Capa da publicação Rondônia: inconstitucionalidades no regulamento disciplinar da Polícia Militar
Capa: Daiane Mendonça / Ascom

Aspectos (in)constitucionais do Regulamento Disciplinar da Polícia Militar do Estado de Rondônia (Decreto nº 13.255/2007)

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17/07/2014 às 16:05
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4. Do Procedimento Administrativo Disciplinar Demissório

Nos termos dos ensinamentos do Professor Hely Lopes Meirelles46, os servidores públicos, no desempenho de suas funções, ou a pretexto de exercê-las, podem cometer infrações de quatro ordens: administrativa, civil, criminal e improbidade administrativa. Por essas infrações deverão ser responsabilizados no âmbito interno da Administração e/ou judicialmente. A responsabilização dos servidores públicos é dever genérico da Administração e específico de todo chefe, em relação aos seus subordinados.

No campo do Direito Administrativo esse dever de responsabilização foi erigido em obrigação legal, e, mais que isso, em crime funcional, quando relegado pelo superior hierárquico, assumindo a forma de condescendência criminosa (CP, art. 320). E sobejam razões para esse rigor, uma vez que tanto lesa a Administração a infração do subordinado como a tolerância do chefe pela falta cometida, o que é um estímulo para o cometimento de novas infrações.

Responsabilidade administrativa é a que resulta da violação de normas internas da Administração pelo servidor sujeito ao estatuto e disposições complementares estabelecidas em Lei, decreto ou qualquer outro provimento regular de função pública. A falta funcional gera o ilícito administrativo e dá ensejo à aplicação de pena disciplinar, pelo superior hierárquico, no devido processo legal.

A punição administrativa ou disciplinar não depende de processo civil ou criminal a que se sujeite também o servidor pela mesma falta, nem obriga a administração a aguardar o desfecho dos demais processos, nem mesmo em face da presunção constitucional de não culpabilidade47. Apurada a falta funcional, pelos meios adequados (processo administrativo, sindicância ou meio sumário), o servidor fica sujeito, desde logo, à penalidade administrativa correspondente.

A punição interna, autônoma que é, pode ser aplicada ao servidor antes do julgamento judicial do mesmo fato. E assim é porque, como já vemos, o ilícito administrativo independe do ilícito penal. A absolvição criminal só afastará o ato punitivo se ficar provada, na ação penal, a inexistência do fato ou que o acusado não foi o seu autor.48

Ainda, segundo o ilustre doutrinador49, o que a Administração não pode é aplicar punições arbitrárias, isto é, que não estejam legalmente previstas. Esclarecendo ainda que tais atos exigem fiel observância da lei para sua prática e impões à Administração o dever de motivá-los, isto é, de demonstrar sua conformidade com os dispositivos em que se baseiam.

O necessário é que a Administração Pública, ao punir o servidor, demonstre a legalidade da punição. Feito isso, ficará justificado o ato, e resguardado de revisão judicial, visto que ao Judiciário só é permitido examinar o aspecto da legalidade do ato administrativo,50não podendo adentrar os motivos de conveniência, oportunidade ou justiça das medidas da competência específica do Executivo.

4.1. Dos Princípios do Processo Administrativo

Ainda com base nos ensinamentos do Professor Meirelles51o processo administrativo, nos Estados de Direito, está sujeito a cinco princípios52de observância constante, a saber: o da legalidade objetiva, o da oficialidade, o do informalismo, o da verdade material e o da garantia de defesa.

O Princípio da Legalidade Objetiva exige que o processo administrativo seja instaurado com base e para a preservação da lei. Este princípio, decorrência do próprio princípio da legalidade, que informa a atuação de toda a Administração Pública (CF, art. 37, caput), exige que o processo administrativo seja instaurado e conduzido com base na lei e com a finalidade de preservar o império da lei. Inexistindo norma legal que o preveja, ou sendo conduzido contrariamente à lei, nulo é o processo.53

O Artigo 37, caput, da Constituição Federal estabelece que a administração pública direta e indireta de qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios da Legalidade, Impessoalidade, Moralidade, ublicidade e Eficiência. Sustenta o Professor EDILSON54que princípio da legalidade é considerado a diretriz básica da conduta dos agentes da administração.

