Sumário: Introdução; 1 A Possibilidade de Alteração do Valor Referencial; 2 O Limite Constitucional; 3 Acesso à Justiça e Efetividade da Jurisdição; Conclusão; Referências.
INTRODUÇÃO.
O resumido estudo que ora se apresenta trata do Projeto de Lei Estadual nº 201/2014, do dia 7 de maio de 2014, de iniciativa do Excelentíssimo Senhor Governador do Estado do Paraná, que pretende dar nova redação ao art. 1º, da Lei Estadual nº 12.601, de 28 de junho de 1999, para limitar o âmbito das requisições de pequeno valor ao equivalente a 10 salários mínimos nacionais.
O tema é de destacada importância, inclusive porque muitos outros Estados e Municípios da Federação têm tomado iniciativas semelhantes – e o Poder Judiciário, inclusive no que diz respeito ao Supremo Tribunal Federal, como se verá adiante, tem se negado, sistematicamente, a enfrentar o mérito da questão, e, mesmo, a se pronunciar sobre a pertinência dos pedidos de suspensão liminar da eficácia de tais dispositivos legais.
Vale a advertência, desde o início, que, dada a complexidade da matéria e a vasta extensão de assuntos correlatos, não se tem, aqui, quaisquer pretensões exaustivas. O escopo, antes, é chamar a atenção para a necessidade de reflexão ampla e do debate democrático em torno da questão do mais alto interesse da sociedade.
1 A POSSIBILIDADE DE ALTERAÇÃO DO VALOR REFERENCIAL.
Cabe, antes de adentrar o mérito da questão, analisar brevemente a possibilidade de os Estados federados modificarem os limites das obrigações de pequeno valor, no âmbito de suas respectivas competências.
O artigo 87, I, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, incluído pela Emenda Constitucional 37/2002, estabelece que serão consideradas de pequeno valor as obrigações das Fazendas dos Estados e Municípios equivalentes a, no máximo, 40 salários mínimos.
Ocorre que o artigo 100, § 4º, da Constituição Federal, que tem a redação determinada pela Emenda Constitucional 62/2009, prevê a possibilidade de leis próprias fixarem limites, que definam as obrigações de pequeno valor, no âmbito de entes públicos distintos, segundo suas respectivas capacidades econômicas, “sendo o mínimo igual ao valor do maior benefício do regime geral da previdência social”.
Vale mencionar que, de acordo com o artigo 97, § 12, I, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, incluído também pela Emenda Constitucional 62/2009, se a lei referida no artigo 100, § 4º, da Constituição Federal, não estivesse publicada em até 180 dias após a publicação daquela Emenda Constitucional, seria considerada, para os fins em questão, no âmbito dos Estados e do Distrito Federal, de pequeno valor a obrigação de até 40 salários mínimos.
O Supremo Tribunal Federal, aliás, ainda no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 2868, que foi proposta contra a Lei Estadual 5250/2002, de Pernambuco, já reconhecia a possibilidade de fixação, por parte dos Estados federados, de valor referencial inferior ao previsto no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
Desta forma, salvo melhor juízo, verifica-se, em tese, a possibilidade de o Estado do Paraná pretender estabelecer um valor referencial próprio, para as obrigações de pequeno valor, por meio de legislação específica – o que não significa, evidentemente, é válido ressaltar desde logo, que deva fazê-lo.
2 O LIMITE CONSTITUCIONAL.
Como visto, o artigo 100, § 4º, da Constituição Federal, prevê a possibilidade de leis próprias fixarem limites, que definam as obrigações de pequeno valor, no âmbito de entes públicos distintos, segundo suas respectivas capacidades econômicas.
A pretensão encartada no Projeto de Lei Estadual 201/2014 é, de toda sorte, salvo melhor juízo, completamente inconstitucional.
Isto porque o dispositivo constitucional em questão – isto é, o artigo 100, § 4º, da Constituição Federal – determina, de forma expressa, que o valor referencial das obrigações de pequeno valor deve ser fixado de forma estritamente proporcional à capacidade econômica do respectivo entre administrativo.
O Excelentíssimo Senhor Governador do Estado do Paraná, na exposição de motivos do Projeto de Lei Estadual 201/2014, de sua autoria, menciona que os Estados de Santa Catarina e Rondônia editaram leis por meio das quais reduziram seus valores referenciais para o equivalente a 10 salários mínimos, e salienta que mesmo o Estado de São Paulo, que tem o maior Produto Interno Bruto (PIB) da Federação, estabeleceu um valor referencial inferior àquele previsto no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
Salienta que, em seu entendimento, a reduzir o valor referencial para o equivalente a 10 salários mínimos, o Estado do Paraná ainda teria, comparativamente, um limite elevado, e que seria, supostamente, o adequado à capacidade econômica do Estado, com vistas a preservar o Erário de forma “justa e razoável”.
