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Direito, moral e ciência contemporânea

05/09/2014 às 14:18
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Trata da interdisciplinaridade entre os estudos normativos do Direito e da Moral e as descobertas atuais da física subatômica com as mudanças de paradigma científico - analítico.

A gênese de todo conhecimento ocidental tem se sustentado há milênios, sob o prisma analítico, em três princípios lógicos fundamentais bem postos por Aristóteles, quais sejam:

a) O Princípio da Identidade que “se expressa pela fórmula ‘A = A’, ou seja, todo objeto é igual a si mesmo”. [1]

b) O Princípio da não – contradição que significa que uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo e nas mesmas circunstâncias.

c) O Princípio do Terceiro Excluído, “segundo o qual se uma proposição é verdadeira sua negação é necessariamente falsa; se é falsa, sua negação é necessariamente verdadeira, ficando, portanto, excluída uma ‘terceira possibilidade’”. [2]

Não obstante é preciso lembrar que a lógica que orienta o pensamento analítico é uma espécie de molde vazio que pode muitas vezes abrigar conclusões absolutamente apartadas da realidade. Da mesma forma que se pode construir um silogismo famoso e verdadeiro como: Todo homem é mortal – Sócrates é homem – Portanto, Sócrates é mortal. Também se pode erigir um silogismo falso, contudo logicamente (formalmente) perfeito como: Todo gato fala alemão – Fênix é um gato – Portanto, Fênix fala alemão.

Daí se conclui que o pensamento analítico ou lógico é apenas e tão somente um instrumento de demonstração de uma verdade à qual se chega pela via de outro modelo de pensamento, o pensamento dialético. A dialética, num sentido clássico que se pode buscar na tríade genial de Sócrates, Platão e Aristóteles, diz respeito a uma discussão honesta de ideias em busca da verdade, inclusive marcado pela consciência e humildade de que essa verdade dificilmente será alcançada em sua plenitude. Entretanto, quando se chega a alguma verdade parcial, esta pode ser exposta ou demonstrada de forma inteligível pelo discurso lógico ou analítico.

Observe-se que quando se fala em “dialética” neste contexto, como já destacado, a referência é feita à tradição clássica grega e não à “dialética” de acordo com um modelo hegeliano – marxista. Nesse sentido a palavra “dialética” tem um significado bem diverso e comporta uma verdadeira inversão, no seio da qual a lógica ou analítica praticamente se sobrepõe ou absorve a dialética no sentido tradicional. Ou seja, o conteúdo é deixado de lado e substituído por uma formalidade estéril, vazia, no seio da qual qualquer coisa pode ser inserida num constante devir histórico – mecânico.

Este último modelo, não acatado neste texto, descreve o mundo como um processo dialético em que posta uma tese, há uma antítese e de seu contraste, surge uma síntese (para Hegel no mundo das ideias (idealismo hegeliano); para Marx na “práxis”). No seio desse pensamento a realidade é fluida. A verdade jamais “é”, ela sempre “está” de uma maneira ou outra em dado momento histórico. Mesmo porque, no vocabulário hegeliano, a síntese então obtida “suprassume” a tese e a antítese e se transforma em uma nova tese, reiniciando o processo que nunca tem fim.

Em resumo, na dialética hegeliana/marxista há um “processo” e não o “real”. Na dialética clássica se pretende chegar ao real por meio das discussões entre as opiniões (“doxa”), confrontando-as com o real.

É evidente que a ciência se adequa desde sempre a uma dialética clássica e à analítica (lógica) demonstrativa em sua face empírico – experimental. A ciência tem consciência de sua transitoriedade e do fato de que toda teoria pode ser falseada (isso, aliás, é o que lhe confere cientificidade) [3], mas nem por isso pode jamais se coadunar com um idealismo no qual se crê numa realidade mutável pela simples força das ideias e palavras num devir histórico. Tanto é fato que a ciência funciona (carros se movem, aviões voam, ônibus espaciais atingem seus objetivos, satélites funcionam etc.), quer a opinião popular, a vontade ou o capricho de “A” ou “B” queiram ou não queiram.

Por isso o historicismo descrito por Kuhn, certamente seduzido por uma dialética revolucionária, [4] nada mais pode significar do que, no máximo, um estudo sociológico e até histórico da ciência, jamais como uma investigação epistemológica, filosófica ou conceitual. Se é verdade que não é fácil alterar um modelo ou paradigma científico, o qual muitas vezes se impõe pela exclusão forçada de alternativas que deveriam ser levadas em conta na verdadeira dialética clássica, isso se dá exatamente pelo fato de que a ciência verdadeira não pode se dobrar a essa espécie de vassalagem ideológica. E essa vassalagem é tanto mais constatável empiricamente quanto mais se observam os casos em sociedades marcadas pelo pensamento hegeliano – marxista, onde a ciência costuma ser forçada a adequar suas teorias à ideologia vigente. [5]

