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Considerações em torno do princípio da dignidade da pessoa humana

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Resumo:


  • A Constituição brasileira de 1988, apesar de sua "juventude" e das 36 Emendas Constitucionais, mantém credibilidade devido ao princípio da dignidade da pessoa humana, que supera o princípio democrático como fonte de força normativa.

  • O princípio da dignidade da pessoa humana deve ser interpretado e aplicado à luz da realidade social, servindo como fundamento ético para o Estado Democrático de Direito e orientando a interpretação das demais normas constitucionais.

  • Ética espinosana, ao contrário da visão kantiana, vê a ética como ontológica, refletindo o verdadeiro "ser" e não um dever-ser, o que reforça a compreensão de que o princípio da dignidade da pessoa humana é o "ser" da Constituição de 1988 e essencial para a legitimidade do Estado Constitucional.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Resumo:

            A Constituição brasileira de 1988 encontra-se, por assim dizer, na puberdade. Quatorze anos é um tempo relativamente curto em comparação a Cartas Fundamentais de outros tantos países. Não obstante, e apesar da juventude da Carta Cidadã, ela já sofreu 36 Emendas Constitucionais, tirantes as 6 da malsinada Revisão de 1994. O perigo que se corre é da Constituição perder as suas unidades sintática e semântica, tornando insuportável àquilo que Paulo Bonavides denomina de crise constituinte.

            Apesar desse contínuo atentado institucional, a Constituição brasileira continua a gozar de manifesta credibilidade no meio popular e científico. Donde decorre esta força normativa? No nosso sentir, ela advém do princípio da dignidade da pessoa humana, que na lição de Peter Häberle, é a premissa fundamental de qualquer Estado que se queira dizer Constitucional.

            É verdade que grande parte da doutrina pátria entende vir esta força do princípio democrático, o que nos soa inverídico, tendo em vista os postulados do jusculturalismo.

            E é neste sentido que a ética de Espinosa faz-se útil para explicitar o verdadeiro "modo de ser" da Constituição de 1988. Uma Constituição que deve ser interpretada a partir da realidade social em que está inserida.

            Palavras Chaves: Dignidade da Pessoa Humana – Estado Constitucional – Ética - Espinosa.

            A maior dificuldade que se apresenta a quem se dispõe a fazer ciência cultural é o manejar corretamente o linguajar conceitual próprio de sua área. Este manejar dos conceitos que confluem e refluem na lida diz respeito à própria subsistência das ciências sociais, já que elas têm a dúplice função de interpretar e informar os resultados a que chegou. E em se tratando de áreas críticas, como o direito, não se pode perder de vista o papel "desmistificador" de suas interpretações. Ora, informar é comunicar-se.

            Esta mensagem, para operar o seu papel social, não há de ser transmitida aos doutos: "Os sãos não precisam de médicos [...]", (1) já o dissera Jesus Cristo. A mensagem – e aí esta a maior dificuldade – há de ser transmitida ao povo, pois é ele quem se encontra com as vistas enuviadas pela ignorância e má-fé dos "formadores de opinião".

            Quanto mais o povo for informado, quanto mais ele conhecer o direito – e não somente os "seus direitos" – a esperada evolução social que tanto se quer no Brasil começará a se operar. A evolução nunca é um salto como querem os elitistas encapados de democratas... É um processo. É sempre um devir.

            Cremos que a lição de A. Sampaio Dória deva ser interpretada neste sentido:

            São de experiência universal estas cousas simples e profundas: 1° - Os homens dissentem mais em virtude da equivocidade da linguagem que usem, do que pelas concepções que tenham das realidades em si. 2° - O conhecimento exato dos fenômenos sociais fará mais pela ordem jurídica e pela paz, do que o temor da forças motorizadas. 3° - Quando o povo ignora os grandes princípios do estado, a liberdade que ainda tenha é precária, ou já em ruínas. (2)

            Ora, a Jurisprudência é uma ciência cultural por excelência, pois o seu objeto de estudo, o direito – e não a lei -, é uma manifestação cultural. As mais precárias sociedades têm o seu direito – rudimentar como a sua cultura -, mas tem-no, pois, no final das contas, a função do direito é fixar os limites para a atuação do homem em sua comunidade, tendo como norte o "alterum non laedere" de que nos falavam os romanos.

