3) O PROCESSO COLETIVO
3.1) AS ONDAS RENOVATÓRIAS DO PROCESSO CIVIL CONTEMPORÂNEO
Consoante os ensinamentos de ADA PELLEGRINI GRINOVER (2001, p. 42), podem ser destacadas, na história do direito processual, três fases metodológicas fundamentais, a saber, a fase do sincretismo, a autonomista ou conceitual, e a instrumentalista, esta última ainda em curso.
No período sincretista, que se estendeu até meados do século XIX, “imaginava-se a alocação do direito processual como ramo autônomo do direito, resumindo-se a singelo instrumento pelo qual se exerciam direitos. Não se reconhecia a autonomia do direito de ação, esta última intimamente ligada a direito subjetivo material” (LENZA, 2008, p. 114). É recorrente a associação, nesse sentido, do processo enquanto “mero apêndice do direito material”, ou mesmo como simples sucessão de atos (procedimento).
A fase autonomista ou conceitual do direito processual, a partir de meados do século XIX até praticamente meados do século XX, desenvolve uma nova visão do direito processual, encarando-o como ciência autônoma, digna de análise sistematizada, de modo a se enfatizar uma teoria da relação jurídica processual apartada do direito substancial ou material, com princípios e leis próprias.
Dessa percepção – que muito contribuiu para o contemporâneo direito processual – é que nasce a ação como direito abstrato, autônomo e instrumental, conexa a uma situação jurídica concreta, sem dela depender ou originar. Entretanto, adverte LENZA, “muito embora tenha esta segunda fase contribuído para a alocação e sedimentação do direito de ação como verdadeiro direito autônomo, independente da existência do direito subjetivo material, faltou-lhe uma postura crítica” (2008, p. 117).
Nessa quadra, emerge a fase instrumentalista do processo, que passa a examinar o sistema processual sob um ângulo externo, em que se destaca a qualidade e eficiência do direito material posto sob crivo do Judiciário, à busca de uma prestação jurisdicional justa, adequada e efetiva. Busca-se, nesse novo momento, a superação do distanciamento entre as ciências processual e material, que redundou, na fase anterior, em extremada valorização do tecnicismo. Com isso, assume relevo a perspectiva de que a técnica processual deve, de fato, servir ao Direito, com o fito de concretizá-lo. É o que esclarece HUMBERTO THEODORO JR (2002, p. 7):
“De acordo com os processualistas mais eminentes da atualidade, pode-se afirmar, sem medo de erro, que a nota da efetividade da tutela jurídica se transformou na busca incessante de aproximar cada vez mais o processo e o direito material, sob a inspiração do princípio da instrumentalidade”.
À busca da pacificação social, o sistema processual, sob tal ótica, assume o papel de instrumento indispensável a atingir os denominados “escopos da jurisdição”, incluindo não apenas a tradicional finalidade jurídica (atuação da vontade concreta do direito substancial), como também os escopos sociais e políticos, respectivamente entendidos como “a educação para a consciência, respeito e exercício dos direitos” e como a “manutenção e preservação do estimado valor da liberdade, o incentivo à participação nos destinos da nação e do Estado pela oferta de adequados meios e a preservação do ordenamento jurídico e de sua própria autoridade” (LENZA, 2008, p. 122).
Fala-se, então, que o processo contemporâneo deve ser apto a cumprir integralmente toda a sua função sócio-político-jurídica, de modo a conferir efetividade ao direito material que busca resguardar, e possibilitar a efetiva garantia do acesso à Justiça, ou, na clássica terminologia de WATANABE, a realização do acesso a uma “ordem jurídica justa”. É o que leciona PEDRO LENZA (2008, p. 131), secundando o ilustre jurista:
“Segundo a feliz distinção de Watanabe, 'a problemática do acesso à Justiça não pode ser estudada nos acanhados limites do acesso aos órgãos judiciais já existentes. Não se trata apenas de possibilitar o acesso à Justiça enquanto instituição estatal, e sim de viabilizar o acesso à ordem jurídica justa”.
Essa interconexão dinâmica entre o processo e o Direito material, que consubstancia o cerne do pensamento instrumentalista, entretanto, sinalizou, a igual modo, que a garantia da efetividade das prestações jurisdicionais encontra obstáculos de ordem prática, a serem necessariamente transpostos, tais como, segundo LUIZ GUILHERME MARINONI (2000, p. 251):
“a) o custo do processo; b) a duração do processo; c) o problema cultural: o reconhecimento dos direitos; d) a questão psicológica: o pobre, muitas vezes, sente-se intimidado diante da Justiça, seja perante os seus operadores, seja para a postulação de direitos não tradicionais; e) os litigantes eventuais diante dos litigantes habituais; f) a necessidade de reestruturação das categorias do processo civil individual para a efetividade da tutela dos conflitos de massa”.
