2. A PRIVACIDADE
Além da multiplicidade e da rapidez ofertadas pelos meios de comunicação, vimos coexistir nos dias atuais duas ramificações de privacidade: a consentida e a invasiva. A primeira resulta da quebra de valores da personalidade da pessoa humana que passou a vender a própria imagem vinte e quatro horas por dia, expondo escancaradamente não só seus atributos físicos como suas idéias, suas opiniões e sensações. Um exemplo de caso da privacidade consentida, nos dizeres de Antonio Baptista Gonçalves18 é o programa Big Brother, do romance de George Orwell (1984), onde o Big Brother controla a vida das pessoas através da televisão.
Neste caso, ocorre o que Gassen Zaki Gebara19 denomina de: “comercialização da intimidade e da privacidade do cidadão”, transformada em mercadoria e alterando o “interesse público” da informação pelo “interesse do público” com total desprezo pelo real significado do direito à intimidade.
Interessante registrar que fomos destinatários de e-mail de três páginas sobre o “Big Brother Brasil” (BBB) – que já está em sua 11ª edição - comentando que através da Rede Globo conseguimos chegar ao fundo do poço, lembrando que o Império Romano desmoronou pela depravação dos valores morais e pela banalização do sexo. Citado e-mail questiona ainda:
Como um jornalista, documentarista e escritor como Pedro Bial, que cobriu a Queda do Muro de Berlim, se submete a apresentar um programa desse nível que já foi defendido até mesmo por um psicólogo de vanguarda, afirmando que o BBB ajuda a entender o comportamento humano?
O indigitado e-mail combate os milhões desembolsados pelos telespectadores em noites de paredão – ponto alto do programa – quando alguém é eliminado pelo voto dos incautos através de ligações ou envio de torpedos e o muito que se poderia fazer com o dinheiro, para finalmente concluir que:
Assistir ao BBB é ajudar a Globo a ganhar rios de dinheiro é destruir o que ainda resta dos valores sobre os quais foi construída a sociedade. Um abismo chama outro abismo! (Grifos).
Pedro Bial20, ao que tudo indica, não estaria muito preocupado com a sua imagem dentro do programa:
Esse papo de credibilidade (...) Quem quer isso é pastor, padre. Não vou fundar igreja, não quero que acreditem em mim. Os jornalistas em geral se levam muito a sério.
Nosso trabalho volta a focar as outras duas categorias da raça humana: as pessoas comuns e aquelas que detêm notoriedade, as pessoas públicas. Com relação às pessoas comuns não há contenda alguma a merecer grande ponderação. Muitos entendem que o direito fundamental da privacidade foi insculpido apenas e simplesmente para esta categoria de mortais. Já no tocante às personalidades a ótica é diferente. Há quem defenda, principalmente no campo jornalístico, que as pessoas públicas não possuem o direito à privacidade justamente porque suas trajetórias interessam a grande maioria da população. Tais celebridades ao atingirem o ápice da fama, argumentam alguns, abriram mão de sua privacidade despindo-se do traje e do direito à intimidade. Outros tantos afirmam que elas possuem o direito minimizado diante da importância da figura pública e notória que representam.
Vejamos como isto se dá. Citando dois casos concretos, um ocorrido no Brasil e outro nos Estados Unidos, a jornalista Isabela Rodrigues Veiga21, em seu trabalho de Mestrado apresentado no XII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação da Região Sudeste tenta demonstrar que a vida privada das pessoas famosas é pública, ou seja, é de interesse público e passível de invasão. O caso brasileiro envolveu o cantor Chico Buarque e ocorreu em março de 2005, quando ele foi fotografado na companhia de uma morena, na praia do Leblon, no Rio de Janeiro. Chico teria interpelado o fotógrafo para não divulgar as fotos; ele não o atendeu, vendendo o material para a Revista Quem. O fotógrafo foi entrevistado pelo Jornal do Brasil em 13 de março de 2005, assim declarando:
Cheguei a pensar em não publicar, mas pensei: “o que estou fazendo de errado? É como diria Sérgio Cabral: “não quer aparecer não sai de casa”. Chico deu mole, não tem como negar. Se a Vera Fischer passar pelada na rua eu não vou fotografar”? – Citando CALDEIRA22: “Muitas celebridades sempre sonharam em ficar famosas. Mas depois não podem querer andar na rua como um anônimo. Tudo tem um preço”.
