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A tutela aduaneira relativa aos interesses de ordem pública

01/07/2002 às 00:00
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    "........quando uma mercadoria atravessa a linha teórica que delimita dois espaços territoriais submetidos a soberanias aduaneiras diferentes, se produz o acontecimento mais significativo de uma cadeia de elos cujo denominador comum é formar parte de um mundo especial, regido por normas sui-generis, que abarca desde um momento, anterior a aquele evento e se prolonga até outro momento posterior. Este mundo especial é o mundo aduaneiro composto de relações tributárias e não-tributárias cujo objetivo é produzir um resultado determinado, e diferente, segundo os casos, querido por ambas as partes; O Estado e outra pessoa pública ou privada, sob o império de umas normas que pôr referir-se a matéria concreta que toma a atividade aduaneira como eixo se denominam aduaneiras, sejam ou não de natureza tributária". (Excerto da Conferência pronunciada por Ildefonso Sánchez González, na Real Academia de Jurisprudência e Legislação, Madrid, 28.01.82.

O texto, citado por José Lence Carluci (Uma Introdução ao Direito Aduaneiro, Ed.Aduaneiras, 2001, pág.23/24) define, precisamente, a natureza das atividades aduaneiras para classificá-las em tributárias e não-tributárias. O próprio Carluci, - mestre de todos nós - detalha o ponto, ensinando que:

"O fato aduaneiro é um complexo de fatos jurídicos de variada natureza - tributária, comercial, administrativa - e também fatos econômicos, ocorríveis no território aduaneiro. É, portanto, o fato aduaneiro, mais que tributário, sendo este não mais que complemento de fatos de outra natureza, comerciais por exemplo. Assim, o fato tributário se dá dentro do aduaneiro e não o contrário. É como um acessório que acompanha o principal. Ele comporta disciplinamento e estrutura jurídica distinta da tributária, que nele está contida." (opus citado, págs.22).

E, com certeza, o fato tributário dá-se dentro da fenomenologia aduaneira, por comportar esta uma disciplina e uma estruturação, inclusive procedimental, distinta da tributária, que nela se contém. Por isso que Eduardo Raposo de Medeiros (O Direito Aduaneiro, Sua Vertente Internacional, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Lisboa, 1985, pág.14), afirma:

"Por outras palavras, o Direito Aduaneiro tem particularidades técnicas e económicas susceptíveis de considerar os seus mecanismos jurídicos de intervenção no comércio internacional, como um conjunto à parte, com uma técnica e originalidades independentes do Direito Fiscal, e com uma terminologia própria."

O que esses doutrinadores e outros de igual valor estão a predicar raia à obviedade e isso - pelo considerável esforço de demonstrar o evidente - concede-lhes maior mérito. "Difícil é demonstrar o óbvio", já dizia - segundo consta - Aliomar Balleiro.

Daí porque, vez à outra, ressurge a questão de dever ser a Aduana independente da Secretaria da Receita Federal, ao que às autoridades constituídas dogmatizam o tema para acusar os formuladores dessa heresia de apóstolos do retrocesso. É-lhes indiferente, até certo ponto, as razões de fato, a experiência acumulada e os reclamos do administrado.

Trata-se de um problema de falsa posição, ao estilo de Malba Than - onde o enunciado confunde o aprendiz de matemático - porque a questão não é de contrapor estruturas administrativas reduzindo o problema a uma expressão simplista. O problema é que a Aduana brasileira não atende os reclamos de nossa época..

E não funcionará enquanto o Estado brasileiro não perceber que o disciplinamento dos fluxos de comércio exterior através das atividades de regulação, controle e fiscalização, vai além dos interesses tributários, e isso independe da alocação da área aduaneira no contexto organizacional do Estado.

Disse no passado e hoje sustento com maiores razões que: "Não há estado politicamente organizado que permita ingressos e saídas de mercadorias de seu território à exclusiva conveniência das forças de mercado, especialmente economias em desenvolvimento, altamente suscetíveis de verem aviltadas a seu desfavor, as relações de trocas internacionais. O Estado deve manter mecanismos capazes de proteger aqueles setores econômicos que sucumbiriam ante uma concorrência externa predatória, como também zelar pelo equilíbrio de sua balança comercial e de serviços, assim como acautelar-se com o "comércio" de produtos de alta periculosidade social, etc.. Assim, os Estados-nacionais sempre exercerão a função normativa, reguladora e controladora de seus fluxos comerciais. O que varia é amplitude dessa regulação ostensiva ou abrandada, mas sempre presente". (Revista do Serviço Público, p.111, ano 45, V.118, nº 3, 1994).

Pretendi destacar, naquela reflexão, os aspectos não-tributários afetos ao Direito Aduaneiro, porque parece-me inquestionável que a função institucional da Aduana é de zelar por todo e qualquer interesse de ordem pública, porventura presente nas relações comerciais externas.

Veja-se, por exemplo, a questão atinente a importação de produtos que possam ferir direito do consumidor brasileiro, ou descumprimento de normas técnicas exaradas pelos órgãos competentes, relativamente às qualidades intrínsecas ou extrínsecas dos produtos e mercadorias.