            Aliás, outra não é a interpretação do mestre teuto Peter Häberle, defensor de um jusculturalismo extremo, posto que põe a cultura como um quarto elemento compositor do conceito de Estado, ao lado dos tradicionalmente aceitos pela doutrina: território, povo e soberania (ou governo). (3)

            Posição como a que firmada acima não é novidade jusfilosófica, visto que no século XIX o indefectível Tobias Barreto (4) fez a seguinte ponderação:

            Dizer que o direito é um produto da cultura humana importa negar que ele seja, como ensinava a finada escola racionalista e ainda hoje sustentam os seus póstumos sectários, uma entidade metafísica, anterior e superior ao homem [...] Quando pois dizemos que o direito é um produto da cultura humana, é no sentido de ser ele um efeito, entre muitos outros, desse processo enorme de constante melhoramento e nobilitação da humanidade; processo que começou com o homem, que há de acabar somente com ele, e que aliás não se distingue do processo mesmo da história.

            Em sentido semelhante, eis a lição precisa de Carlos Carcova, (5) quando ensina ser o direito "[...] uma prática social específica que expressa historicamente os conflitos e tensões dos grupos sociais e dos indivíduos que atuam em uma formação social determinada [...]", no que é seguido pelo mestre português António Menezes Cordeiro: "O Direito, realidade cultural, coloca-se, tal como a língua, numa área de estabilidade marcada. As verdadeiras mudanças são lentas; a sua detecção depende de uma certa distanciação história". (6)

            Há de se reconhecer como óbvio que a evolução social traz consigo a própria evolução do direito, que passa a não ser mais concebido como emanação do modo de produção social da sociedade, mas antes, como instrumento de dominação de uma certa "casta" de homens, tendo, também, a função técnica de garantir a aquisição de riquezas mediante, primeiro, a adoção do dogma da propriedade, requisito indispensável para o surgimento do mercado, e em segundo, das regras técnicas de aquisição de propriedade e de comércio, institutos que garantem segurança na troca de mercadorias (7), destacando-se preponderantemente o contrato.

            Se o direito é uma manifestação cultural, a ciência que o interpreta deverá também o ser, sob pena de o seu labor dissociar-se da realidade do seu objeto.

            Ora, segundo intuiu Theodor-Wiesengrund Adorno, mestre da Escola de Frankfurt, em O Conceito de Iluminismo (8), a pretensão dos homens da "idade das luzes" fora a de quebrar "a magia" que estava presente na interpretação dos fatos da vida pelo homem. Desmistificar implicava o "dominar a natureza", fazendo do homem o seu senhor, e não seu aio. E não se tem notícia de que essa opinião tenha mudado.

            O mesmo se deu com a Jurisprudência, já que o jusnaturalismo nada mais foi do que a aplicação dos dogmas do iluminismo na ciência do direito, cabendo a Pufendorf a utilização do moderno conceito de sistema no direito. (9) Pensar sistematicamente é ter em mente a dicotomia "unidade – ordem", que quer significar, em síntese, dominação dos princípios mais elementares que fundamentam a realidade jurídica, já que o sistema jurídico deve ser entendido como "[...] ordem teleológica de princípios gerais do direito". (10)

            Sendo ciência cultural, manifesta-se o direito por meio da linguagem da sociedade em que inserido. Não existe um linguajar propriamente jurídico; existe sim uma metalinguagem jurídica. Como seja, um discurso feito sobre outro discurso; uma linguagem acerca de outra linguagem. E como dito inicialmente, esta metalinguagem é o grande "calcanhar de Aquiles" do cientista do direito, pois a nomeação dos fatos da vida nem sempre corresponde à realidade do ente nomeado; não raramente se utilizará uma palavra identificadora de outro objeto para nomear o "novo", dando ocorrência à polissemia, e com ela, à equivocidade na comunicação.