O princípio da legalidade implica completa subordinação do administrados à lei desde que o que lhe ocupe a cúspede até o mais modesto deles. Ou seja, o administrador público deve agir segundo a lei, nem contra a lei, nem além da lei. Significa dizer que enquanto na administração particular é lícito fazer tudo o que a lei não proíbe, na administração pública só é permitido fazer o que a lei autoriza.55

Daí sustentar Giannini56que o processo, como o recurso administrativo, ao mesmo tempo que ampara o particular, serve também ao interesse público na defesa da norma jurídica objetiva, visando a manter o império da legalidade e da justiça no funcionamento da Administração. Todo processo administrativo há que embasar-se, portanto, numa norma legal específica para apresentar-se com legalidade objetiva, sob pena de invalidade. Os incisos I e II do parágrafo único do Art. 2º da Lei 9.784/99 impõem a observância deste princípio.

Isto posto, levantamos a legitimidade legal da imposição das punições demissórias previstas no Decreto 13.255/2007, tanto pela forma que são aplicadas, em procedimento não previsto em lei, quanto pela simples maneira de como estão dispostas em Decreto, não em lei, como deveria ser.

4.2. Das Penas Demissórias do RDPM/RO

Dispõe o Art. 41. do Decreto 13.255/2007 – RDPM/RO, in verbis:

Art. 41. As punições disciplinares a que estão sujeitos os policiais militares são as seguintes:

I – repreensão;

II – detenção;

III – prisão;

IV – licenciamento a bem da disciplina;

V – exclusão a bem da disciplina; e

VI – demissão “ex-officio”.

Já tendo este trabalho tratado dos aspectos constitucionais das penas restritivas de liberdade, passamos a analisar as punições demissórias apresentadas pela norma infralegal.

Nos termos do Art. 47, o Licenciamento a Bem da Disciplina, que é a exclusão do serviço ativo da praça, mediante processo administrativo disciplinar, quando se tratar das seguintes hipóteses:

I – for a transgressão praticada de natureza grave, atentatória ao decoro da classe policial militar, às instituições ou ao Estado;

II – tendo ingressado no comportamento insuficiente, continuar praticando atos atentatórios à ética policial militar, sem demonstrar tendência à melhoria de comportamento;

III – tiver sido condenado em sentença penal transitada em julgado, por crime de qualquer natureza e qualquer que seja a pena, desde que o fato seja considerado, em princípio, uma grave violação da ética policial militar.

A exclusão a bem da disciplina, nos termos do Art. 48, consiste na exclusão do serviço ativo aplicada ao aspirante a oficial e à praça com estabilidade assegurada.

A demissão ex-officio, nos termos do Art. 49, consiste na exclusão do Oficial PM do serviço ativo, conforme prescrito na legislação peculiar.

Estamos então diante de aplicação de medidas punitivas disciplinares, de caráter demissional, de servidores militares da Administração Púbica Estadual, no âmbito do Estado de Rondônia.

Considerando os princípios constitucionais que norteiam a atividade administrativa nas esferas Federal, Estadual e Municipal, e considerando a teoria da hierarquia das leis suscitada por Kelsen57, novamente estamos diante de flagrante inconstitucionalidade quando da aplicação de tais disposições aos servidores militares estaduais. Tanto pela falta de disposição legal das penalidades demissórias (decreto não é lei, nem tem força de lei) quanto pela aplicação no processo administrativo sem as devidas disposições legais.

4.3. Do Princípio da Legalidade na Aplicação das Penalidades Demissórias do RDPM/RO

É sabido que todo servidor público, seja ele civil ou militar, está sujeito a regras de conduta na sua atuação como tal. Isto porque essa limitação legal ao poder de atuação que possuem visa coibir possíveis desvios de conduta desses servidores enquanto atuando em nome do estado.

A demissão (abrangendo todas as modalidades aqui previstas), em qualquer esfera administrativa, é assim considerada como a mais grave das punições disciplinares, feitas por intermédio do controle administrativo do Estado.