Por isso não foi difícil para Popper refutar a tese de Kuhn, apontando para a “miséria do historicismo” [6] e demonstrando claramente que a ciência “não procura resultados definitivos”, de modo que “as afirmações irrefutáveis não fazem parte da ciência”, já que “a falseabilidade de suas asserções (pelo menos em princípio) caracteriza a ciência”. [7] Nem por isso a ciência se aparta de uma busca pela verdade, pelo real, tal como a dialética filosófica clássica. Apenas tem sempre presente a consciência e a humildade de saber que a busca pelo conhecimento é isso, essencialmente isso, ou seja, uma busca contínua, onde toda “crítica gera progresso” e toda “verdade inabalável gera estagnação”. [8] Ao reverso do que se apregoa na pós – modernidade, a crença no real, na verdade é que move a humanidade em sua busca contínua, é ela que produz dinâmica. O relativismo pode gerar, no máximo, anarquia e desorientação em um plano social. No plano intelectual gera, isto sim, estagnação, perplexidade, sensação de impotência e desânimo.

E foi nessa busca pelo real que a ciência contemporânea conseguiu mergulhar tão profundamente ao ponto de desvendar um mundo subjacente ao visível e concebível, ao sensível e palpável. A ciência hoje tenta compreender e descrever o mundo subatômico, mas não o pode fazer com os recursos da lógica (analítica) e seus princípios básicos porque esse mundo, ao menos aparentemente, os contraria. Fala-se “aparentemente” porque a provisoriedade do conhecimento que busca o real o impõe na filosofia e na ciência. E nesta última há que considerar que toda descrição, conhecimento ou verificação objetivas dependem da precisão de instrumentos que podem estar disponíveis em dado momento ou não. [9] Fato é que no atual estado da arte não se dispõe de instrumentos ou mesmo recursos racionais ou linguísticos capazes de expor analiticamente o mundo subatômico, o qual se apresenta como um mistério, por hora ao menos, insondável.

O mistério, porém, não significa que devamos apelar para o desespero do relativismo ou de uma postura pirrônica da dúvida sistemática e da negação da realidade. [10] É bom destacar que isso constitui suicídio físico, moral e intelectual.

Em trabalho conjunto com Jean Guitton, os semiólogos e físicos teóricos Grichka Bogdanov e Igor Bogdqanov propõem nessas circunstâncias o que denominam de “pensamento metalógico” o qual

“ultrapassa a última fronteira que o separa do incognoscível; situa-se além das linguagens, além mesmo das categorias do entendimento: nada perdendo de seu rigor, toca o mistério e se esforça por descrevê-lo. Exemplos? Na matemática, a indecidibilidade (que demonstra ser impossível provar se uma determinada proposição é verdadeira ou falsa); na física, a complementaridade (que enuncia que as partículas ou, mais exatamente, os fenômenos elementares são ao mesmo tempo corpusculares e ondulatórios)”. [11]

Pois bem, na dimensão subatômica algo pode ser, concomitantemente partícula e onda. Ora, para onde vai o princípio lógico – analítico da identidade que afirma que uma coisa é sempre igual a ela mesma? E o da não – contradição? E o “tertium non datur” (terceiro excluído)? Tudo cai por terra.

Fato é que no atual estado da arte a ciência não é capaz de expor analiticamente os fenômenos da física quântica, ao menos de acordo com os instrumentos até agora disponíveis. Conclui-se provisoriamente que não há uma ordem a descrever, que não existe uma linguagem capaz de exprimir tais fenômenos. O que se observa é uma espécie de caos. Mas, isso pode ser diferente? É claro que sim porque a ciência deve e sempre seguiu a dialética clássica, nunca se deixou levar ou moldar nem paralisar pelas circunstâncias. A ciência como a filosofia deve se entregar de corpo e alma à busca perene do conhecimento, de modo que um dia é possível que essa aparência de indescritibilidade, de caos, possa se converter em um conhecimento mais seguro e demonstrável.

A grande questão que faz a ponte com o Direito e a Moral a justificar o título deste trabalho está na impossibilidade e inconveniência de transposição acrítica e alienada do estado da arte das ciências naturais (no caso a física, por exemplo) para as ciências ou estudos normativos. Esse erro é recorrente na história, tendo como exemplo maior o Positivismo comteano do século XIX e na atualidade o reducionismo cientificista. Se esse passo é dado, inclusive sobre um terreno movediço como o científico, todo edifício da segurança jurídica pode desmoronar, tornando a funcionalidade do Direito inviável e, consequentemente, inviável a convivência humana que é, em última e mais profunda análise, a essência da arte do Direito. Por seu turno a Moral e a Ética como seu estudo serão impregnadas pelo relativismo totalmente incapaz de estabelecer conceitos universais imprescindíveis também para a convivência humana minimamente civilizada. Não se trata de conceber o Direito ou a Moral como blocos monolíticos imutáveis. A filosofia e a ciência não apontam para isso, uma vez orientadas para a busca incessante e honesta pela verdade. Doutra banda, uma extrapolação do estado da arte das ciências naturais para as ciências e estudos normativos pode descambar para uma dialética protéica, mutável de acordo com as conveniências, descrente na busca de uma verdade e que, portanto, se move de acordo com o soprar dos ventos históricos e ideológicos.

