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A política externa brasileira: a busca da autonomia de Sarney a Lula

16/01/2015 às 14:37
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Resenha crítica do importante livro de Tullo Vigevani e Gabriel Cepaluni. A obra tem o mérito de mostrar de maneira rigorosa, factual e teórica, qual tem sido a política externa brasileira nas últimas décadas. A busca da autonomia foi uma constante.

Apoiados em ampla literatura especializada, Tullo Vigevani e Gabriel Cepaluni escreveram um bom livro que resume bem o que foi a política externa brasileira nas últimas duas décadas. O livro editado pela UNESP em 2011 foi primeiro publicado nos Estados Unidos pela Lexington Books com o título Brazilian Foreign Policy in Changing Times: the Quest for Autonomy from Sarney to Lula.

A obra é dividida em 7 capítulos. No primeiro os autores procuram definir o vocábulo autonomia. No segundo narram as pressões sofridas pelo Brasil durante o governo Sarney. O terceiro capítulo trata das turbulências no período Collor/Itamar Franco. No quarto tem por objeto a política externa de FHC. O quinto narra as inovações introduzidas na política externa por Lula. No sexto e no sétimo, os autores cuidam respectivamente da integração regional e das relações Brasil-Venezuela.

Os contornos dados pelos autores para as diversas fases da política externa brasileira são primorosos e apoiados em sólida  pesquisa cientifica. Estudando a história recente para o Brasil eles chegaram à conclusão de que o Brasil buscou sua autonomia de três maneiras: distância, participação e diversificação.

“1- Autonomia pela distância: uma política de contestação das normas e dos princípios de importantes instituições internacionais (FMI, Banco Mundial, GATT, entre outras); uma diplomacia que se contrapõe a agenda liberalizante das grandes potências, particularmente os Estados Unidos; a crença no desenvolvimento autárquico, guiado pela expansão do mercado interno e pelo protecionismo econômico; a resistência a regimes internacionais interpretados como congelamento do poder mundial, em favor do status quo;

2- Autonomia pela participação: a adesão aos regimes internacionais, inclusive os de cunho liberal (como a OMC), sem perder a capacidade de gestão da política externa. Nesse caso, o objetivo seria influenciar a própria formulação dos princípios e das regras que regem o sistema internacional. Considera-se que os objetivos nacionais seriam atingidos de forma mais efetiva por esse caminho;

3- Autonomia pela diversificação: a adesão do país aos princípios e às normas internacionais por meio de alianças Sul-Sul, inclusive regionais, e de acordo com os parceiros não tradicionais, como China, Ásia-Pacífico, África, Europa Oriental, Oriente Médio, etc., com o objetivo de reduzir as assimetrias e aumentar a capacidade de barganha internacional do país em suas relações com países mais poderosos, como os Estados Unidos e a União Européia. Uma característica importante é a capacidade de negociar com estes últimos sem rupturas, com a perspectiva de romper o unilateralismo e buscar a multipolaridade e um maior equilíbrio.”

Segundo os autores, cada um dos conceitos acima “...está enraizado na tradição diplomática brasileira”. O sucesso de cada uma delas, entretanto, não depende apenas do nosso país e dos formuladores de nossa política externa, pois as contingências criadas pelas outras nações distorcem a realidade e afetam as políticas externas adotadas pelo Brasil. Ainda segundo ambos distância, participação e diversificação “...são instrumentos que podem ser combinados e estar mais ou menos presentes em uma política externa.” A sofisticação teórica da abordagem  de Vigevani e Cepaluni é evidente.

Sarney herdou a política externa desenvolvida pelos militares em que predominava a autonomia pela distância. A situação econômica brasileira (endividamento externo, inflação galopante, crescimento econômico pífio, agitação sindical) aliada ao contencioso iniciado pelos EUA por causa das patentes farmacêuticas e informática (Lei de Reserva de Mercado e softwares pirateados) obrigaram Sarney a começar a mudar a política externa brasileira, alterando algumas regras dentro do país. Os conflitos do período foram detalhados de maneira satisfatória no livro, permitindo ao leitor entender como e porque o governo do Brasil começou gradualmente ceder, a “...adotar uma posição mais flexível, em um esforço de inserir-se na lógica prevalecente no debate internacional, buscando assim, poder influenciar a agenda e as decisões futuras da OMC.”  Coube a Sarney e seu colega argentino darem o pontapé inicial para a criação do Mercosul, utilizando o comércio para amenizar as rivalidades e desconfianças entre os dois países.