No que pese a prisão disciplinar signifique violação aos princípios da dignidade da pessoa humana, e que a aplicação de tal medida punitiva seria um ato atentatório aos princípios e garantias fundamentais protegidos pela Constituição Federal, temos que a demissão do serviço ativo é uma penalidade muito mais gravosa ao servidor. Isto porque significa que o servidor perderá o emprego/trabalho que possui, e que na maioria das vezes é o único meio de sustento próprio e de sua família.

Conforme mencionamos anteriormente, deve haver um limite na discricionariedade da administração pública. Este limite é a lei. A administração está adstrita aos ditames legais para sua atuação.

Aplicar uma penalidade de demissão a um servidor qualquer é um ato administrativo punitivo, e como tal, deve estar respaldado por garantias legais para que tenha os efeitos esperados pela administração e que não venha a ser retificado por possíveis demanda judiciais que venham a questionar a legalidade do ato.

Nas lições de MEIRELLES58atos administrativos punitivos são atos enunciativos ou declaratórios de uma sanção imposta pela Administração àqueles que infringem disposições legais, regulamentares ou ordinatórias dos bens e serviços públicos. Visam punir e reprimir as infrações administrativas ou a conduta irregular dos servidores ou dos particulares perante a Administração.59

Os atos administrativos punitivos, como facilmente se percebe, podem ser de atuação interna e externa. Internamente, cabe à Administração punir disciplinarmente seus servidores e corrigir os serviços defeituosos através de sanções estatutárias; externamente, incumbe-lhe velar pela correta observância das normas administrativas. Em ambos os casos as infrações ensejam punição, após a apuração da falta em processo administrativo regular ou pelos meios sumários facultados ao Poder Público.

MEIRELLES ainda ressalta que salvo disposições previstas em contrato, não cabe ato punitivo sem lei que preveja tal sanção60.

Isto nos leva, novamente ao fato de que é imperioso a observância do princípio da Legalidade Objetiva, na aplicação das sanções disciplinares dos servidores, como um todo. Isto porque, deve ser observado os objetivos que o ato administrativo punitivo deseja alcançar. Tanto para coibir novas infrações de seus servidores, como para dar fiel cumprimento às disposições legais.

Sem uma lei específica para regulamentar quais as sanções disciplinares demissórias a que estão sujeitos os integrantes da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros Militar do Estado de Rondônia, não é possível que a estes servidores sejam aplicadas punições que são previstas em decreto. Seria o mesmo absurdo que dizer que o servidor será demitido do serviço ativo por mera imposição do Poder Executivo, não da vontade da Administração Pública, que deve pautar pela legalidade prevista no Art. 37, caput, da Constituição Federal.

Vamos mais além ainda, sem medo de estar levantando qualquer absurdo jurídico neste trabalho, podemos afirmar, sem sombra de dúvidas, e mediante todo o conteúdo jurídico aqui apresentado, que todas as demissões por motivos disciplinares feitas aos integrantes da Polícia Militar e Corpo de Bombeiros Militar do Estado de Rondônia, baseadas na previsão do Art. 41. do RDPM/RO, e seus incisos, são atos administrativos eivados de nulidade absoluta, por vício de legalidade, pois não atendem aos princípios basilares a que deve se pautar a Administração Pública, pela falta de previsão legal das punições ali existentes.

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CONCLUSÃO

Conclui-se com esta pesquisa que o Regulamento Disciplinar da Polícia Militar do Estado de Rondônia, aprovado pelo Decreto 13.255, de 12 de novembro de 2007, afronta a Constituição Federal, promulgada em 5 de outubro de 1988, no que tange à existência de punições disciplinares restritivas de liberdade, como a prisão disciplinar e a detenção disciplinar.

