3. O CHOQUE DE PRINCÍPIOS
Os casos concretos que utilizamos para colorir o nosso ensaio demonstram a máxima “cada caso é um caso”; ora vimos prevalecer o direito à privacidade como um princípio em si mesmo, vez por outras, venceu o da liberdade de expressão, comprovando que ambos possuem heterogeneidade: no caso concreto um sobrepujará o outro, mesmo que isso não signifique existir - tese defendida por vários doutrinadores pesquisados - hierarquia entre si.
Claudio Lembo40 confirma a preocupação esposada em nosso trabalho de que o direito à privacidade perdeu terreno para a liberdade de expressão ao afirmar que o direito à intimidade é “aquele que mais sofreu degradação ou contaminação pelo contágio com a tecnologia”.
Ocorre que, citando Cássio Augusto de Barros Brant41 ambos, direito à informação e proteção da personalidade são regras constitucionais e, quando em choque ocorre um conflito aparente superado através do equilíbrio. Para Alexandre Araújo Costa42, nestes casos deve imperar a flexibilidade e harmonização das normas, pelo controle da razoabilidade, levando-nos a reiterar que sendo misturas não homogêneas, a simples combinação causa reação e resultado explosivo.
Ele afirma que as leis restritivas são uma das expressões: “mais claras e problemáticas da discricionariedade do legislador”. Joubert Farley Eger, Denise Carvalho Thives, de et all, citam CANOTILHO43, para quem:
Quando o exercício de um direito fundamental por parte de um titular conflita com o exercício de direito fundamental de outro, ocorre o choque de direitos.
Luiz Guilherme Arcaro Conci44, constrói seu pensamento citando ALEXY:
É a partir do caso concreto que se constrói o conteúdo jurídico dos princípios o que informa que em caso diferente o mesmo princípio pode ser construído com conteúdo jurídico diverso porque os princípios estipulam uma relação de precedência referida unicamente ao caso que se decide, ou seja, são as condições fáticas e jurídicas do caso concreto e os princípios e regras em colisão que firmam a precedência de um princípio sobre outro.
Outro que comenta sobre a colisão dos princípios é o co-autor José Eduardo Junqueira, na obra de Celso Martins Azar Filho45, chamando o direito da liberdade de expressão e da privacidade de: “princípios constitucionais do mais elevado quilate” e que por isso é necessário que se aborde, analise e se discuta como eles se interagem, se relacionam e até mesmo se contradizem, já que as divergências doutrinárias e jurisprudenciais são inúmeras.
Na contramão dos autores visitados, a Advogada Stéphanie Assis Pinto de Oliveira46 afirma categoricamente que em: “face do princípio da unicidade constitucional, a Constituição não pode estar em conflito consigo mesma”, defendendo que o operador do direito deve chegar a uma vontade única evitando contradições e, segundo seus apontamentos, parte da doutrina já estabelece valor maior aos direitos da personalidade quando ocorre eventual colisão com demais princípios; portanto os direitos da personalidade deveriam prevalecer em qualquer situação:
Para compreendermos de onde surge o interesse das pessoas na vida alheia seria necessário um profundo estudo psicológico, mas à primeira vista nos parece que o mesmo não justifica a imposição de prevalência do direito de informação e expressão sobre o da privacidade e intimidade. Defendemos que a mídia pode continuar explorando esse infundado desejo do público pela invasão à privacidade alheia, desde que o titular da privacidade invadida concorde com isso (grifos).
Essa afirmativa reflete nosso esforço argumentativo de que o direito à privacidade está em grau infinitamente superior ao de qualquer outro, seja ele qual for. O trabalho produzido por José Laurindo de Souza Netto47 merece aprofundamento doutrinário ao afirmar que:
O direito da personalidade não depende da inclusão no ordenamento do direito positivo das regras relativas. O Magistrado nos ensina ainda que: “... não são encontrados vários direitos de personalidade, existe o direito da personalidade, um direito único de conteúdo indefinido e variado que não se identifica coma norma positiva (grifos).
Para o professor e Magistrado nenhuma norma codificada consegue disciplinar e tutelar totalmente a unicidade da personalidade humana, utilizando-se ainda da frase de SZANIAWSKI48, para quem: “o princípio da dignidade da pessoa humana constitui-se em cláusula geral de proteção da personalidade no Brasil”, para logo depois nos brindar com a frase lapidar de NUNES49, texto que consta da epígrafe do nosso trabalho, dando conta de que:
A dignidade da pessoa humana está acima de qualquer discussão, considerada como o primeiro fundamento e a última morada dos direitos fundamentais.