A passagem da autonomia pela distância para a autonomia pela participação começou a ser feita por Sarney. Collor e Itamar Franco tentaram aprofundar a mudança de direção na política externa tentando uma inserção competitiva do país no cenário econômico mundial. Do ponto de vista dos autores “...os governos Collor e Itamar Franco não conseguiram implementar uma política externa clara e coerente porque enfrentaram um período de instabilidade econômica e política muito forte; além disso, ambos governos foram caracterizados pela brevidade de seus mandatos e pelas mudanças de seus ministros das Relações Exteriores.”  Collor teve o grande mérito de sepultar as desconfianças militares entre Brasil e Argentina colocando um fim à ambição brasileira de construir bombas atômicas.

Os autores detalham as iniciativas liberalizantes do governo Collor e a frustração das expectativas iniciais. Segundo ambos,  a centralidade excessiva dos Estados Unidos na agenda política externa brasileira (muito desejada na atualidade por Aécio Neves, candidato a presidente do PSDB) “...se mostrou inadequada já ao longo do governo Collor…”. Com efeito, o “...segundo ano do governo Collor foi marcado por uma progressiva redução da retórica de cooperação com os países ricos.” O governo Collor foi marcado pelo personalismo, inclusive no que se refere à política externa (fato que desagradou muito o Itamaraty), e naufragou em virtude do fracasso do plano de estabilização econômica.

O fiasco econômico afastou o presidente (que já não dispunha de um partido político solidamente enraizado na população) daqueles que haviam pavimentado seu caminho até o Palácio do Planalto. “Muitos setores do empresariado estavam preocupados com os efeitos das reduções de barreiras comerciais, que afetavam a economia como um todo. Essas reduções aumentavam a competição internacional, que passava a ser vista como potencial ameaça.” Confrontado com acusações pessoais de corrupção, o governo Collor não conseguiu deter as investigações no Congresso e caiu de podre sem qualquer sinal de resistência política, social ou militar.

Itamar Franco sucedeu Collor e teve o bom senso de devolver a formulação da política externa ao Ministério das Relações Exteriores, cujo comando foi dado inicialmente Fernando Henrique Cardoso. O ideólogo do PSDB procurou refinar e consolidar as modificações introduzidas na política externa pelos seus antecessores. “Por iniciativa de Fernando Henrique Cardoso, o MRE iniciou um processo de reflexão interna sobre as prioridades da política externa…”.

Quando assumiu a presidência, FHC procurou transformar o país num global trader com interesses globais que “...poderia assumir posições e agendas diversificadas, buscando mercados e novas relações sem se vincular a um única parceiro.”  Segundo os autores, o “...que vimos na gestão de Fernando Henrique Cardoso foi a consolidação de uma política externa já praticada nos governos Collor e Itamar Franco, pela qual o Mercosul seria prioritário na agenda brasileira por constituir uma proposta inédita na América do Sul e, ao mesmo tempo, por seu caráter de regionalismo aberto, sem exclusão de outros parceiros.”  A não institucionalização rígida do Mercosul seria o fato mais importante deste período, pois permitiu tanto ao Brasil (e também à Argentina) fazer sua política externa sem submeter sua autonomia e soberania ao mesmo.

Os autores produziram uma longa digressão sobre o legado intelectual da era FHC e de sua diplomacia presidencial visando reconstruir a imagem do Brasil no exterior. Se levarmos em conta os resultados pífios da política externa de FHC, devemos concluir que é exagerado o espaço que foi dado pelos autores ao ideólogo tucano levado à presidência pelo Plano Real (concebido por outros, não por ele mesmo) e que comprou parlamentares para mudar a CF/88 a fim de poder ser reeleito. Ao final do livro os próprios autores afirmam que “... o conceito de autonomia pela participação, refinado e posto em prática de maneira mais bem acabada pela administração Fernando Henrique Cardoso, já se apresentava desgastado no fim de seus oito anos de governo.”