            O ser e as palavras estão aí. Estas, por interferência do homem, são "coladas" aos entes, que existem independentemente de serem ou não nomeados. E segundo ensinou Nietzsche, quanto mais as palavras se referirem a entes abstratos, mais se parecerão a "[...] alforges, nos quais as épocas e as filosofias teriam acumulado as coisas mais heteróclitas. E assim a palavra acaba tornando-se um tal entrecruzamento de "marcas" que embaralha todas as pistas". (11)

            As palavras têm uma dúplice função: comunicação e segurança. Com as palavras o homem se comunica com outro homem, sem o qual não haveria comunidade (ter em comum alguma coisa, que inicialmente é a própria língua. Ela é o primeiro elo a unir os indivíduos.), sendo que a certeza no comunicar confere segurança aos interlocutores, como seja, certeza de que se fala em paz, e não em guerra; em amor, e não em ódio; em respeito, e não em desconsideração...

            Eis porque tem crescido na ciência do direito a preocupação com o estudo da própria linguagem jurídica. (12)

            Mas é importante não se perder de vista a lição de Francesco Carnelutti: para se estudar o direito basta o domínio de sua conceituação técnica, o que se adquire com tempo e disposição mental. Contudo, para entendê-lo e interpretá-lo, é preciso mais do que ciência. É preciso prudência e amor (13), pois no dizer de Pontes de Miranda:

            Interpretar lei não é criticá-la: é inserir-se nela, e fazê-la viver. A exigência, portanto, cresce de ponto, em se tratando de Constituição. Com a antipatia não se interpreta, - ataca-se; porque interpretar é pôr-se do lado do que se interpreta, numa intimidade maior do que permite qualquer anteposição, qualquer contraste, por mais consentinte, mais simpático, que seja, o intérprete e do texto. Portanto, a própria simpatia não basta. É preciso compenetrar-se do pensamento que esponta nas regras jurídicas escritas; e, penetrando-se nelas, dar-lhes a expansão doutrinária e prática, que é o comentário jurídico. Só assim se executa o programa do jurista, ainda que, de quando em vez, se lhe juntem conceitos e correções de lege ferenda. (14)

            Cogita-se, neste caso, da "prudentia" socrática, como seja, daquela característica cultuada pelo homem dotado de disposição e razão para realizar o que é correto e justo para si e para a coletividade. O homem prudente, segundo o estagirita, não cogita do que é certo ou errado: somente do é que bom e justo. (15)

            O tema que nos propomos a estudar traz, em si, não poucas dificuldades de ordem semântica, pois gostaríamos de descrever e conceituar o que quer significar o princípio da dignidade da pessoa humana no Estado Constitucional.

            Contudo, antes de expormos o resultado a que chegamos, é preciso que exponhamos o nosso método de trabalho: utilizamos diferentemente os conceitos descrição e conceituação, muito embora o senso comum trate-os como equivalentes. É que para nós, Baruch de Espinosa (1632/1677) está certo quando ensinou que o conhecimento somente é obtido quando se busca "a causa" do ente. Buscar a causa é excluir, por serem modos de aquisição de conhecimento falhos, as pseudoformas "por-ouvi-dizer" , por "por-experiência-vaga" e o meramente "a partir dos efeitos", isto é, o racional-experimental.

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            A definição – que é onde se obtêm o verdadeiro conhecimento – somente se alcança quando se busca a causa primeira do ente. É uma busca, portanto, de ordem genética. A descrição, por seu turno, é analítica-descritiva.

            Exemplos de definição e descrição são dados por Marilena Chauí: define-se o círculo como sendo "[...] uma figura na qual todos os pontos eqüidistam do centro [...]" (16); mas para se defini-lo, busca-se a sua causa, a sua origem, donde surge a seguinte ilação: círculo é "[...] o produto de rotação de um segmento em torno de um eixo ou de um ponto extremo central". (17)

            A diferença, verifica-se logo, é extrema. O conhecimento, no primeiro caso, veio pela descrição de algo que se vê, apanhado pela experiência, conhecimento que não explica o que é o ente, donde surgiu. Já no segundo caso, a razão foi utilizada para se obter o conhecimento da causa que deu gênese ao ente: buscou-se a sua origem, o que ele é e como surgiu: "Conhecer pela causa significa descobrir o modo pelo qual algo é produzido; trata-se, portanto, de um processo genético". (18)