Para o operador do direito Souza Netto:
A dignidade da pessoa humana é a base do Estado Democrático, vetor hermenêutico indispensável para o balanceamento dos valores e interesses nos casos de colisão de direitos fundamentais, remetendo ao reconhecimento da superioridade do indivíduo como valor intangível, exigindo proteção frente a todo poder (grifos).
Como não se encorajar com a opinião de que a dignidade, como valor supremo a orientar a interpretação constitucional é “imponderável de ceder diante do caso concreto, a outro direito qualquer que lhe seja”, diante da assertiva de que “a interferência do núcleo da dignidade humana não é coberta pela liberdade de expressão?”
Nossa afirmação pode ser ilustrada por um caso concreto, trazido por Priscyla Costa50. Trata-se do caso do Promotor de Justiça de São Paulo, Thales Ferri Schoedl, réu confesso de matar um rapaz e ferir outro, em dezembro de 2004, em Riviera de São Lourenço, condomínio de veraneio de Bertioga, no litoral paulista. Segundo a jornalista, o Programa Domingo Espetacular, da Rede Record, apresentado por Paulo Henrique Amorim fez diversas reportagens sobre o cotidiano do Promotor, mostrando detalhes de sua vida particular, através de gravações com câmeras e microfones escondidos. O Advogado de Thales conseguiu liminar contra a veiculação da reportagem e em março de 2008 obteve decisão de mérito que acolheu o argumento de abuso do direito de imprensa, fixando multa diária de R$ 100 mil para cada vez que as cenas forem ao ar. Segundo a sentença: “Nada impede a gravação de imagens do requerente em locais públicos. Porém, constitui ato ilícito a gravação de imagens do autor em ambientes privados, sem seu conhecimento ou consentimento”.
Como identificaríamos o caso do Promotor Thales? Será que ele ficou famoso porque sendo Promotor virou também réu confesso? Ou será que já era famoso antes e com o crime virou uma personalidade às avessas? A Juíza não o tratou como pessoa famosa que tem “um nome a zelar”, porque isso, com certeza, ele não mais detêm. Na realidade, ela considerou sua privacidade como um bem da vida acima do direito à informação, desprezando seu cargo e sua posição Ministerial (se é que ele ainda o possui), para defender sua dignidade – lembrando que ele desprezou às de seus desafetos - sentenciando sem se deixar contaminar pelo desprezível e imotivado crime que ele cometeu, procurando vê-lo como um cidadão comum que teve a intimidade e a privacidade invadida pela reportagem, que poderia ter sido veiculada sem as cenas obtidas de forma sub-reptícias.
Sintetizando: se a imprensa não tem o direito de expor a privacidade de réu em crime de grande repercussão pública, sem o seu conhecimento ou consentimento, o que dizer das pessoas comuns ou das celebridades, que não figuram em processos judiciais? Todas elas, grosso modo, são destinatárias desse direito à privacidade, à imagem e a intimidade, porquanto tal leque de direitos fundamentais faz parte de um postulado maior e inquebrantável que é: a dignidade da pessoa humana (grifos).
No artigo produzido por Gassen Zaki Gebara51existe a narração de um fato que praticamente paralisou o país, drama vivido por um famoso apresentador de televisão que ficou, dentro da sua residência, por mais de seis horas nas mãos de um sequestrador e como a imprensa, durante a cobertura, acabou por fornecer todos os pontos deficientes da segurança não só da casa como do bairro inteiro, tudo em nome do “interesse público”, transmitindo tudo em tempo real, com altos índices de audiência.
Por tudo quanto já dito, identificamos que nem a doutrina nem a jurisprudência conseguiram produzir receita eficaz solucionável para diversos casos concretos. Verificam-se decisões distintas em casos de aspectos semelhantes e decisões idênticas em casos diametralmente opostos.
Há que se atentar para a imperiosa necessidade de parametrização dos casos invasivos da privacidade alheia através dos meios de comunicação para minimizar ou estancar definitivamente a ocorrência dos choques dos princípios considerados fundamentais.