Ou ainda, na visão de BRYANT GARTH e MAURO CAPPELLETTI, juristas estrangeiros de renomada acuidade doutrinária:
“a) custas judiciais (custo dos defensores técnicos), as pequenas causas, a necessidade de julgamento em um 'prazo razoável'; b) possibilidades das partes (recursos financeiros, aptidão para reconhecer um direito e propor uma ação ou sua defesa), a desigualdade entre os litigantes 'eventuais' e 'habituais' (…); c) problemas especiais dos interesses difusos, (…) conceituados como aqueles 'fragmentados ou coletivos, tais como o direito ao ambiente saudável, ou à proteção do consumidor'”. (in LENZA, 2008, p. 134-135)
Ao tentar superar tais óbices, o processo civil contemporâneo, eminentemente instrumentalista, e com vistas a oportunizar verdadeira igualdade de armas, desenvolveu-se em três “grandes ondas renovatórias”, de acordo com a tradicional classificação de GARTH e CAPPELLETTI.
A primeira grande onda, ao procurar solucionar o problema do ingresso em juízo (admissão ao processo), concentrou uma série de reformas legislativas no sentido de oportunizar assistência judiciária integral e gratuita àqueles que não tinham condições de prover suficientemente, de modo a, num primeiro momento, permitir o acesso à Justiça.
A segunda onda renovatória cuidou das reformas tendentes a proporcionar representação jurídica para os interesses difusos, em especial nas áreas da proteção ambiental e do consumidor, a partir do advento da sociedade de massa, “cujos conflitos, também de massa, inevitavelmente, trouxeram outras necessidades antes inexpressivas” (LENZA, 2008, p. 136). No ordenamento pátrio, desse modo, revisitou-se tradicional o conceito de legitimação ordinária contido no art. 6º do Código de Processo Civil[2]. Nas palavras de GARTH e CAPPELLETTI:
“A concepção tradicional do processo civil não deixava espaço para a proteção dos direitos difusos. O processo era visto apenas como um assunto entre duas partes, que se destinava à solução de uma controvérsia entre essas mesmas partes a respeito de seus próprios interesses individuais. Direitos que pertencessem a um grupo, ao público em geral ou a um segmento do público não se enquadravam bem nesse esquema. As regras determinantes da legitimidade, as normas de procedimento e a atuação dos juízes não eram destinadas a facilitar as demandas por interesses difusos intentadas por particulares” (in LENZA, 2008, p. 137).
O terceiro movimento ou onda foi denominado, pelos autores alienígenas, de “enfoque de acesso à Justiça”, a exigir do processo resposta justa, adequada, útil e eficaz a todo tipo de demanda posta sob litígio. Nesta nova perspectiva, o processo assume a finalidade primordial de “dar a quem tem um direito tudo aquilo e precisamente aquilo que ele tem o direito de obter”, nas palavras de CINTRA, GRINOVER e DINAMARCO (2001, p. 35-36).
Enaltece-se, ademais, a necessária feição humana do processo, “rogando-se por um contraditório efetivo e pela igualdade das partes, apresentando-se o magistrado, em sua condução, comprometido com a realidade social” (LENZA, 2008, p. 139).
A busca pelo acesso à ordem jurídica justa, dessa forma, repagina todo o modo-de-ser do processo, lançando o olhar da efetividade sobre institutos tais como contraditório, inquisitividade, legitimidade, prova, procedimento e coisa julgada, dentre outros.
3.2) CONCEITO
FREDIE DIDIER JR. e HERMES ZANETI JR. (2011, p. 44) conceituam o processo coletivo como aquele “instaurado por ou em face de um legitimado autônomo, em que se postula um direito coletivo lato sensu ou se afirma a existência de uma situação jurídica coletiva passiva, com o fito de obter um provimento jurisdicional que atingirá uma coletividade, um grupo ou um determinado número de pessoas”. E assim arrematam:
“Ação coletiva é, pois, a demanda que dá origem a um processo coletivo, pela qual se afirma a existência de uma situação jurídica coletiva ativa ou passiva. Tutela jurisdicional coletiva é a proteção que se confere a uma situação jurídica coletiva ativa direitos coletivos lato sensu (ou a efetivação de situações jurídicas (individuais ou coletivas) em face de uma coletividade, que seja titular de uma situação jurídica coletiva passiva (deveres ou estados de sujeição coletivos)” (DIDIER JR; ZANETI JR, p. 44).