            Pois Bem. O princípio da dignidade da pessoa humana está insculpido na mais emblemática norma da Constituição, o artigo 1°, norma que traz em si toda a carga de esperança que anos de ditadura não conseguiram sufocar. Se juridicamente ele delineia todo o arcabouço jurídico brasileiro, devendo servir de fonte primária para qualquer interpretação constitucionalmente adequada, já que veicula princípios indeclináveis como o princípio republicano, o princípio federativo, o princípio do estado constitucional, princípio da liberdade, princípio da soberania popular etc, politicamente ele significa a vitória da liberdade contra a opressão, da paz contra a belicosidade, do humanismo contra o tecnicismo desumanizante.

            E é neste prisma que se há de interpretar o princípio anunciado.

            No ordenamento vetusto importava o fortalecimento do Estado, mais precisamente, do Executivo, pois até as garantias fundamentais foram encaradas como meras concessões dos generais no poder, que as davam e as retiravam de acordo com um juízo discricionário próprio de Estados ditatoriais (19). Hoje o "script" é outro.

            Agora é o homem quem deve ser fortalecido. Os direitos e garantias fundamentais são meros instrumentos de realização da pessoa humana; os programas criados pela Constituição, em decorrência dos direitos sociais (artigo 6º), como educação (artigos 205 e 206), saúde (artigos 196 e 198), desporto (artigo 217, cabeça e §3°), assistência social (artigos 203 e 204), proteção à criança e ao adolescente (artigo 227), ao idoso (artigo 230), aos silvícolas (artigos 231 e 232), objetivam criar políticas públicas através das quais a plena realização do homem é o fim a ser atingido, mediante, é óbvio, a observância do princípio do pluralismo político (artigo 1º, inciso V).

            É a plena realização do homem que importa teleologicamente a um Estado Constitucional, e não do Estado como poder-potência. (20)

            Assim, esta norma, que poderíamos conceituar como sendo veiculadora de um princípio político constitucionalmente conformador, posto que, como outras de igual teor, "[...] explicitam as valorações políticas fundamentais do legislador constituinte. Nestes princípios se condensam as opções políticas nucleares e se reflecte a ideologia da constituição [...]" (21), expressa o querer mais primitivo do povo brasileiro, o valor mais comezinho do modo de produção nacional, como seja, a valorização do ser humano como única forma de se criar, estruturar e sustentar um Estado Democrático de Direito.

            Por isso é um princípio conformador (que põe em conformidade, do que originou o popular "nos conformes"): ele serve de chave de abóbada para todo o sistema jurídico, a começar pela própria Constituição da República.

            Não que se vá empolgar uma superioridade normativa deste princípio frente a outras normas constitucionais, o que engendraria, em caso de antinomia, a necessidade de se declarar a inconstitucionalidade da norma desconforme ao preceito mais importante, na senda do que propõe Otto Bachof (22), já que em tal testilha, se trataria de impor "[...] limites da actuação estadual em todas as formas – seja mesmo na veste da actuação constituinte -, da relação entre a legitimidade e a legalidade, das possibilidades e limites do controlo judicial da legitimidade [...] (23).

            Esta tese, que já foi apreciada por mais de uma vez pelo Supremo Tribunal Federal, como se vê, por exemplo, na Adin 815/DF, foi rechaçada por se entender incabível a aferição de constitucionalidade de preceito original da constituição, pois o poder constituído não pode julgar o poder constituinte, ou como diria Paulo de Tarso: "[...] Porventura, pode o objeto perguntar a quem o fez: Porque me fizeste assim? Ou não tem o oleiro direito sobre a massa, para da mesma fazer um vaso para honra e outro, para desonra?" (24).

