, em consonância com o Art. 5, inciso LV da Carta Magna, o qual garante aos litigantes em processo judicial ou administrativo e aos acusados em geral, a ampla defesa e o contraditório.

Diante do exposto, concluímos que a apuração processual disciplinar é obrigatória não só nos casos de demissão (perda de cargo) do servidor, mas em qualquer situação em que ele seja acusado e esteja à mercê de punição disciplinar, seja ela qual for, motivo pelo qual, no atual Estado Democrático de Direito em que vivemos, não se admite aplicação de punição a servidor algum sem que haja processo apuratório prévio. É nesse contexto que o doutrinador se manifesta:

Não nos parece correta a afirmação segundo a qual o processo administrativo “é o meio de apuração e punição de faltas graves dos servidores público”. O processo serve tanto para as faltas graves como para as leves, pois é preciso considerar que a apuração é que vai levar a conclusão sobre a maior ou menos gravidade da falta. (CARVALHO FILHO, 2012, p. 976)

Da hermenêutica dos artigos constitucionais e das palavras do autor concluímos que processo disciplinar é gênero e abrange todas as espécies de processo de apuração cujo objeto seja transgressão disciplinar, o processo administrativo disciplinar (PAD), por sua vez, é a espécie designada às apurações de faltas que estão sujeitas à pena de demissão.

A forma que o Estatuto dos Servidores Federais destinou para apuração de faltas consideradas menos graves, puníveis com Advertência ou até 30 (trinta) dias de punição, foi a Sindicância. Isso é o que se pode concluir da interpretação dos Artigos 143, 145 e 146:

Art. 143. A autoridade que tiver ciência de irregularidade no serviço público é obrigada a promover a sua apuração imediata, mediante sindicância ou processo administrativo disciplinar, assegurada ao acusado a ampla defesa.

[…]

Art. 145. Da sindicância poderá resultar:

I – arquivamento do processo.

II – aplicação de penalidade de advertência ou suspensão de até 30(trinta) dias.

III – instauração de processo administrativo disciplinar

[…]

Art. 146. Sempre que o ilícito praticado pelo servidor ensejar a imposição de penalidade de suspensão por mais de 30(trinta) dias, de demissão, cassação de aposentadoria ou destituição de cargo em comissão, será obrigatória a instauração de processo disciplinar. 

A apuração de transgressões disciplinares por meio de sindicância é uma realidade aceita também pela doutrina. Para Celso Antônio Bandeira de Mello:

Sindicância é o procedimento investigativo, com prazo de conclusão não excedente a 30(trinta) dias (prorrogáveis pela autoridade superior por igual período), ao cabo do qual, se a conclusão não for pelo arquivamento do processo ou aplicação de penalidade de advertência ou suspensão de até 30 dias, assegurada a ampla defesa, será instaurado processo disciplinar, o qual é obrigatório sempre que o ilícito ensejar em sanção mais grave. (MELLO, 2009, p. 322)

Assim, o processo denominado de sindicância, atualmente, deixa de ter natureza meramente preparatória, preliminar; para tornar-se processo disciplinar com finalidade punitiva. Essa é a tendência em âmbito geral na administração pública, em respeito ao princípio constitucional da duração razoável do processo, tendo em vista que sindicância é mais célere, possuindo, por isso, prazos mais reduzidos quando comparado ao PAD.

Revestido de maiores formalidades, e destinado a apurar comportamentos que possam ensejar em exclusão do servidor dos quadros da administração, o PAD é conduzido por comissão composta por três servidores estáveis indicados pela autoridade competente, dos quais um será nomeado presidente (Art. 149, Lei 8.112/90).

Quanto aos sujeitos dos PADs, facilmente pode-se extrair que no polo ativo posiciona-se a Administração Pública, no exercício do seu poder-dever de agir, apurando e punindo, se necessário. No polo passivo, qualquer servidor a quem seja acusado o acometimento de conduta irregular contrária aos seus deveres e princípios, causando prejuízo à administração pública.

Não importa qual das modalidades de processo disciplinar, se sindicância ou se PAD, o fato é que eles são o meio pelo qual os servidores têm a oportunidade de demonstrar a sua inocência perante acusações que lhes são direcionadas.

Sobre isso Nelson Nery Costa (COSTA, 2000, p. 216) discorre: “o processo disciplinar deixou de ser um instrumento da Administração contra o servidor público, para se tornar um meio complexo e democrático para se verificar responsabilidade daquele de quem se suspeita ter cometido falta grave”.