O caso norteamericano nasceu na esfera judicial em 1892, quando um juiz de Nova York, apreciando o caso Schuyler versus Curtis, pronunciou a seguinte sentença:
No momento em que alguém voluntariamente se expõe ao público, seja aceitando um cargo público ou se candidatando, ou sendo um artista, essa pessoa abdica do seu direito à privacidade.
Citados casos fizeram com que a jornalista Veiga23 afirmasse que: “as pessoas célebres, uma vez expostas voluntariamente ao público, abdicam em parte de sua intimidade como preço da fama ou do prestígio que possuem, para assim concluir: “o direito à intimidade possibilita uma maior proteção aos cidadãos comuns do que aos homens públicos ou céleres”.
Fazendo um contraponto, o jornalista Francisco José Karam24, adentra no tema com muita propriedade questionando como poderemos respeitar a privacidade do cidadão quando a sociedade precisa ter conhecimento de casos relevantes? Como poderemos defender um jornalista que busca sua própria fama e envolve o nome de uma personalidade em fato que não possui nenhum interesse público? E quando é a própria personalidade a “forjar” um aparecimento em busca de prestígio com a divulgação? Como coincidir os relatos ou verdades com os interesses comerciais, financeiros e mercadológicos da mídia?
A constatação feita por Karam é muito interessante porque analisa os aspectos e todos os atores envolvidos no cenário deste nosso trabalho: os maus profissionais da imprensa que invadem a vida das pessoas por interesses próprios, as celebridades que fabricam notícias para se beneficiar e os donos da mídia, que muitas vezes transformam o interesse público, no interesse do público.
Dessas colocações tiramos uma grande lição: no campo do estrelato e da mídia convivem harmoniosamente, os jornalistas, os fotógrafos, as pessoas públicas e as celebridades, profissionais que ainda valorizam a ética em suas áreas de atuação e que possuem vidas privadas sem sobressaltos. Numa disputa limpa entre esses “craques” na acepção do termo, impera o denominado “fair play”: cumprem-se as regras, cada equipe respeita o espaço do oponente, ninguém “esconde o jogo”, não se faz “cera”, não se humilha o adversário, não existem carrinhos nem faltas desnecessárias e a posse de bola é disputada com lealdade. O resultado final deste “clássico” é aceito com muita tranqüilidade. Ganha a equipe que tiver se aplicado melhor nos fundamentos.
Por outro lado, nos mesmos órgãos de imprensa e nos mesmíssimos locais de convívio comum do estrelato, existem os “amadores”. Quando estes “pernas de pau” conseguem formar vários grupos de “iguais”, formam equipes de segunda linha que não “entram em campo”, já que permanentemente se encontram a campo o tempo todo, disputando o “vale-tudo”, onde impera a deslealdade como forma de sobrevivência. Quando se enfrentam, não há como reclamar da baixaria, dos golpes baixos, dos gols feitos com a mão, ou em situação de impedimento, simplesmente porque são iguais.
O problema ocorre quando há o encontro dos craques com os amadores. No “derby” entre pessoas públicas e personalidades altamente qualificadas de um lado e o “escrete” de jornalistas, fotógrafos e apresentadores amadores ocorrerá verdadeiro massacre, pois o primeiro que joga bonito, estilo “academia” não resistirá diante da falta de tática, de ética e de escrúpulos do adversário que almeja invadir o campo e a intimidade dos seus oponentes, sempre de forma sub-reptícia para poder, ao final da peleja, tripudiar sobre seus oponentes, entoando glórias pelo estrago nas vidas alheias.