            Além do que, é sabido que toda constituição moderna dispõe de um "dispositivo antiantinomia": o princípio da unidade da constituição. (25)

            Entende-se, por uma questão sistemática e de segurança jurídica, que a Constituição forma um todo unitário e harmônico, onde inexiste antinomia de qualquer ordem, própria (entre normas) ou imprópria (entre princípios). "Esse princípio [...]" no dizer de Friedrich Muller,

            [...] ordena interpretar normas constitucionais de modo a evitar contradições com outras normas constitucionais e especialmente com decisões sobre princípios do direito constitucional. A "unidade da constituição" enquanto visão orientadora [Leitbild] da metódica do direito constitucional deve antepor aos olhos do intérprete enquanto ponto de partida, bem como, sobretudo, enquanto representação do objetivo, a totalidade da constituição como um arcabouço de normas. Este, por um lado, não é destituído de tensões nem está centrado em si [in sich ruhend], mas forma, por outro lado, provavelmente um todo integrado com sentido". (26)

            Mas é certo que, conforme intuiu Raul Machado Horta, esta norma deverá servir de fonte de interpretação às demais normas constitucionais, para que se possa "[...] extrair dessa nova disposição formal a impregnação valorativa dos Princípios Fundamentais, sempre que eles forem confrontados com atos do legislador, do administrador e do julgador" .(27)

            Importante que se fixe que o princípio em cogitação refere-se ao homem como "realidade concreta", ou no dizer de Jorge Addame Goddard:

            Do ponto de vista jurídico, a dignidade da pessoa fundamenta a grande diferença de tratamento entre as pessoas e as coisas. As coisas (qualquer ser corpóreo, incluindo seres vivos), como não têm domínio de si, podem ser objeto do domínio de outros e podem ser, em conseqüência, objeto dos atos jurídicos: podem ser comprados e vendidos, arrendados, cedidos, doados etc; ao contrário, as pessoas não podem ser objeto de domínio nem podem ser objeto de um ato jurídico. Por isso se diz que a pessoa é inalienável [...] É uma dignidade que todos possuem pelo simples fato de terem a natureza humana, independentemente de qual seja o grau de desenvolvimento ou de perfeição de cada pessoa em particular. Têm-na os varões o mesmo que as mulheres, as crianças a mesma que os adultos, o estrangeiro igual à dos nacionais [...] em suma, tem-na qualquer ser humano, porque seja qual for o seu desenvolvimento ou perfeição, é um ser corpóreo de natureza racional ou, como se tem preferido dizer, é um espírito encarnado". (28)

            Verifica-se que é a aplicação da teoria kantiana, conforme ensina Cleber Francisco Alves (29), citando como apoio, breve trecho de artigo assinado por José Afonso da Silva: (30)

            (A) filosofia kantiana mostra que o homem, como ser racional, existe como fim em si, e não simplesmente como meio, enquanto os seres desprovidos de razão têm um valor relativo e condicionado (sic), e de meios, eis porque se lhes chamam coisas; "ao contrário, os seres racionais são chamados pessoas, porque sua natureza já os designa como fim em si, ou seja, como algo que não pode ser empregado simplesmente como meio e que, por conseguinte, limita na mesma proporção o nosso arbítrio, por ser um objeto de respeito". E assim se revela como um valor absoluto, porque a natureza racional existem com fim em si mesma".

            Não se trata, portanto, dos conhecidos "entes abstratos" que o liberalismo e o socialismo criaram: a "nação" e o "cidadão" dos burgueses da França de 1789, (31) ou os "proletários", "trabalhadores" ou ‘povo trabalhador e explorado" da revolução bolchevique de 1917 (32).

            Importa, repita-se, somente o fortalecimento do homem: cada pessoa que por condição natural, e não jurídica, possa assim ser conceituado. Biologicamente, todo ser nascido de mulher, independentemente de sua viabilidade física ou desenvolvimento mental.

            Poderíamos dizer, de outro modo, nada dogmático é verdade, mas que no nosso sentir define corretamente esta norma: é um princípio "pé no chão", pois conforma o Estado a partir de sua realidade cultural, do homem que habita em seu território, não de dogmas ou crendices originados nas academias.

            Nas várias constituições que serviram de paradigmas à Constituição de 1988 – a de Portugal de 1976, a Constituição Espanhola de 1978, a Lei Fundamental de Bonn de 1949 e o Código Constitucional de 1947 da Itália -, veiculam-se normas parecidas ao artigo 1º, inciso III, sendo que nestes países, em especial na Alemanha, o princípio da dignidade da pessoa humana serve de fonte normativa para princípios técnicos-decisionais da mais ampla importância, como da intangibilidade dos direitos fundamentais e da proporcionalidade (33).