A abertura desses processos disciplinares, portanto, importa em fundada suspeita de irregularidades cometidas pelo servidor, pautada em denúncias, notícias ou informações previamente investigadas, ou, como anotado em caso de PADs, na própria sindicância (COSTA, 1996), para que só assim, com as acusações bem definidas e delimitadas, o servidor possa se defender e, se for o caso, provar sua inocência.

Apesar disso, entendemos que, após iniciados, os processos disciplinares tornam-se indisponíveis e devem ser apurados até o fim, não importando se houve algum tipo de acordo com outros possíveis prejudicados, além da própria Administração Pública, a qual é interessada mor. Entendemos, aliás, que, em decorrência do dever de apurar, os processos disciplinares são indisponíveis desde antes de sua instauração.

Finalmente, após apurada a conduta do agente, por meio de provas documentais, testemunhais e tantas outras admitidas em direito, e em se comprovando irregularidades, a Administração fica obrigada à aplicação de uma sanção proporcional. Quanto a essa proporcionalidade discorre o doutrinador:

Por uma questão moral e de justiça, as sanções disciplinares, como qualquer consectário de índole punitiva, devem guardar uma relação de correspondência com a falta funcional que lhe rendeu ensejo. (COSTA, 2009, p. 57)

Esse é o momento em que aparece a discricionariedade relativa da autoridade instauradora, consistente em escolher o tipo e a dosagem da punição a ser aplicada, dentro daquelas taxadas na lei, dentro do que as provas do processo lhe levam a crer. É nesse sentido que aborda Antônio Carlos Alencar Carvalho:

No Estado Democrático de direito, as decisões administrativas que resultem em sanções para os administrados não podem decorrer de arbítrio das autoridades competentes, nem de falsa motivação ou de injustificada/distorcida/errônea interpretação dos fatos e provas pelo órgão julgador, o qual é está obrigado a fundamentar os atos decisórios adotando alguns critérios lógicos e congruentes[...]. (CARVALHO, 2011, p. 813, grifo nosso)

Dito isso, é importante agora que compreendamos qual o real interesse de qualquer um do povo, ou seja, o público, na apuração de processos administrativos disciplinares de servidores.

3 O Interesse Público nos Processos Disciplinares

O Direito Administrativo é “o conjunto de normas e princípios que, visando sempre o interesse público, regem as relações jurídicas entre as pessoas e órgãos do Estado e entre estes e as coletividades a quem devem servir” (CARVALHO FILHO, 2012, p. 8).

Assim, enquadra-se como disciplina de Direito Público que, por possuir normas e princípios específicos, goza de autonomia diante de outros ramos do direito. Entretanto, admitem-se, excepcionalmente, analogias com o direito privado quando não exista norma ou princípio regulando determinada conduta. Nesse sentido é que se expôs:

A analogia admissível no Campo do direito público é a que permite aplicar o texto da norma administrativa a espécie não prevista, mas compreendida em seu espírito; a interpretação extensiva, que negamos possa ser aplicada ao direito administrativo, é a que estende um entendimento de direito privado, não expresso no texto administrativo, nem compreendido no seu espírito, criando norma administrativa nova. (MEIRELLES, 1998, p. 45)

O Direito Administrativo hoje, com destaque ao disciplinar, conforme tratado anteriormente, possui como pilares de sustentação os princípios da supremacia do interesse público sobre o privado e da indisponibilidade do interesse público.

O fim último da atividade administrativa é o interesse público, caso contrário, a atuação estará inquinada de desvio de finalidade, derivando dessa condição, o princípio (CARVALHO FILHO, 2012).

É do nosso conhecimento que as normas de direito público têm como objetivo maior a persecução do bem-estar coletivo e, para atingi-lo, o interesse público prevalece sobre o particular. Assim, o legal representante da coletividade, o Estado, se vale de tal prerrogativa para sobrepor os seus interesses aos interesses singulares dos administrados.

Com efeito, podemos definir interesse público como o conjunto de interesses individuais da coletividade, ou seja, pretensões individuais que, por possuírem compatibilidade entre si, revestem-se de interesse público. Dessa forma, na possibilidade de conflitos entre a vontade de um indivíduo específico e o interesse público, deverá prevalecer esse último (ALEXANDRINO, PAULO, 2011)

É em virtude disso que administradores públicos não gozam de autonomia da vontade na gerência do Estado. Deve haver sim, adstrição à vontade geral previamente estabelecida, as quais devem ser traduzidas da Constituição e das leis (MELLO, 2008, p. 98). Das palavras de Carvalho Filho, destacamos a passagem na qual afirma que

Os bens e interesses públicos não pertencem à Administração nem a seus agentes. Cabe-lhes apenas geri-los, conservá-los e por eles velar em prol da coletividade, esta sim a verdadeira titular dos direitos e interesses públicos. (CARVALHO FILHO, 2012, p. 34)

Em face do exposto, concluímos que o Direito Administrativo, e aqui se inclui toda a matéria administrativa disciplinar da qual tratamos, está regido pelo interesse público e esse não se confunde, necessariamente, com a vontade do administrador, sendo imperativo que este siga estritamente o que está estabelecido em lei, o que se presume que seja a vontade da coletividade.