Com todo o respeito, contudo, é de se salientar que tais falaciosos argumentos não se sustentam, quando submetidos ao crivo da análise circunstanciada da questão.
Conforme admitido pelo próprio Excelentíssimo Senhor Governador, na exposição de motivos do Projeto de Lei Estadual em questão, há, ainda, quatro outros Estados federados que mantêm o valor referencial previsto no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, isto é, o equivalente a 40 salários mínimos; ou seja, diversamente do que pretende fazer crer, a redução de tal valor não é uma necessidade que vem se mostrando absoluta no cenário nacional.
Vale mencionar que, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Paraná é o quinto Estado da Federação com maior Produto Interno Bruto – cifra que alcançou, em 2011, o equivalente a mais de R$ 239 milhões.
O Estado do Mato Grosso, que tem o PIB mais de três vezes menor que o Estado do Paraná, mantém o valor referencial no equivalente a mais de 37 salários mínimos.
Além do mais, é de se destacar que o valor adotado pelo Estado de São Paulo como referência é de mais de 32 salários mínimos.
O argumento do Excelentíssimo Senhor Governador de que, diante da diferença do PIB entre o Estado de São Paulo e o Estado do Paraná, a fixação do valor referencial, neste último, no equivalente a 10 salários mínimos seria, comparativamente, ainda elevada é, com todo o respeito, salvo melhor juízo, um sofisma.
Isto porque a população do Estado de São Paulo é quase quatro vezes superior à população do Estado do Paraná – o que faz com que as análises comparativas precisem ser tomadas em perspectivas relativas complexas, e não com base, exclusivamente, com referência simplificada a valores absolutos.
É forçoso concluir, portanto, salvo melhor juízo, que a pretensão encartada no Projeto de Lei 201/2014 ignora completamente o parâmetro determinado pela própria Constituição Federal, no artigo 100, § 4º, de que os valores referenciais sejam, quando objeto de lei específica, fixados em estrita observância da capacidade econômica do ente público, sendo, portanto, completamente inconstitucional.
3 ACESSO À JUSTIÇA E EFETIVIDADE DA JURISDIÇÃO.
Por derradeiro, é necessário observar que a questão é revestida de diferenciada importância, e que exige diferenciada atenção da sociedade, que será por ela inevitavelmente atingida.
A pretensão encartada no Projeto de Lei Estadual 201/2014 é que a execução contra a Fazenda Pública do Estado do Paraná seja submetida ao regime de precatórios, quando o valor for superior a 10 salários mínimos, o equivalente a R$ 7.240,00 (sete mil duzentos e quarenta reais), atualmente – aí devendo ser englobados, por determinação expressa do referido Projeto de Lei, o principal, parcelas acessórias, como correção monetária e juros, e, ainda, honorários advocatícios, e demais custas e despesas processuais.
O Projeto de Lei deixa claro, ainda, que fica vedada a expedição de requisição de pequeno valor, mesmo que exclusivamente do valor das custas processuais devidas ao Cartório, ou dos honorários advocatícios, quando o caso comportar a requisição de expedição de precatório.
Ocorre, contudo, que, como é por demais sabido, o regime de precatórios, no Brasil, em geral, e também no Estado do Paraná, em particular, sujeita os credores a uma espera que, não raro, alcança a duração de décadas.
Não custa lembrar, todavia, que o cidadão que bate às portas do Poder Judiciário para pleitear a tutela de seus direitos não deseja, apenas, que um magistrado qualquer lhe diga que está com a razão – esta razão, aliás, já repousa em suas íntimas convicções. O cidadão procura, sim, a efetivação dos direitos que já tem para si como certos.
Quando o Estado toma para si, com exclusividade, a função de aplicar o Direito, e afasta do cidadão a possibilidade de fazer valer suas próprias convicções pelos seus próprios meios, assume, também, por via de consequência, a responsabilidade inafastável de efetivar a jurisdição de forma eficiente – o que, aliás, hodiernamente é consagrado como garantia fundamental, no artigo 5º, LXXVIII, da Constituição Federal.