            Com efeito, o art. 1º da Lei Fundamental Alemã (34) prescreve que:

            1. A dignidade da pessoa humana é inviolável. Constitui obrigação de todas as autoridades do Estado o seu respeito e proteção. 2. O povo alemão reconhece, em conseqüência, os direitos invioláveis e inalienáveis do homem como fundamento de toda comunidade humana, da paz e da justiça do mundo".

            Já o artigo 10 da Constituição da Espanha assim prescreve:

            A dignidade da pessoa humana, os direitos invioláveis que lhe são inerentes, o livre desenvolvimento da personalidade, o respeito à lei e aos direitos do semelhante constituem o fundamento da ordem política e da paz social".

            Por seu turno, os artigos 2° e 3° do Código Constitucional de 1947 da Itália seguem a mesma linha de princípio. (36)

            Por último, o artigo 1º da Constituição da República Portuguesa prescreve o seguinte:

            Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária.

            Importante notar que as quatro constituições paradigmáticas têm em comum o fato de terem surgido após graves crises institucionais decorrentes de revoluções internas que derrubaram sistemas autocráticos de governo (Portugal e Espanha), ou mais grave ainda, após a perda da independência pela derrota em guerra mundial (Alemanha e Itália), e que como corolário, adotaram Constituições Democráticas que têm como fundamento irremissível o princípio da dignidade da pessoa humana.

            Pedro Cruz Villalón e Javier Pardo Falcón, em artigo publicado no Boletín Mexicano de Derecho Constitucional, expõe idéia semelhante quanto à Constituição Espanhola de 1978:

            A Constituição espanhola (CE) de 1978, pondo fim a um longo período histórico de ausência de liberdade, compreende-se a si mesma, muito particularmente, como uma Constituição de Direitos. Junto à tarefa de reconciliação nacional (anistia) e da restituição do autogoverno às nacionalidades e regiões (Estatuto da Autonomia), os direitos fundamentais (liberdades) figuraram como uma das aspirações básicas do movimento popular que animou a transição política até a democracia nos anos de 1975/1978. Os direitos "invioláveis" inerentes à pessoa erigem-se, assim, em "fundamento da ordem política e da paz social" (artigo 10.1, CE) [...]. (37)

            Assim, nos parece que o grande mérito dos artigos citados é, primeiramente, fixar a dignidade da pessoa humana como inviolável e preexistente ao próprio ordenamento jurídico (os textos são declaratórios, e não constitutivos, e têm manifesta carga mandamental, para usarmos termos processuais), podendo tal princípio, seguindo doutrina de Uadi Lamêgo Bulos, ser conceituado como um limite substancial transcendente ao poder constituinte material (38), disto decorrendo a prescrição da inviolabilidade dos direitos inerentes à personalidade humana. Como seja, os direitos fundamentais não surgem de uma vontade ou concessão do Estado. Nascem da própria condição natural do homem, como ser ético e racional, dotado de inteligência e atributos morais. É este "ser" que se objetiva tutelar e fomentar a sua evolução cultural por meio do direito, sendo os direitos fundamentais instrumentos de sua realização.

            Não resta duvida que o princípio de que cogitamos é a fonte de legitimidade para qualquer Estado Constitucional. Mas não somente isto. É a fonte primeira de legitimidade e validade do Estado Constitucional, sendo a efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana, e não somente a sua declaração num texto formal, que nos dirá se estamos efetivamente diante de um Estado Democrático de Direito ou de um Estado Autocrático, Aristocrático, Plutocrático...