Cuida, pois, a demanda coletiva da tutela jurisdicional dos direitos metaindividuais, através de mecanismos e institutos próprios, em função do reconhecimento da insuficiência do tradicional processo civil clássico para a solução dos novos conflitos oriundos da sociedade de massas, não mais circunscritos a uma simples disputa entre duas partes. É o que esclarece ÁLVARO LUIZ VALERY MIRRA (2004, p. 118):
“Como apontado pela doutrina especializada, o processo civil, entre nós, na sua origem e nas codificações que se sucederam, foi estruturado para ser palco e veículo de disputas envolvendo direitos individuais e conflitos intersubjetivos, dentro de uma concepção individualista e formal, de inspiração liberal, que invariavelmente privilegiava a tutela de situações de confronto entre indivíduos isolados ou dispostos em grupos bem definidos ou entre estes e o Estado, considerado ele mesmo, no âmbito processual, uma pessoa singular. O próprio direito de ação inclusive, norma tradicional do processo civil individualista, em tal contexto, sempre foi definido como um direito subjetivo, colocado à disposição da pessoa, a fim de que esta faça valer seus direitos próprios e individuais contra todos que porventura os violem”
São também lucidas, nesse sentido, as lições de RODOLFO DE CAMARGO MANCUSO (2009, p. 379-380):
“Desde o último quartel do século passado, foi tomando vulto o fenômeno da ‘coletivização’ dos conflitos, à medida que, paralelamente, se foi reconhecendo a inaptidão do processo civil clássico para instrumentalizar essas megacontrovérsias, próprias de uma conflitiva sociedade de massas. Isso explica a proliferação de ações de cunho coletivo, tanto na Constituição Federal (arts. 5.o, XXI; LXX, ‘b’; LXXIII; 129, III) como na legislação processual extravagante, empolgando segmentos sociais de largo espectro: consumidores, infância e juventude; deficientes físicos; investidores no mercado de capitais; idosos; torcedores de modalidades desportivas, etc. Logo se tornou evidente (e premente) a necessidade da oferta de novos instrumentos capazes de recepcionar esses conflitos assim potencializado, seja em função do número expressivo (ou mesmo indeterminado) dos sujeitos concernentes, seja em função da indivisibilidade do objeto litigioso, que o torna insuscetível de partição e fruição por um titular exclusivo”
3.3) O MICROSSISTEMA PROCESSUAL COLETIVO
Consoante as lições de RODOLFO DE CAMARGO MANCUSO (2007, p. 28), as ações coletivas remontam originariamente às denominadas class actions do direito norte americano, demandas que possibilitam seja levado ao crivo do tribunal uma mesma lide ajuizada em favor de um grande número de indivíduos que, possuidores de interesses comuns, terão mais facilidades no manuseio do processo e na responsabilização coletiva da parte passiva. Referidas ações de classe, como observa PEDRO LENZA (2008, p. 159-160) secundando ADA GRINOVER, apresentam, já desde a Federal Equity Rule 38, de 1912, pré-requisitos definidos, inspiradores do sistema processual brasileiro:
“Pré-requisitos para a ação de classe: um ou mais membros de uma classe podem processar ou ser processados como partes, representando a todos, apenas se:
1) a classe é tão numerosa que a reunião de todos os membros é impraticável,
2) há questões de direito ou de fato comuns à classe,
3) as demandas ou exceções das partes representativas são típicas das demandas ou exceções da classe, e
4) as partes representativas protegerão justa e adequadamente os interesses da classe””
A partir do sistema estadunidense, também os países europeus e latinoamericanos participaram desse movimento processual coletivo. Em Portugal, nesse sentido, por intermédio da Lei 83/95 foi regulamentada a ação popular constitucional, conforme registra, ilustrativamente, ALUISIO GONÇALVES DE CASTRO MENDES (2008, p. 98):
“Nos termos do art. 52, n. 3, da Constituição portuguesa, combinado com o art. 1º, n. 2, da Lei 83/95, a ação popular pode ser utilizada para a persecução dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos. Não se presta, portanto, para a persecução de direitos estritamente individuais. Dentre outros bens jurídicos, poderá ser empregada para a defesa da saúde pública, do ambiente, da qualidade de vida, dos consumidores de bens e serviços, do patrimônio cultural e do domínio público”.
Na França, a igual modo, foi criada a action civile (ação civil), embora limitada à legitimação ativa das associações de defesa de tais interesses, como anuncia CARVALHO FILHO (2009, p. 4). Na Espanha, a matéria é tratada infraconstitucionalmente, a teor da denominada Ley General de La Defensa de los Consumidores y Usuarios (LGDU), Lei nº 20/1984.