4. O JUSNATURALISMO
Não teríamos uma tarefa muito árdua pela frente se pretendêssemos negar a existência de choque, de colisão ou de colidência dos princípios fundamentais bastando, para isso, interpretarmos as palavras de Cláudio Lembo52 sobre a fonte dos direitos fundamentais:
A corrente jusnaturalista, que defende a idéia de que os direitos da pessoa preexistem à própria humanidade (...) Da Lei Eterna, emanada da razão ou vontade de Deus, que ordena todas as coisas, inclusive o direito inerente aos seres humanos, dimana o Direito Natural que é, pois, conseqüência da Lei Eterna e não foi posto por ninguém, salvo por Deus. O Direito Natural é próprio das pessoas, mesmo antes de sua concepção e nascimento (grifos).
O referido doutrinador nos brinda com o primeiro registro histórico da existência do Direito Natural, nascido do diálogo entre Creonte e sua sobrinha, Antígona, na obra de Sófocles (Circa 440 a.C.), que leva o nome dessa mulher corajosa e destemida que desobedeceu a Lei imposta pelo Tio Creonte, rei de Tebas, que proibia o sepultamento do corpo de seu irmão, Polinices.
George Marmelstein53, também comenta o mesmo fato, fazendo a seguinte tradução do diálogo entre Antígona e Creonte:
Antígona- Descumpri mesmo (a lei que proibia o sepultamento). Quer saber porquê? Porque não foi Zeus que a proclamou! Não foi a justiça, sentada junto a deuses inferiores; não, essas não são as leis que os deuses tinham algum dia prescrito aos homes, e eu não imaginava que as tuas proibições fossem assaz poderosas para permitir a um mortal descumprir as outras leis, não escritas, inabaláveis, as leis divinas! Estas não datam de hoje nem de ontem,e ninguém sabe em que dia foram promulgadas. Poderia eu, por temor de alguém, qualquer que fosse, expor-me à vingança de tuas leis?
O referido magistrado ressalva que na mesma peça existe outro diálogo que nem sempre é citado, demonstrando que o grande vitorioso desse embate não foi o direito positivo autoritário nem o direito natural. Citando STONE 54: “quem venceu foi o direito democrático”. Trata-se do diálogo entre Creonte e Hémon, seu filho que, de forma até meio petulante questiona a ordem do pai de manter a punição contra Antígona:
“-Creonte: - não está Antígona violando a lei?
-Hémon: - o povo de Tebas não concorda com você.
-Creonte:- querias que a cidade me dissesse que ordens devo dar?
-Hémon:- agora é você que fala como um menino. [pouco antes, Creonte havia perguntado se cabia a seu filho ensinar-lhe sabedoria].
-Creonte:- deverei reinar conforme julgam os outros ou segundo meu próprio discernimento?
-Hémon:- uma pólis governada por um só homem não é uma pólis.
-Creonte:- então o Estado não pertence àquele que o governa?
- Hémon:- sem dúvida, num deserto desabitado poderia governar sozinho”.
Ao final, o professor constitucionalista reafirma que a vitória foi da democracia, opinião que merece respeito e reflexão. No entanto, por tudo o que já foi dito aqui, fica claro que não há direito democrático ou uma democracia pura que sobreviva sem reservar ao direito da dignidade da pessoa humana um diferencial capaz de proteger a polis, não contra a liberdade de expressão, mas contra a invasão da privacidade das pessoas que não desejam, declaradamente, dividir sua intimidade com ninguém, celebrando um “contrato” com o Estado que lhes assegurem as garantias fundamentais e individuais de não serem molestadas se assim não desejarem, em nome das regras naturais e do princípio da existência da pessoa humana, cujos direitos lhe são inatos desde a concepção com vida.
Se assim o é, precisamos mergulhar ainda mais para entender esse tipo de jusnaturalismo cortejado e reconhecido pela raça humana e aceito pela vontade geral, que, no entendimento de Jean-Jacques Rousseau55, “é sempre reta e tende sempre para a utilidade pública”.
Em outro ponto de sua obra56 o filósofo, escritor, compositor, teórico, político e um dos maiores pensadores do Século XVIII, traduz o exato momento em que a vontade geral, resultante da união de entendimento do corpo social, vê a necessidade do nascimento da figura do legislador para transformar o Direito Natural em regras positivadas:
De que maneira uma turba cega, que em geral não sabe o que quer, porque raramente conhece o que lhe convêm, executará por si mesma um empreendimento de tal importância e tão difícil como um sistema de legislação? O povo, de si mesmo, sempre deseja o bem; mas nem sempre o vê, de si mesmo. A vontade geral é sempre reta; mas o julgamento que a dirige nem sempre é esclarecido. É necessário fazer-lhe ver os objetivos tais como são, e muitas vezes tais como devem parecer-lhe; é preciso mostrar-lhe o bom caminho que procura, protegê-la da sedução das vontades particulares, aproximar de seus olhos os lugares e os tempos, equilibrar o encanto das vantagens presentes e sensíveis com o perigo dos males afastados e ocultos. Os particulares vêem o bem que rejeitam, o público deseja o bem que não vê. Todos igualmente necessitam de guias; é preciso obrigar uns a conformar suas vontades com sua razão; é necessário ensinar outrem a conhecer o que pretende. Então, das luzes públicas resulta a união do entendimento e da vontade no corpo social; dá o exato concurso das partes e, finalmente, a maior força do todo. Eis de onde nasce a necessidade de um legislador.