No que concerne aos Processos Administrativos Disciplinares, o princípio em apreço não encontra nexo somente no dever de apuração, e, se necessário, aplicação de sanção, por parte da administração de possíveis condutas transgressivas de seus subordinados, mas também na natural vontade geral de manutenção da moralidade e da eficiência daqueles que fazem o serviço público. A moralidade está implicitamente ligada à honestidade (ibidem, p. 21).

Quem gerencia o que é de todos, o que é público, necessita de conduta honesta como requisito essencial, caso contrário, não haverá relação de fidúcia entre o administrador e o coletivo.

Além disso, condutas antiéticas podem comprometer de forma acintosa a eficiência dos serviços prestados, principalmente quando se tratar de atos de desídia ou de indisciplina em geral.

De tudo que foi exposto, entendemos que a razão de ser dos servidores públicos é a prestação de serviços à coletividade, motivo pelo qual não há como se afastar, na conduta desses servidores e, consequentemente, nos Processos que apuram suas transgressões administrativas disciplinares, a primazia do interesse público.

Decorre disso o fato de ser inafastável a aplicação de sanção legalmente prevista quando da prática, por esses servidores, de ato punível na esfera administrativa, entendida esta punição como meio de proteger a moralidade da Administração. A sanção, por sua vez, possui, além dessa, outras finalidades, que serão estudadas mais detalhadamente na seção seguinte.

4 A Sanção Disciplinar

 

A sanção disciplinar, punição disciplinar ou pena disciplinar, é o meio pelo qual o Estado, utilizando-se previamente de apuração processual, pune os servidores que comprovadamente cometeram transgressões disciplinares.

Nas palavras de Armando da Costa, sanção disciplinar é a punição imposta ao funcionário público, em razão de haver ele cometido alguma infração de natureza funcional, ou que, tratando-se de comportamento em sua vida privada, repercuta de forma a comprometer o prestígio e a credibilidade do órgão público envolvido (COSTA, 2008).

Essas sanções devem ser taxativamente previstas em lei, de forma que, por força do princípio da legalidade, não há possibilidade de aplicação de punição que não seja expressamente prevista em lei (CARVALHO, 2011). Nesse sentido também segue a jurisprudência do STJ:

A Comissão Processante não poderia sugerir, como penalidade, a reprovação em estágio probatório, porque essa não se traduz em sanção por prática de infração ao regime disciplinar do servidor público, previsto na Lei 8.112/90” (MS n 7.268/DF, relator o Ministro Hélio Quaglia Barbosa, 3 Sessão, julgamento de 10.11.2004, DJ, p. 212, 13.12.2004).

Assim, ilustrando, observamos que a lei 8.112/90, em seu artigo 127, taxa as sanções às quais os servidores públicos federais estão submetidos, que são: advertência, suspensão, demissão, cassação de aposentadoria ou disponibilidade, destituição de cargo em comissão e destituição de função comissionada.

Diante disso, qualquer outra pena aplicada, que não seja uma dessas, será considerada nula. Nesse sentido é que são estabelecidas as sanções das categorias de servidores em seus respectivos estatutos regulamentadores. Apesar de ter aplicação em âmbito administrativo, esse tipo de punição não deixa de ter seu caráter jurídico:

Por isso, a sanção disciplinar é espécie de sanção jurídica, de penalidade instituída para o fim de indiretamente constranger os servidores a obedecerem aos comandos do estatuto disciplinar, por sua vez destinado a preservar os cânones da eficiência e moralidade no serviço público. (ibidem, p. 91, grifo nosso)

Discorrendo ainda sobre a relação entre a sanção disciplinar e os princípios da eficiência e da moralidade o autor ainda salienta:

No âmbito do direito administrativo, imagine-se as repercussões sobre a moralidade administrativa, a preservação do patrimônio público e do erário, a boa prestação dos serviços públicos e o regular funcionamento da máquina administrativa, se não existissem normas legais cominadoras de penas, como a perda do cargo público, ou a cassação de aposentadoria, a suspensão ou a multa [...] (CARVALHO, 2011, p. 91)

Quanto aos objetivos, as penas disciplinares, como integrantes do Direito Administrativo, têm suas funções pautadas em duas searas: a preventiva e a repressiva. O caráter preventivo está simplesmente na sua tipificação, na sua vigência, afinal, a simples disposição de pena para determinadas condutas impõe o que José Armando da Costa chamou de intimidativo pedagógico, enquanto que o repressivo é a forma imposta posterior a alguma alteração transgressiva, o que a torna muito mais punitivo, corretivo ou coercitivo que pedagógico.