Qualquer ocorrência de penas restritivas de liberdade, ocorrida após a Constituição Federal de 1988 nosregulamentos disciplinares, somente poderá ser feita por meio de lei proveniente do Congresso Nacional, sob pena de nulidade do ato, que poderá ser apreciado pelo PoderJudiciário em atendimento ao art. 5. º, inciso XXXV, da Constituição Federal.A Prisão Administrativa não deve ser um instrumento de coação, mas uma medidaexcepcional, devendo ser assegurado ao infrator todas as garantias processuais, para que o cerceamentoda liberdade, jus libertatis, possa ser revisto pelo Poder Judiciário, que é o guardião dos direitos egarantias do cidadão.

Em conformidade com a hierarquia das leis, instituída pela teoria de Hans Kelsen, temos que é inadmissível que um Decreto, como manifestação de vontade do Executivo que é, venha a ditar regras contrárias às previsões da Lei Maior. Não se pode consentir que a aplicação desse regulamento esteja dentro da legalidade, e que suas determinações estejam em conformidade com os parâmetros constitucionais. A reserva legal prevista na Constituição é fato a ser observado, posto em prática e defendido por todos os operadores do direito, mormente pelos aplicadores da lei.

Inconstitucionalidade maior se vislumbra quando se verifica que os policiais militares e bombeiros podem ser destituídos de suas funções públicas, se caso estiverem incursos em infrações disciplinares graves, que vão de encontro com a ética e o pudonor militar, manchando a imagem da corporação q que servem, sem que para tanto exista uma lei especificando que é possível a aplicação de tal penalidade.

A não existência de Lei específica para tratar de demissão do serviço ativo de tais servidores é uma afronta ao Princípio da Legalidade Administrativa. O ato administrativo é vinculado à lei. Não havendo lei que disponha sobre o ato, a Administração Pública está impedida de praticá-lo, ainda mais quando se trata de demissão de servidor, que é considerada a penalidade mais gravosa que possa ser imposta.

Situação pior, que nos perceber o descaso maior que tem a Administração Policial Militar no Estado de Rondônia, é o tempo que está vigente as disposições atacadas por este trabalho. Apesar de ter tido sua última alteração em 2011, o RDPM/RO é um regulamento que já perdura há vários anos, regulamentando a conduta dos componentes de nossas corporações militares estaduais. Contudo, mesmo com diversos exemplos de estados que aboliram seus respectivos regulamentos disciplinares instituídos por decreto, o Estado de Rondônia, através da Administração Policial Militar insiste em continuar aplicando o atual regulamento aos seus militares.

Problema maior pode haver quando, motivados por instruções de outros mais iluminados juridicamente, os servidores militares que foram prejudicados pela aplicação do RDPM/RO, tanto os que foram por ele presos como os que foram por ele demitidos, buscarem as respectivas tutelas jurisdicionais. Pois ao se demitir um servidor público, baseado em matéria não prevista em lei, a Administração comete ato, além de ilegal, imoral. Pois com isso irá violar as garantias fundamentais de todo cidadão, previstas e resguardadas pela Constituição Federal.

Assim, ao nosso ver, diante de todo o conteúdo exposto neste trabalho monográfico de conclusão de curso, temos que o Regulamento Disciplinar da Polícia Militar do Estado de Rondônia, aprovado pelo Decreto 13.255, de 12 de novembro de 2007, afronta a Constituição Federal de 1988.

Deve o Decreto 13.255/2007 ser extinto do ordenamento jurídico estadual, dando lugar a uma Lei Complementar Estadual, nos moldes de uma código de ética e disciplina, sem a previsão de quaisquer penalidades restritivas de liberdade, sendo tal matéria reservada à ato do Poder Legislativo da União. Somente assim estaria o estado regulando as condutas disciplinares de seus policiais militares e bombeiros militares sem, contudo, afrontar as disposições de nossa Lei Maior.

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Sobre o autor
Fernando Albino

Bacharel em Direito pela Universidade Luterana do Brasil - ULBRA, Pós-Graduando em Direito Civil e Processual Civil pela Fundação Getúlio Vargas (MBA-FGV), Ex-Servidor Público da Secretaria de Estado da Segurança Defesa e Cidadania de Rondônia - SESDEC/RO, Ex-Agente de Segurança Institucional da Casa Militar da Governadoria do Estado de Rondônia, Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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