O suíço Jean-Jacques Rousseau57, dono da obra prima “Do Contrato Social” não veio fazer parte do nosso trabalho como mero expectador; pelo contrário, sua preocupação com o homem que nasce livre, e por toda a parte encontra-se acorrentado pelos grilhões da vida em sociedade amolda-se aos casos concretos que já vimos desfilar algures. A pergunta que o incomodou era por que os homens que nasciam livres abandonavam o estado de natureza? Certamente, lá pelos idos de 1762, ano da publicação de sua obra, Rousseau não conhecia o “BBB”, nem “A Fazenda”, nem “Solitários”, nem “Ídolos”, nem “No Limite” e tantos outros programas televisivos cujas mercadorias são as privacidades consentidas em seu máximo grau de exposição. E como se dá tal consentimento senão através de um contrato? Ou seja, os citados programas que oferecem escancaradamente a intimidade alheia só existem porque nascidos de um contrato bilateral e sinalagmático, de obrigações recíprocas e contraprestações sucessivas: “fulano ou sicrana querem vender suas “almas”, seus pensamentos, suas sensações, espalharem ao mundo suas preferências e apetites sexuais (quando não as executam em rede nacional!), brindando os telespectadores com a exposição de seus dotes físicos? Se eles preencherem os “requisitos” que nós elencamos, nós contratamos e pagamos muito bem!”.
Por outro lado, como bem diagnosticado por Rousseau e “capturado” por nós, se os homens nascem livres, a eles é erigido um “contrato” que não precisa estar escrito muito menos assinado, no qual o restante da sociedade defenderá o direito fundamental da dignidade humana acima de qualquer outro. Portanto, nos dias de hoje, no terreno da privacidade consentida e invasiva temos dois contratos e é pena, muita pena mesmo que não tenhamos um “segundo” Rousseau para decifrá-los.
Sobre o segundo contrato, que nasceu de forma anômala, ou seja, como forma de mitigar o princípio fundamental da privacidade, nem será preciso discorrer muito. Ele existe e tem conotação e interesses recíprocos equivalentes: vale tudo pelo dinheiro.
No instante presente o mais importante contrato é aquele que faço comigo mesmo. Ele tem uma única regra, citando a famosa frase cunhada pelo Juiz Louis D. Brandes, no caso concreto trazido por Adhemar Ferreira Maciel58: “the right to be let alone”. (o direito de “ser deixado em paz”).
O direito de ser deixado em paz não é uma simples afirmativa ou figura de retórica, é antes de tudo uma opinião, baseada no Direito Natural a lhe dar supedâneo. Por isso, não foi à toa que parte do título do nosso trabalho ostenta o logotipo jusnaturalista do “estar sozinho, consigo mesmo” como um direito natural do homem.
Rousseau59 cita o Marquês d’Argenson sobre sua idéia de República e de liberdade dos homens de forma natural:
Na República –diz o Marquês d’Argenson – cada qual é perfeitamente livre naquilo em que não prejudica os outros...” Para Rousseau: “...Eis ai o limite invariável. Não é possível colocá-lo com maior exatidão. Não posso recusar-me o prazer de citar algumas vezes esse manuscrito, embora desconhecido do público, a fim de honrar a memória de um homem ilustre e respeitável, que conservou até no Ministério o coração de um verdadeiro cidadão, e vistas retas e sãs no referente ao governo de seu país (grifos).
Se entendermos esse limite invariável, no qual a liberdade do ser humano tudo pode, desde que não adentre na liberdade de outrem, não precisaremos discutir decretos, insculpir tratados, erigir normatizações diversas, tampouco edificar códigos que tipifiquem condutas e imponham sanções.
Para isto, basta que adotemos como princípio a frase de Antonio Baptista Gonçalves60: “não faça com o próximo o que não gostaria que fizessem com você”.