Segundo as palavras de Dinamarco, “toda sentença ou provimento executivo de qualquer ordem [...] tem sua eficácia perenemente ameaçada pelo passar do tempo, que realmente é inimigo declarado e incansável do processo” (2013, p. 356).
Marinoni, atento a tal realidade, afirma que “o direito de ação não pode ser mais visto como direito a uma sentença sobre o mérito. O direito de ação, no Estado contemporâneo, exige a preordenação das modalidades executivas idôneas à obtenção das tutelas prometidas pelo direito material” (2010, p. 126 e 127).
A efetivação tardia de direitos, assim, implica, inevitavelmente, uma administração de injustiça, por parte de quem deveria garantir o império da Justiça!
No que se refere, especificamente, às obrigações dos entes públicos, Marinoni assevera que:
A falta de meio executivo adequado para dar efetividade à sentença relativa às obrigações de pequeno valor implicaria a redução do direito à tutela jurisdicional efetiva em direito à sentença. Nessa perspectiva, estar-se-ia conferindo à Fazenda Pública o poder de eliminar direito fundamental do cidadão (2010, p. 478).
O Projeto de Lei Estadual 201/2014 veicula, assim, a pretensão de tornar verdadeiramente inócua, no Estado do Paraná, a sistemática de execução das obrigações de pequeno valor – sem que, segundo os dados estatísticos disponíveis já brevemente mencionados, haja a mínima plausabilidade fática para tanto.
Com o perdão do trocadilho, caso aprovado tal Projeto de Lei, terá o cidadão do Estado do Paraná bons motivos para cultivar a convicção de que o Poder Público, apesar de algumas vezes devedor, nega enquanto puder, e que não paga, mesmo que tiver condições para tanto.
Tal situação é extremamente indesejável, porque incentiva no cidadão um sentimento de desrespeito pelas instituições, o que é completamente pernicioso para a Democracia, e, portanto, totalmente contrário ao interesse público, cuja supremacia deve orientar a Administração Pública.
No caso concreto, salvo melhor juízo, o interesse do Governo é contrário ao interesse do povo, e portanto não pode prevalecer perante o Poder Legislativo.
Saliente-se, por derradeiro, que, neste momento, a promoção de um amplo debate esclarecido e genuinamente democrático, junto ao Poder Legislativo, é medida que se impõe, mormente levando em conta que, instado a reconhecer a inconstitucionalidade de leis estaduais congêneres, em outros casos, o Supremo Tribunal Federal tem se negado sistematicamente a decidir, sequer, os pedidos de suspensão liminar dos efeitos dos dispositivos legais questionados, mesmo quando a ação já se encontra, há muito, pronta para julgamento, e quando há, inclusive, parecer favorável da Procuradoria Geral da República (PGR) – como é o caso da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4332, que foi proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil contra um dispositivo legal estadual de Rondônia, que também reduziu o referencial das obrigações de pequeno valor de sua competência.
Verifica-se, assim de todo o exposto, salvo melhor juízo, que o Projeto de Lei Estadual 201/2014 encontra-se em flagrante e absoluto descompasso com o princípio da proporcionalidade, apontado como parâmetro pelo artigo 100, § 4º, da Constituição Federal.
CONCLUSÃO.
No brevíssimo estudo que ora se apresenta, procurou-se demonstrar que, em que pese o fato de ser, em princípio, juridicamente possível que os Estados federados e Municípios editem leis próprias a respeito do referencial das obrigações de pequeno valor, no âmbito de suas competências; a pretensão de redução fica, invariavelmente, sujeita à proporcionalidade, apontada como parâmetro pela própria Constituição Federal, em seu artigo 100, § 4º.
No caso do Estado do Paraná, especificamente, os dados estatísticos mencionados de forma panorâmica parecem indicar, de forma inequívoca, que a pretensão encartada no Projeto de Lei Estadual 201/2014 encontra-se em completo descompasso com os ditames constitucionais e, assim, não pode prevalecer.
Mostra-se, assim, extremamente necessário o amplo debate democrático e a reflexão circunstanciada sobre o tema, enquanto tramite perante o Poder Legislativo Estadual – inclusive porque, após a vigência de leis semelhantes, o Poder Judiciário tem se mostrado ineficiente no julgamento das demandas que questionam sua constitucionalidade.
REFERÊNCIAS.
DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 15 ed. São Paulo: Malheiros, 2013.
MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica Processual e Tutela dos Direitos. 3 ed. São Paulo: RT, 2010.