Ademais, é preciso ter em mente que aquela ciência, mesmo no campo da física, que se adequava com perfeição aos princípios lógico – analíticos clássicos num modelo newtoniano, jamais deixou ou deixará de ser relevante. Ninguém constroi um prédio ou uma ponte, ou projeta um motor com base na física quântica, senão na cinemática, na mecânica e em todo um saber que se acumulou ao longo dos séculos e não deixou de existir e ser útil no momento em que se descobriu que há nas coisas um aspecto micro.

Aliás, a física subatômica não é senão uma pequena parcela da própria física e um conhecimento ainda mais parcial da ciência em geral. Na verdade todo conhecimento científico revela sempre uma determinada parte da verdade, jamais contém explicações para o todo. Dessa forma é necessário manter os pés no chão e saber que todo conhecimento somente é capaz de revelar um ou alguns aspectos da realidade. O projeto filosófico que mira na busca de um princípio unificador é louvável, mas somente quando iluminado pela humildade consistente na consciência de que se constitui em um esforço humano marcado pela perene incompletude e cuja nobreza está em não desistir, não ceder a uma revolta gnóstica devido a essa insuperável limitação.

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REFERÊNCIAS

GUITTON, Jean, BOGDANOV, Grichka, BOGDANOV, Igor. Deus e a Ciência. Trad. Maria Helena Franco Martins. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.

HEGENBERG, Leônidas. Explicações Científicas. São Paulo: Herder/Universidade de São Paulo, 1969.

JAPIASSÚ, Hilton, MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.

KUHN, Thomas S. A Estrutura das Revoluções Científicas. Trad. Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. São Paulo: Perspectiva, 1998.

POPPER, Karl R. A lógica da pesquisa científica. Trad. Leônidas Hegenberg e Octanny Silveira da Mota.  9ª. ed. São Paulo: Cultrix, 200.

__________. La miséria del historicismo. Trad. Pedro Schwartz. Madrid: Alianza, 1961.

RAMPAZZO, Lino. Metodologia Científica. 2ª. ed. São Paulo: Loyola, 2002.

WARBURTON, Nigel. Uma breve história da filosofia. Trad. Rogério Bettoni. Porto Alegre: L&PM, 2012.


Notas

[1] JAPIASSÚ, Hilton, MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996, p. 136.

[2] Op. Cit., p. 260.

[3] POPPER, Karl R. A lógica da pesquisa científica. Trad. Leônidas Hegenberg e Octanny Silveira da Mota.  9ª. ed. São Paulo: Cultrix, 2001, “passim”.

[4] KUHN, Thomas S. A Estrutura das Revoluções Científicas. Trad. Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. São Paulo: Perspectiva, 1998, “passim”.

[5] Nunca é demais lembrar o fiasco de um Trofim Lysenko na URSS, cujas teorias genéticas estapafúrdias foram impostas pelo regime contra o mendeliamismo, considerado fruto do pensamento burguês.

[6] POPPER, Karl R. La miséria del historicismo. Trad. Pedro Schwartz. Madrid: Alianza, 1961, “passim”.

[7] HEGENBERG, Leônidas. Explicações Científicas. São Paulo: Herder/Universidade de São Paulo, 1969, p. 22.

[8] Op. Cit., p. 23.

[9] RAMPAZZO, Lino. Metodologia Científica. 2ª. ed. São Paulo: Loyola, 2002, p. 21.

[10] Pirro (365 – 270 a.C.) foi um filósofo grego famoso por seu ceticismo a questionar e duvidar de tudo numa postura inclusive temerária. Conta a história que somente sobrevivia devido à proteção contínua de seus amigos, já que, por exemplo, diante de um abismo, não deixava de seguir seus passos, pois que aquele abismo que seus sentidos lhe apresentavam podia ser uma ilusão! Embora seu pensamento fosse insustentável no mundo da vida, sem dúvida influenciou pensamentos como o de René Descartes oitocentos anos adiante e inspira, ainda que não o saibam bem eles, os relativistas contemporâneos. Cf. WARBURTON, Nigel. Uma breve história da filosofia. Trad. Rogério Bettoni. Porto Alegre: L&PM, 2012, p. 12 – 15.

[11] GUITTON, Jean, BOGDANOV, Grichka, BOGDANOV, Igor. Deus e a Ciência. Trad. Maria Helena Franco Martins. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992, p. 7. 

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Sobre o autor
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Direito, moral e ciência contemporânea. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4083, 5 set. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30525. Acesso em: 7 nov. 2024.

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