Segundo Cláudio Lembo61: “a literatura jurídica estrangeira arrola até quatrocentas maneiras de transgredir a intimidade”, o que nos traz à certeza de que apenas o Direito Natural é capaz de superar a escalada da quebra da dignidade da pessoa humana, vez que o direito escrito, por mais dinâmico que se apresente não tem conseguido descer às minúcias de forma a regular o comportamento humano que teima na transgressão da privacidade alheia.
A reflexão do advogado Lembo62, de que: “no passado, o agressor da privacidade das pessoas era o Estado e de que hoje o Estado é convocado a preservar a intimidade delas”, confirma a desenfreada escalada nefasta do comportamento humano que usa a “bisbilhotice” da vida privada alheia como vitamina de enriquecimento de suas próprias inconseqüências, ao traçar comparativo entre passado e presente sobre a intimidade, antes tida como uma vida solitária e que agora necessita de proteção já que, como sabemos, a convivência na sociedade moderna é indispensável ao ser humano.
Cláudio Lembo63 cita ainda um julgado internacional que nos auxilia a compreender sobre a intimidade como “autodeterminação informativa”, assim acolhida pela justiça Alemã. Com fundamento no direito à intimidade, cabe: “as pessoas decidir o que e em que ocasião podem conhecer ou virem a ser utilizados dados que lhes digam respeito, transformando a intimidade de direito negativo de defesa em direito ativo de controle”.
Sobre o mesmo tema, eis a nota de Adhemar Ferreira Maciel64:
A Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu que a polícia não precisa de ordem judicial para bisbilhotar latas ou sacos de lixo colocados nas calçadas para saber o que levam dentro. O Juiz Thurgood MARSHAL, voto vencido, enfatizou que “a investigação do lixo é contrária à noção aceita de um comportamento civilizado”. “um simples saco de lixo denuncia, de modo eloqüente, aquilo que se come, se lê, bem assim os hábitos de diversão de quem os produziu”. O caso concreto aconteceu com BILLY GREEWOOD, em Laguna Beach, Califórnia. Em 1984, logo após receber denúncia de vizinho, a polícia, sem nenhum mandado judicial, revirou seu lixo e encontrou sinais de cocaína, listas de endereços telefônicos de pessoas envolvidas com drogas etc. Isso foi o bastante para, após municiada de mandado judicial de busca e apreensão, entrar na casa de BILLY. A polícia estava certa: em sua casa havia cocaína e haxixe (...) esta decisão da Suprema Corte estadunidense, que aparentemente protege a sociedade contra marginais e traficantes de drogas não deixa de ser uma porta aberta para outras violações da privacidade e da intimidade do indivíduo.
Por isso, destacamos a incongruência apontada por Celso Martins Azar Filho65 de que:
Ao mesmo tempo em que o homem busca dar ao mundo uma unidade interativa através da informação e da comunicação, pretende o mesmo homem manter para si um microcosmo de individualidade absoluta, denominada privacidade.
Devemos todo o respeito às opiniões daqueles que defendem que o direito à expressão/informação e o direito à privacidade/intimidade foram forjados da mesma matéria-prima e que, portanto, possuem tamanho, peso e massa idênticos, mas o levantamento feito até o presente momento nos permite dizer que esta “paridade” não existe, simplesmente porque o direito garantido ao homem de se expressar e multiplicar as informações só foi possível, pelos dados aqui manifestados, no momento que se estabeleceu que a raça humana detem o direito nato da individualidade e da dignidade. Citando Thomas Hobbes66:
Mas a mais nobre e útil de todas as invenções foi a da linguagem, que consiste em nomes ou apelações em suas conexões, pelas quais os homens registram seus pensamentos, os recordam depois de passarem e também os usam entre si para a utilidade e conversas recíprocas sem o que não haveria entre os homens nem Estado, nem sociedade, nem contrato, nem paz, tal como não existem entre os leões, os ursos e os lobos (grifos).
Quer isso dizer que a linguagem, invenção do homem que naturalmente se descobriu dono indiscutível de sua dignidade, de sua intimidade e de sua individualidade, é, nada mais, nada menos do que “um acessório que segue o principal”. Portanto, esta dignidade é um componente tão poderoso que dispensa Convenções, Tratados ou e Leis, bastando apenas que seja alçado – e assim considerado nos casos concretos - como significado mater da existência humana para que depois se possa fazer a interpretação dos demais princípios deles decorrentes.