Em outro campo, podemos vislumbrar outra partida, o “choque-rei” colocando frente a frente uma imbatível seleção com os melhores articulistas, jornalistas, apresentadores, comunicadores, redatores, fotógrafos e demais atletas de peso e de prestígio da imprensa em geral, reconhecidos pelo profissionalismo que neste dia enfrentam uma turma da pesada que não leva desaforo para casa ou, o que é pior, transformam tudo em homéricos desaforos: são as celebridades e personalidades públicas que se encontram abaixo da linha da ética, daquilo que entendemos como sujeitos “bons de bola”. Esse time de segunda divisão vai utilizar de toda a manha possível, de toda a “catimba” necessária para vencer o jogo. Se os craques da imprensa estiverem com a bola, “simularão” que sofreram faltas, jogando a torcida contra eles. O goleiro simulará que foi agredido pelo centroavante do jornal famoso para depois tirar proveito no campo e fora dele, durante muito tempo. Todos eles, falsas promessas de pessoas públicas, personalidades de nada e de ninguém irão cavar faltas em jogadas ensaiadas ou premeditadas para “pressionar o Juiz” (literalmente falando) para que ele “decida” em seu favor. Farão de tudo para vencer no campo, pela pressão, pela artimanha, pela deslealdade, pelo “cai, cai” e se não conseguirem vencer, com certeza tentarão “recuperar” os pontos no “tapetão”, sempre utilizando a fé pública dos “fenômenos” da imprensa na defesa dos seus próprios interesses. Infelizmente, esse jogo, como muitos outros que já assistimos, não acabará bem.
Ao término da “rodada futebolística”, pudemos reconhecer as diferenças das equipes envolvidas que exigem imediata mudança de regras e de comportamentos, da necessidade de exemplar punição ao anti-jogo, eliminando-se os componentes medíocres. Há que se efetuar uma mudança estrutural do próprio “campeonato”, expurgando os “atletas” que jogam em nome do quanto “pior-melhor”.
Neste jogo de invasão de privacidade, Antonio Baptista Gonçalves25 nos ensina ser falsa a noção de alguns jornalistas de que celebridade não possui intimidade, afirmando que ela pode até ser diminuída, mas nunca abolida, opinião igualmente esposada por Stéphanie Assis Pinto de Oliveira26 quando fala em limitação e não supressão da vida privada. Para ele, muitas informações são forjadas e manipuladas pela mídia, conforme seu próprio interesse, aumentando os fatos demasiadamente, citando, como exemplo, o apresentador Nelson Rubens, dono do bordão “eu aumento, mas não invento” como elemento pernicioso a macular a imagem da personalidade enfocada. Para ela, a invasão somente se justificaria diante de motivo significativo e de real interesse público e não apenas o de informar.
No caso do fotógrafo que flagrou o cantor Chico Buarque perguntaríamos: Havia interesse público na divulgação da foto? E o que é interesse público? Larissa Savadintzky27 comenta que a discussão do que seria “interesse público” não é apenas brasileira, desenvolvendo-se em nível internacional e que nem os acadêmicos, nem os eruditos, nem os cientistas; ou seja, que até hoje, nenhuma inteligência chegou a um consenso.
George Marmelstein28, Juiz Federal e Professor de Direito Constitucional mantêm um blog sobre direitos fundamentais, enumerando diversos casos de celebridades que acionaram a justiça em face dos perversos meios de comunicação que invadiram suas privacidades, como, por exemplo:
O caso Luana Piovani e Dado Dolabella contra o Programa Pânico na TV, da Rede TV, que obrigou a emissora a desembolsar cerca de R$ 300 mil reais ao casal, além de multa diária no caso de exibição de imagens. Outra que também processou o mesmo programa foi a atriz Carolina Dieckman, “homenageada” a calçar as “sandálias da humildade”. Neste caso, a invasão de privacidade foi no apartamento da atriz, onde a mesma residia com seu filho menor. Carolina manifestou sua vontade de não aparecer nem participar da brincadeira; entretanto, isso de nada adiantou. No Acórdão por ela vencido, manifestou-se interesse imediato da criança em ter resguardada a sua honra e a liberdade de imagem e de locomoção de sua mãe.