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Coube ao governo Lula implementar a política da autonomia pela diversificação, com uma maior aproximação de China, Índia e Rússia. Foi neste período que o Brasil passou a reivindicar com mais ênfase uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU e a protagonizar importantes iniciativas no cenário diplomático. Os autores da obra defendem a tese de que o conceito de autonomia pela diversificação  pode ser visto com clareza no acordo Brasil, Turquia e Irã, pois nele “...ocorreu a adesão a princípios e normas internacionais por meio de alianças Sul-Sul e de acordos com parceiros não tradicionais (China, Ásia-Pacífico, África, Europa Oriental, Oriente Médio, entre outros) para tentar reduzir as assimetrias nas relações externas com os países centrais. Ao mesmo tempo, esse acordo evidenciou interesse desses países em não se isolar dos países desenvolvidos, e sim aprofundar os laços de cooperação.”  O governo Lula fez as correções necessárias na política externa brasileira num contexto de crescente unilateralismo e militarismo dos EUA e teve o grande mérito de defender e praticar um multilateralismo responsável. Lula não causou rompimentos bruscos ou traumáticos com os EUA, muito embora tenha confrontado com sucesso a potência hegemônica algumas vezes na OMC.

Segundo  Vigevani e Cepaluni, a “...luz dos grandes índices de aprovação do governo Lula em seu segundo mandato, é provável que a nova presidente mantenha o legado deixado por ele. Embora alguns afirmem que a popularidade de Lula deve-se apenas às políticas domésticas de redução da pobreza e de redistribuição de renda que implementou, muitos fatos demonstram que as atividades externas do país tem sido bem sucedidas nos últimos anos, realimentando seus índices de avaliação favorável. Por exemplo, o Brasil intensificou sua participação nos foros internacionais, como o foro financeiro G20 (que visa à reforma das instituições econômicas globais) e é um dos países menos afetados pela crise. Acrescente-se a isso o fato de hoje o país ser considerado um dos países emergentes promissores (depois da China e da Índia), e, junto com Rússia, Índia e China, integra o BRIC, grupo de países em desenvolvimento que provavelmente assumirá papel importante na nova ordem mundial.”

Os fatos recentes comprovam que os autores de “A política externa brasileira: a busca da autonomia de Sarney a Lula” estavam absolutamente certos. Esta semana, durante a cúpula dos BRICS, o governo Dilma Rousseff assinou um importante acordo para criação de um novo banco internacional, o qual foi considerado pelo economista Joseph Stiglitz como uma “...fundamental change in global economic and political power...”  http://rt.com/usa/173912-stiglitz-brics-bank-interview/ . Dilma Rousseff também assinou acordos com a China prevendo a venda de 60 aviões da Embraer para aquele país. O Portfólio das exportações brasilerias para a China não será composto apenas por alimentos e minérios. Durante a cúpula dos BRICS, o presidente da Rússia disse inequivocamente que apóia a ambição brasileira de ter uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU. A autonomia pela diversificação colocada em prática pelo governo Lula se consolida e se amplifica no governo Dilma Rousseff de uma forma jamais imaginada pelos formuladores da política externa brasileira durante os governos Sarney a FHC.

A obra de Vigevani e Cepaluni tem o mérito de mostrar de maneira rigorosa, factual e teoricamente, qual tem sido a política externa brasileira nas últimas décadas. A busca da autonomia foi uma constante. As estratégias empregadas pelos governos civis variaram de acordo com o contexto. Evoluímos de uma autonomia pela distância herdada por Sarney dos governos militares para uma autonomia pela diversificação da era Lula. Dilma Rousseff consolidou e amplificou com sucesso o legado de Lula. O retorno do Brasil à uma posição submissa ou subalterna aos EUA, o abandono abrupto e voluntarioso da autonomia pela diversificação não está na agenda do Brasil e afetaria negativamente seus interesses no exterior. O último presidente a trilhar o caminho pretendido por Aécio Neves de privilegiar relações com os EUA foi Collor e ele fracassou. Os eleitores brasileiros precisam ter isto em mente antes de votar este ano.

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Sobre o autor
Fábio de Oliveira Ribeiro

Advogado em Osasco (SP)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RIBEIRO, Fábio Oliveira. A política externa brasileira: a busca da autonomia de Sarney a Lula. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4216, 16 jan. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30345. Acesso em: 5 nov. 2024.

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