            Nesta senda de idéias é que ensina Peter Häberle:

            Há que se partir da tese de que o conjunto dos direitos de tipo pessoal, por um lado, e os deveres, por outro lado, devem permitir ao ser humano chegar a ser pessoa, sê-lo e seguir o sendo. Nesta garantia jurídica, específica dos âmbitos vitais do ser pessoa, da identidade, encontra na dignidade humana seu lugar central: e o modo pelo qual o ser humano chega a ser pessoa nos oferece indícios do que seja a "dignidade humana". Aqui se devem distinguir duas questões: como se forma a identidade humana numa sociedade, e em que medida se pode partir de uma concepção de identidade válida entre culturas (e, portanto, universal). (39)

            Para o mestre da Universidade de Bayreuth, o Estado Constitucional é somente aquele democraticamente estruturado, tendo como premissa axiológica-cultural a dignidade da pessoa humana. As demais premissas necessárias - direitos fundamentais, divisão de poderes, controle judicial etc - decorrem dela. Todos os Estados constituídos sobre estas premissas têm aquilo que o autor denomina de "espírito das constituições", em clara reminiscência ao "espírito das leis" de Montesquieu, como seja, são Estados objetivamente justos.

            No dizer do próprio autor:

            Tais elementos são: a dignidade humana como premissa, realizada a partir da cultura de um povo e dos direitos universais da humanidade, vividos a partir da individualidade desse povo, que encontra sua identidade em tradições e experiências históricas, e suas esperanças nos desejos e na vontade criadora de um futuro; o princípio da soberania popular, não entendida, porém, como competência para a arbitrariedade nem como magnitude mística por sobre os cidadãos, mas sim como fórmula que caracteriza a união renovada constantemente na vontade e na responsabilidade públicas; a Constituição como contrato, em cujo marco são possíveis e necessários fins educativos e valores orientadores; o princípio da divisão de poderes, tanto no sentido estrito, relativo ao Estado, como no sentido amplo do pluralismo; os princípios do Estado de Direito e o Estado Social, o mesmo que o princípio do Estado de cultura ("Kulturstaat") aberto; as garantias dos direitos fundamentais; a independência da magistratura etc. Tudo isto se incorpora numa democracia cidadã constituída pelo princípio do pluralismo." (40)

            Assim, nos parece que o princípio cogitado serve de fundamento ético ao Estado Democrático de Direito que a Constituição de 1988 quis criar, ocupando, desta sorte, o "pólo magnético" do sistema jurídico-constitucional brasileiro.

            Colhem-se, no entanto, idéias dessemelhantes na doutrina brasileira, como, v.g., a tese defendida por Carlos Ayres Britto, para quem este lugar é ocupado pela democracia. Eis suas palavras: "De sorte, Ivo, que a democracia há de resistir a tantos golpes, porque ela, no fundo, é o verdadeiro ser, a verdadeira alma da Constituição brasileira de 1988". (41)

            Temos de discordar desta tese. A democracia, como bem explanou Peter Häberle, é uma das premissas do Estado Constitucional. Mas o verdadeiro "ser" é o homem, é a pessoa humana que criou o ordenamento jurídico a partir de suas práticas culturais, de suas necessidades etc. A democracia é somente um instrumento para a realização do homem. Não é um fim em si mesma.

            Mas é um fato que grande parte da doutrina brasileira encampa teoria como aquela defendidaa pelo Dr. Ayres Britto, e outros vão mais além, posto que assimilam conceito de cidadania – um outro pressuposto indeclinável do Estado Constitucional – próprio de outros ordenamentos jurídicos. Assim, para José Afonso da Silva, cidadão há que ser entendido como trabalhador, tal qual o prescreve a Constituição Italiana de 1947. (42)

            A desconcordância com teses semelhantes às que formuladas por Ayres Britto deve-se a duas considerações: a primeira, de ordem sistemática, prende-se à constatação de que a democracia brasileira é extremamente firmada no sistema partidário, como seja, a democracia brasileira, na sua feição mais ativa, depende dos programas dos partidos políticos, pois, conforme ensina José Afonso da Silva, "[...] os constituintes optaram por um modelo de democracia representativa que tem como sujeitos principais os partidos políticos, que vão ser os protagonistas quase exclusivos do jogo político [...]" (43). Ora, em se tratando do sistema partidário nacional, confiar quase que exclusivamente na programaticidade e atuação dos partidos políticos para se implementar a democracia, é, no mínimo, uma temeridade. Quanto mais se esperar que desta democracia nasçam condições de efetiva observância do princípio ora tratado.