Segundo nota capturada em site especializado sobre pessoas famosas29, Carolina deveria receber cerca de R$ 1,5 milhão da Rede TV, R$ 50 mil de indenização mais multa de R$ 500 mil para cada veiculação não autorizada. Outros programas de TV foram igualmente alvo de indenizações milionárias, como o caso do Programa CQC, da Rede Bandeirantes30 apresentado por Marcelo Tass. Após chamar as integrantes do Grupo Sexy Dolls de prostitutas, a atração deixou de ser exibida ao vivo por algumas semanas. Conhecemos ainda outras celebridades que foram invadidas em suas privacidades. Marmelstein31nos relata o caso Thiago Lacerda versus Gugu Liberato que leiloou em rede nacional uma sunga utilizada pelo ator na Peça “Paixão de Cristo”, sem a sua autorização. Comenta ainda sobre o escândalo que quase acabou com a família da atriz Glória Pires por causa de boatos de que ela estava se separando de Orlando Morais porque o cantor estaria tendo um caso com a filha da atriz, a também famosa Cléo Pires que na época tinha apenas dezesseis anos. A ação, que tramitou no TJRJ fixou indenização de R$ 200 mil para a atriz, R$ 100 mil para o cantor e R$ 300 mil para Cléo Pires.
Chico Buarque volta a fazer parte do nosso ensaio, vez que foi citado pelo dono do blog na fofoca envolvendo o cantor e sua esposa, a atriz Marieta Severo. Ambos recorreram à justiça e obtiveram indenizações de R$ 500 salários mínimos cada um. O referido Juiz Federal e Professor de Direito Constitucional coleciona também casos em que as celebridades não obtiveram êxito, como a tentativa da atriz Nívea Stelmann que pleiteou indenização pela exposição de fotos não autorizada; do ator Gerson Brenner contra uma revista que teria publicado a sua separação; da atriz Deborah Secco contra a publicação de fotos em novas capas da revista Playboy, dentre tantos outros casos que não conseguiram provar a ocorrência de dano.
George Marmelstein32 nos relata ainda um caso “sui generis” que apesar de não ser tão interessante, foi um dos únicos sobre direito à imagem que chegou até o STF. Trata-se do caso “Cássia Kiss” versus Editora Ediouro que publicou fotos da atriz, sem autorização, na capa das revistas “Remédios Caseiros” e “Coquetel”, de palavras-cruzadas:
Não era uma foto constrangedora, mas mesmo assim a atriz ingressou com ação de indenização, pedindo a reparação dos danos materiais e morais. O STF concordou com a atriz e reconheceu tanto o dano material quanto o dano moral. Veja a Ementa: EMENTA: CONSTITUCIONAL. DANO MORAL: FOTOGRAFIA: PUBLICAÇÃO NÃO CONSENTIDA: INDENIZAÇÃO: CUMULAÇÃO COM DANO MATERIAL: POSSIBILIDADE. Constituição Federal, art. 5º, X. I.Para a reparação do dano moral não se exige a ocorrência de ofensa à reputação do indivíduo. O que acontece é que, de regra, a publicação da fotografia de alguém, com intuito comercial ou não, causa desconforto, aborrecimento ou constrangimento, não importando o tamanho desse desconforto, desse aborrecimento ou desse constrangimento. Desde que ele exista, há o dano moral, que deve ser reparado, manda a Constituição, art.5º,X. II. –R.E. conhecido e provido.