A questão não é prosaica nem acadêmica. É uma questão de definir, no mosaico que caracteriza a função estatal de regulação e controle - na função aduaneira - qual o bem jurídico tutelado.

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Certamente não é a tributação eis que o importador solveu a obrigação principal e atendeu as acessórias. Igualmente certo, porém, que se o produto não atender as normas que se insculpem no Código do Consumidor estaremos face a uma situação desigual já que a indústria brasileira se obriga a cumprir aquilo que o produtor estrangeiro se sente desobrigado. Incide, também, em maiores custos já que os produtos nacionais hão de manter controle de qualidade e outros processos que assegurem o cumprimento dessas normativas.

Há, pois, na hipótese, dois aspectos a serem considerados; a proteção ao consumidor brasileiro e a proteção ao industrial brasileiro. A tutela aduaneira haveria de recair sobre esses bens jurídicos - denominados de interesses protegidos - por se tratarem de obrigações que resguardam o interesse geral.

O aparato aduaneiro do Estado, mercê sua vocação tributária, não pode oferecer ao administrado a tutela adequada, já que estes bens - proteção ao consumidor e à indústria - são objetivos não tributários, inserindo-se noutra ordem de considerações. Às vezes - e aqui me permito digredir - o administrador aduaneiro, no afã de responder a essa demanda, arrepia a legalidade ao objetivo de dar resposta àquilo que intui ser sua função institucional.

De fato, imagine-se o ingresso de produtos que não atendam as especificações do Código do Consumidor ou normas técnicas exaradas pelo CONMETRO ou ABNT.

Ora, o que essas normas protegem são, exatamente, interesses de ordem pública por resguardar um estado de tranqüilidade social e o respeito às pessoas e às instituições, regulando, assim, as relações entre os produtores e os consumidores, fato a que não se podem eximir produtos estrangeiros, sob pena de afetar o princípio da isonomia. É o próprio Código do Consumidor que atrai para sua órbita esse encargo estatal.

O agente aduaneiro, premido pela consciência de um dever-ser, busca no ordenamento que lhe é a ferramenta usual a sanção correspondente, e se depara com o artigo 514, inciso XIX do Dec.91.030/85 (Regulamento Aduaneiro), pelo qual aplica-se a pena de perdimento da mercadoria estrangeira, atentória à moral, aos bons costumes, à saúde ou ordem pública.

Não lhe seria difícil demonstrar, na hipótese, que as mercadorias sob despacho afetam, ou poderão afetar, direitos do consumidor brasileiro, ou se encontram em desrespeito às normas técnicas exaradas pela autoridade competente. Teria de superar, bem verdade, o entendimento de que "ordem pública", refere-se unicamente a produtos suscetíveis de causar perturbação da ordem, consoante a doutrina assente. Isto porém, e a bom direito, é superável pela via interpretativa.

O que não é superável é o pressuposto, introduzido pelo lamentável Decreto Lei 1.455/76, que eliminou o "due process of law", reduzindo o feito a um procedimento quase burocrático, que a infração deve guardar um nexo de causalidade com o Dano ao Erário, expressão que assumiu conotação puramente tributária.

A hipótese não comporta Dano ao Erário, já que o importador, por definição, recolheu os tributos e cumpriu obrigações de cunho acessório. Ausente o nexo de causalidade entre a infração proposta e a sanção cabível, frustra-se o objetivo de "proteger o consumidor brasileiro", ou "proteger a indústria nacional".

Advirto, contudo, que esse problema pode ter solução, através do próprio Código do Consumidor e sempre que ação fiscal se assente em norma ministerial, respeitado o devido processo legal.

Releva, no entanto, notar que essas questões não tem encontrado ressonância na alta administração fazendária, porque são questões não-tributárias. Tampouco tem solução na lei aduaneira vigente, porque esta foi elaborada tendo em vista, unicamente, o tributo.

Em suma, quando se advoga a independência da Aduana, relativamente à Receita Federal, não se está senão buscando dotar a administração de um canal institucional apropriado ao trato dos problemas que advém do comércio exterior, sendo indiferente ao administrado sua afetação a esta ou aquela Secretaria, a este ou aquele Ministério. O que não pode subsistir é um vínculo de absoluta subordinação a um órgão arrecadatório como é o caso da Secretaria da Receita, porque aqui o esforço institucional é carreada numa única direção, deixando todos os interesses aduaneiros à deriva.

Quer parecer que ao postular a necessidade da Aduana vir a tutelar os múltiplos interesses de ordem pública que se inserem no contexto de sua atividade controladora não estamos senão demonstrando que o modelo atual é precário, e é nesse sentido que publico este artigo.

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Sobre o autor
Roosevelt Baldomir Sosa

diretor e consultor da Sosa Aduana e Comércio Exterior

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOSA, Roosevelt Baldomir. A tutela aduaneira relativa aos interesses de ordem pública. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 57, 1 jul. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3026. Acesso em: 1 mai. 2024.

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