No final, a sanção disciplinar, seja em seu aspecto preventivo ou repressivo, tem o objetivo primordial de manter a regularidade, normalidade e a eficiência do serviço público, resguardando, assim, a moralidade da administração frente aos beneficiários dos seus serviços.

Pelos fundamentos descritos é que a sanção administrativa disciplinar guarda relevantes diferenças com a sanção objeto do direito penal, inclusive quanto ao seu elemento teleológico. Fábio Medina, com propriedade, fez a devida distinção de finalidade entre os dois institutos:

Enquanto a sanção administrativa tem como escopo medidas pedagógicas e punitivas, a sanção penal tem caráter ressocializante e reeducacional, não obstante por vezes ser segregador, retirando do convívio social aqueles indivíduos que não controlam seus impulsos destrutivos. (OSÓRIO, 2009, p. 92).

 

Assim, embora as duas modalidades de sanção sejam derivadas do jus puniendi estatal, o que faz com que possuam alguns aspectos em comum, elas guardam peculiaridades e são regidas por princípios independentes próprios. A tendência é que os dois institutos estejam cada vez mais distantes principiologicamente. Assim destacamos:

A tendência moderna é o sentido de admitir o caráter puramente administrativo disciplinar, considerando a situação do Estado, quer dentro do sistema contratual, quer na supremacia do poder estatal. O poder disciplinar subsiste independentemente do poder repressivo penal; critério, o fundamento de ambos são diversos, no fundo como na forma. (CALVALCANTI, 1957, apud COSTA, 2008, p. 142)

Como bem sinalizado pelo doutrinador, não importa que a origem e o detentor do poder sejam o mesmo, a Administração. A razão de ser, a aplicação prática e o destinatário são diferentes.

As sanções de natureza penal objetivam a manutenção do equilíbrio da sociedade como um todo, ao passo que as sanções disciplinares possuem natureza contratual, por terem como foco apenas os servidores componentes da Administração pública, e eventualmente indivíduos ou empresas que com ela contratem, visam preservar o cumprimento do dever e, como dito, a regularidade dos serviços prestados pelos componentes da máquina pública (COSTA, 2008). Ou seja, apesar de também ser originário do jus puniendi estatal, só estão ao alcance das sanções administrativas disciplinares aqueles que por vontade própria contratarem com a Administração, seja como servidor, por meio de concurso, seja como prestador de serviço por meio de licitação.

Por ter natureza contratual, entendemos que as sanções aplicadas aos servidores públicos muito mais se aproximam das sanções impostas pelo empregador ao empregado nos contratos de trabalho privados.

A razão de existir tanto da sanção administrativa disciplinar quanto da sanção imposta pelo empregador é o balizamento das condutas pessoais em busca de melhores resultados do conjunto. Aqui não importa se o conjunto tratado é uma empresa privada que visa sobremaneira o lucro de seus sócios, ou o Estado que tem seu foco nas atribuições estabelecidas pela Constituição Federal e demais dispositivos legais. O fato é que aqueles que fazem o empreendimento acontecer, seja ele público ou privado, precisam ter suas ações regulamentadas e orientadas ao fim comum.

Sabemos, como tratado anteriormente, que os regimes jurídicos desses servidores são diversos. Enquanto um é regido pela Consolidação das Leis do Trabalho (BARROS, 2011), o outro possui legislação específica disposta em Estatutos das respectivas categorias. Porém essa diferenciação quanto à aplicação de punição aos seus servidores está na questão da disponibilidade quanto à escolha de punir ou não o servidor que cometa irregularidades, posto que o que envolve interesse público é indisponível, e quanto ao meio dessas penas serem impostas, visto que na esfera administrativa, como tratado, é necessário que previamente os fatos sejam apurados em processo.

Com isso, entendemos que com a atual situação dos órgãos, entidades públicas e seus servidores, estabelecimento de limitações radicais no poder de regular condutas (Poder Disciplinar), principalmente em casos graves que gerem expulsão ou demissão, podem ser um verdadeiro obstáculo na concretização dos princípios da administração pública, sobretudo na eficiência dos serviços a serem prestados.

REFERÊNCIAS

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Sobre o autor
Alan Lúcio de Andrade

Oficial do Corpo de Bombeiros do Estado do Estado do Ceará. Bacharel em Direito -Faculdade Farias Brito. Instrutor da Academia Estadual de Segurança Pública do Ceará.

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