Como pudemos observar celebridade ou não, tratando-se de invasão da esfera da privacidade ocorre afronta a um direito fundamental; entretanto, como já verificamos, coexistindo dois princípios fundamentais de mesma envergadura, um deles fatalmente perecerá, solução exarada não só pelo judiciário pátrio como também pelos tribunais de outras Nações, como nos informa Gassen Zaki Gebara33 sobre decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos:
Em polêmica decisão, apesar das Leis Federais americanas proibirem gravações de conversas alheias, a Corte convenceu-se da existência de um conflito entre interesses individuais e coletivos da mais alta ordem, preponderando à tese de que as informações eram de interesse público, com uma votação de 6 votos a favor e 3 contrários, defendidos por juízes mais conservadores. Constou do relatório que a decisão só vale para informações especiais sobre figuras públicas e com interesse público. Nas palavras do juiz: “não estamos dando imunidade para a mídia sair bisbilhotando”.
Afirmação que, segundo seu entendimento, não cerrou as portas para um precioso precedente para a imprensa de escândalos dos EUA. Dito isto, tivemos acesso de uma nota inserida em sítio especializado na vida das celebridades34, de que os atores Catherine Zeta-Jones e Michael Douglas processaram e ganharam a ação movida contra a revista britânica Hello! Pela divulgação não autorizada de fotografias do casamento dos atores que fizeram de tudo para manter a imprensa afastada da festa de casamento, mas não conseguiram.
Cláudio Lembo35 também ilustra um assunto internacional sobre a liberdade de expressão:
A liberdade de expressão do pensamento, a partir de setembro de 2005, mereceu questionamentos muito profundos a respeito de sua extensão e da responsabilidade de quem a emite. Um jornal dinamarquês –Jyllands-Posten- publicou doze caricaturas do profeta Maomé, segundo expresso pelo editor do diário, Fleming Rose, em resposta a vários incidentes de sectarismo verificados em países europeus que hospedam comunidades muçulmanas. Escreveu o editor a vários colunistas, solicitando que tratassem o profeta de conformidade com o ângulo de visão de cada um. Ao publicar as doze charges, o jornal dinamarquês causou revolta entre os muçulmanos europeus em todo o mundo islâmico. O debate, que se seguiu no mundo Ocidental, mostrou as facetas do pensamento múltiplo do próprio individualismo. O editor, que premeditadamente convocou cartunistas a elaborarem caricaturas de Maomé, defendeu-se apontando para um debate construtivo sobre a liberdade de expressão, do qual participaram crentes islâmicos e laicos europeus. As mais contraditórias opiniões foram expostas no conflito de idéias que se estendeu por toda a parte. Alguns chegaram a brandir a concepção de um direito à blasfêmia ou de um direito de ofender de que seria titular cada pessoa (grifos).