            Em segundo lugar deve-se a um entendimento diferenciado com relação à ética e aos princípios éticos.

            Na idade moderna surgiram duas formas de compreensão da ética. A primeira formulada por Emanuel Kant, segundo o qual, a ética é composta de normas deontológicas que expressam um dever-ser, isto é, que impõem normas de conduta ao homem. Diferencia-se do direito pelo fato de não ter como agente elaborador o Estado, portanto não sujeitando o agente desobediente a uma sanção estatal, mas tão-somente social, ou seja, a reprovação de seus pares.

            A teoria kantiana é seguida pela maior parte da doutrina filosófica e jurídica.

            A segunda teoria sobre a natureza da ética foi formulada pelo já citado Baruch de Espinosa. Para o mestre holandês, a ética diferencia-se das regras religiosas e morais, na medida em que estas expressam, tal qual dito por Kant, normas de condutas, como seja, servem para expandir crendices e superstições (44), que no dizer de Marilena Chauí "[...] é uma paixão negativa da imaginação que, impotente para compreender as leis necessárias do universo, oscila entre o mundo dos males e a esperança dos bens [...]" (45); a ética, portanto, não é deontológica, mas sim ontológica. Ela não expressa um dever-ser, mas manifesta o verdadeiro "ser". É a ciência que permite apreender com exatidão o "ser-em-si" que mais tarde seria formulado por Martin Heidegger.

            Isto quer significar que a ética é a mais pura razão aplicada no "compreender" a Natureza, pois ela:

            [...] nada tem a ver com deveres: aliás, para Espinosa, quem age por dever não é autônomo, não é livre, age por mandamento. A Ética é a definição (ou apresentação genética) do ser do homem "tal como ele é", e demonstrando "porque" o homem é tal como é. Assim procedendo, Espinosa recupera o sentido grego de ethos: modo ou maneira de ser. (46)

            Aplicando-se a teoria espinosana de ética ao tema em quadra, isto é, interpretando o princípio da dignidade da pessoa humana não como uma norma deôntica, mas sim ôntica, verifica-se que esta norma explicita a verdadeira feição do Estado Constitucional: um Estado que tem o homem como a sua fonte de existência, e que depende exclusivamente deste ente para existir e gozar de legitimidade. Somente a efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana faz com que um Estado seja Constitucional. Os demais são arremedos.

            A negação deste princípio é a negação da própria Constituição. Não se pode querer preservar esta sem que haja observância total e irrestrita àquele, pois ele é a premissa primeira de todo o arcabouço jurídico.

            A dignidade da pessoa humana é, em outras palavras, a verdadeira força normativa da constituição democrática, pluralística e comprometida com a justiça.

            Diante desta quadra de idéias, conclui-se ao conceituar o princípio da dignidade da pessoa humana como sendo: a) um limite substancial transcendente ao poder constituinte material, b) um princípio político constitucionalmente conformador, c) um princípio fundamental, d) um princípio paradigmático para uma interpretação constitucionalmente adequada, e outras mais. Quer-se dizer, é um princípio de conceituação polissêmica.

            Já, para se defini-lo, basta dizer que o princípio da dignidade da pessoa humana é o fundamento "ôntico", é o "ser" da Constituição de 1988 e de todo o sistema jurídico nacional. É um princípio que nos remete ao homem brasileiro na sua lida diária, e não ao "homem" das academias, da política partidária e das estatísticas econômicas, o tão famoso "homem médio".

            E é esse homem que importa fortalecer, proteger e fomentar a sua evolução cultural, e para isto se fez a Constituição de 1988.

            Não dar plena aplicabilidade a esta norma não é somente instaurar uma grave crise constituinte no seio do ordenamento jurídico brasileiro (47). Redundará, isto sim, no próprio descrédito do direito como fator de ordenação social.

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Sobre o autor
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira

advogado em Porto Velho (RO), bacharel em Direito pela Fundação Universidade Federal de Rondônia, professor de Direito na Faculdade Associadas de Ariquemes

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Marcus Vinícius Xavier. Considerações em torno do princípio da dignidade da pessoa humana. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 58, 1 ago. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3087. Acesso em: 23 dez. 2024.

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