Voltando ao instigante livro do jornalista Francisco José Karam36, registramos o caso do cantor CAZUZA, que repercutiu em toda a imprensa brasileira. Trata-se da veiculação de foto do cantor, já em fase terminal da AIDS, doença que o vitimou:
A Revista Veja, sob o pálio de uma reportagem completa com o cantor Cazuza, resolveu estampar a foto do cantor na página da edição que circulou em abril de 1989. O próprio Cazuza e diversas celebridades se levantaram contra a publicação da foto (...) Veja tratou tanto de sua obra e coragem quanto de sua doença. Segundo a Professora da Universidade de Brasília, Célia Ladeira: “qual a opção feita por VEJA? Ao escolher para a capa a foto de um Cazuza esquálido e sério, fotografado com um jogo de sombras a lhe obscurecer metade do rosto (logo ele, Cazuza, que havia preferido o jogo aberto dos holofotes…), ao fazer essa opção, Veja preferiu o estigma, a lição em praça pública (o espaço público de uma capa de revista) para os que sofrem de Aids…” O público e a própria revista se manifestaram na edição seguinte, de 10 de maio de 1989. Veja argumentou, após o manifesto “Brasil, mostra a tua cara”, de que houve fidelidade aos fatos relatados por Cazuza e se defendeu argumentando ainda que personalidades públicas como José Sarney ou Paulo Maluf, apesar de duramente criticados, nunca se insurgiram contra a liberdade de informação que os atingira. Indiretamente buscou responder ao questionamento feito por Marília Pêra à TV Cultura de São Paulo ao indagar o que é liberdade de imprensa? O que é liberdade de expressão? Respondia também para Fernanda Montenegro (que também assinou o manifesto dos artistas “Brasil, mostra a tua cara”) e que havia sugerido, em entrevista ao Jornal Nacional, que deviam lutar pelo direito de saber no que resulta uma entrevista de um artista ou indivíduo. Veja perguntou: ‘esse direito, se levado em prática, coloca dificuldades de ordem operacional. Ao se entrevistar e fotografar Mikhail Gorbatchev, ou o General Leônidas Pires Gonçalves, ou Paul McCartney, ou o Papa João Paulo II, ou Cazuza, deve-se levar a reportagem para eles aprovarem? Por que, então, num espetáculo de Fernanda Montenegro ou Marília Pêra o público que paga ingressos não têm o direito de ler o texto da peça, opinar sobre os detalhes da cenografia e empostação de voz da encenação? O aiatolá Khomeini tem respostas claras a essas perguntas prosaicas. Quando não concorda com a arte de um escritor como Salman Rushdie, manda matá-lo. Rushdie deveria ter mandado Os Versos Satânicos a Khomeini, antes de publicar o romance?A revista comenta que o manifesto contou com ilustres assinaturas (Pelé, Roberto Carlos, Xuxa, Lobão, por exemplo), dizendo que: “com Cazuza é perfeitamente possível que 510 pessoas considerem o cantor um herói de nosso tempo e que o que ele diz está dito, bendito, bendito ele entre os malditos. Mas que não queiram impor essa idolatria cega a quem pensa de maneira diferente. Ou a quem está empenhado em contar as coisas como são – por mais tristes e terríveis que sejam – e não como gostariam que fossem”.
A defesa feita pela Revista Veja para acobertar o sensacionalismo da foto publicada não se sustenta porque se todos os profissionais que participam de uma entrevista estiverem imbuídos do “interesse público” não “manipularão” a reportagem que será aprovada pelo interessado e pelos leitores, sem a necessidade de prévia autorização do mesmo. Entretanto, se os citados profissionais – e os donos dos órgãos de imprensa - estiverem a serviço do interesse do público, com autorização ou sem autorização, o estrago será consumado.
Sobre o Cazuza cantor, cuja expressão e repertório musical pautaram o idealismo de alguns artistas e algumas centenas de fãs, não se pode afirmar que tenha sido herói de alguma coisa ou de alguém. Filho de pessoas influentes, este Cazuza, a exemplos de muitos outros Cazuzas que acham que podem tudo, utilizava seus shows para (num deles) “cuspir” na bandeira do Brasil, entoando palavras de ordem como se a sua história fosse suficiente para transformá-lo em algum novo “ícone” revolucionário ou algo que o valha.
Essa atitude do cantor foi reproduzida num blog37 denominado “mundo cólica”, cujo objetivo é: “falar sobre as dores do mundo, não por causa social ou em uma visão poética, falar das dores do mundo no mais popular possível”. No referido espaço encontra-se postada uma matéria mencionando que o Jornal do Brasil entrevistou várias pessoas sobre a atitude do cantor que, durante um show, cuspiu na bandeira do Brasil.
O próprio Cazuza respondeu:
Está havendo uma polêmica, um escândalo, como diz o JB (jornal do Brasil) de terça-feira, 18 de outubro, com o fato de eu ter cuspido na bandeira brasileira durante a música BRASIL, no meu show de domingo no Canecão. Eu realmente cuspi na bandeira, e duas vezes. Não me arrependo. Sabia muito bem o que estava fazendo, depois que um ufanista me jogou a bandeira da platéia. O senhor Humberto Saad declarou que eu não entendo o que é a bandeira brasileira, que ela não simboliza o poder, mas a nossa história. Tudo bem, eu cuspo nessa história triste e patética. Os jovens americanos queimavam sua bandeira em protesto contra a guerra do Vietnã, queimavam a bandeira de um pais onde todos têm as mesmas oportunidades, onde não há impunidade e um presidente é deposto pelo ‘simples’ fato de ter escondido alguma coisa do povo. Será que as pessoas não têm consciência de que o Vietnã é logo ali, na Amazônia, que as crianças índias são bombardeadas e assassinadas com os mesmos olhos puxados?Que a África do Sul é aqui, nesse apartheid disfarçado em democracia, onde mais de cinqüenta milhões de pessoas vivem á margem da Ordem e Progresso, analfabetos e famintos? Eu sei muito bem o que é a bandeira do Brasil, me enrolei nela no Rock’n’Rio junto com uma multidão que acreditava que esse país podia realmente mudar. A bandeira de um país é o símbolo da nacionalidade para um povo. Vamos amá-la e respeitá-la no dia em que o que está escrito nela for uma realidade. Por enquanto, estamos esperando.
A história provou que o Cazuza revolucionário estava enganado. Primeiro porque não fez nada para mudar a situação que combatia e cuspir no Pavilhão Nacional “contra” o “status quo” é cuspir contra si mesmo, mesmo porque não há como comparar as diferenças culturais entre os jovens americanos e os brasileiros. Ele, como jovem brasileiro, o que fez para mudar a realidade do nosso país? Cantou? Cazuza, com todo o respeito, não foi figura revolucionária de nada, nem dele mesmo.
Sobre o Cazuza cidadão, os fatos que vieram à tona comprovaram que a Veja errou, vendendo a capa com sua foto e vendendo-se aos interesses do público faminto que na época assinava ou comprava a referida publicação que, em muitas oportunidades, além dessa, se mostrou rancorosa, exagerada, afoita e perniciosa no que concerne ao assunto da invasão de privacidade.
Por tudo isso, muito bem recebidas as palavras da jornalista Isabela Rodrigues Veiga38 quando afirma que a limitação da liberdade de imprensa é um crime contra a sociedade; entretanto - como ela mesma salientou - se a imprensa tiver toda a liberdade para traçar seus próprios limites, haverá lesão aos direitos da privacidade.
Ilustrando a dificuldade de se encontrar o exato limite entre a liberdade de expressão e a privacidade, calha mencionar a reportagem veiculada no periódico paulista Folha de São Paulo39 informando que “Dono de jornal é alvo de atentado no Paraná”. Segundo a nota, a casa do diretor de redação do jornal “Morretes Notícias”, da cidade de Morretes (PR), Orley Antunes, foi alvo de atentado a bomba. Para Antunes, proprietário do jornal e de um blog que trata dos problemas da cidade, o objetivo do atentado – já que ninguém se feriu - era assustá-lo: “eu achava que era vandalismo. Agora vi que é intimidação”. Ex- Secretário Municipal de Turismo entre 1989 e 1992 e entre 2001 e 2005, Orley afirmou na reportagem que estava “incomodando” os políticos locais por meio do jornal e do blog.
Não houve aprofundamento da reportagem sobre o que estaria incomodando os políticos locais, todavia, atentados contra a liberdade de expressão como o relatado não deveriam mais acontecer; do mesmo modo, os meios de comunicação também não devem – se é que o fizeram – abusar da liberdade de expressão para atingir pessoas públicas. Eis o maior desafio: a exata dosagem dos princípios em jogo.