No Brasil, o disciplinamento, de forma sistemática, da defesa dos direitos transindividuais em juízo ocorreu efetivamente a partir de meados da década de 1980, mais propriamente com o advento da Lei nº 7.347/85, que disciplina o instituto da ação civil pública, enquanto mecanismo processual de salvaguarda do meio ambiente, do consumidor e de bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico.
Antes disso, há que se mencionar a Ação Popular, regulamentada pela Lei nº 4.717/65, mas já mencionada na Constituição de 1934. No entanto, a ação popular, movida por cidadãos (pessoas físicas) revelou-se insuficiente para a tutela dos direitos coletivos (lato sensu), pois não tutelava os direitos coletivos (stricto sensu) e os direitos individuais homogêneos (aspecto objetivo), bem como deixava o cidadão em situação processual de desvantagem diante da parte contrária, normalmente detentora ou beneficiária do poder estatal (aspecto subjetivo).
Após a Lei da Ação Popular e a Lei da Ação Civil Pública, foi promulgada a Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, que tratou da tutela coletiva em diversos dispositivos, a exemplo dos arts. 127, caput, e art. 129, inciso III (legitimidade do Ministério Público para propor a ação civil pública), art. 8º, III (legitimidade dos sindicatos para a defesa dos interesses da categoria), art. 5º, LXX, XXI, LXX e LXXIII (previsão do mandado de segurança coletivo e da ação popular). Sobre o papel de destaque da Carta de Outubro discorre o Ministro do Superior Tribunal de Justiça TEORI ALBINO ZAVASCKI (2005, p. 6-7):
“Entre os direitos e garantias individuais e sociais nela arrolados consagrou-se a legitimação das associações de classe e das entidades sindicais para promover, em juízo, a defesa dos direitos e interesses dos respectivos associados e filiados (art. 5º, XXI e art. 8º, III). Previu-se também que o mandado de segurança – ação sumária para tutela de direitos líquidos e certos ameaçados ou violados por ato abusivo ou ilegal de autoridade pública – pode ser impetrado não apenas pelo titular do direito, mas também, em regime de substituição processual, por partidos políticos com representação no Congresso Nacional, ou por organização sindical, ou por associação ou entidade de classe, em defesa de interesses dos seus membros ou associados. Esse novo instrumento – o mandado de segurança coletivo –, a exemplo da ação civil coletiva acima referida, potencializou, em elevado grau, a viabilidade da tutela coletiva de direitos individuais e, consequentemente, o âmbito da eficácia subjetiva das decisões judicias, nomeadamente as que envolvem apreciação de direitos que tenham sido lesados, de forma semelhante, em relação a grupos maiores de pessoas.
Relativamente à tutela de direitos transindividuais, a nova Constituição ampliou o âmbito de abrangência da ação popular, que pode ser promovida por 'qualquer cidadão' para 'anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência' (art. 5º, LXXIII). Também a ação civil pública mereceu atenção do legislador constituinte, que a sagrou como ação constitucional para tutela de direitos e interesses difusos e coletivos, a ser promovida pelo Ministério Público (art. 129, III), sem prejuízo da legitimação conferida por lei a outras entidades.”.
O Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90) complementou a Lei nº 7.347/85, ao regulamentar questões importantes para o processo coletivo, como legitimidade, competência, litispendência, coisa julgada e seus efeitos, dentre outros. Com toda propriedade, destacam DIDIER JR E ZANETI JR (2011, p. 49-50) as disposições inovadoras do Código de Consumo:
“a) possibilidade de determinar a competência pelo domicílio do autor consumidor (art. 101,I); b) vedação da denunciação à lide e um novo tipo de chamamento ao processo (art. 88 e 101, II); c) possibilidade de o consumidor valer-se, na defesa dos seus direitos, de qualquer ação cabível (art. 83) d) tutela específica em preferência à tutela do equivalente em dinheiro (art. 84) e) extensão da coisa julgada em exclusivo benefício das pretensões individuais (art. 103) f) regras de legitimação (art. 82) e de dispensa de honorários advocatícios (art. 87) específicas para as ações coletivas e aperfeiçoadas em relação aos sistemas anteriores g) regulamentação da litispendência entre a ação coletiva e a ação individual (art. 104) h)alteração e ampliação da tutela da Lei nº 7.347/85 (LACP – Lei da Ação Civil Pública), harmonizando-a com o sistema do Código (arts. 109 usque 117).
Referido conjunto de normas – a Lei de Ação Popular, a Lei de Ação Civil Pública e o Código de Defesa do Consumidor – constituem o denominado “microssistema processual coletivo”, aplicável a toda sorte de ações coletivas, e reciprocamente incidentes, a teor do que preconizam os próprios diplomas. Confira-se:
Lei nº 7.347/85, “Art. 21. Aplicam-se à defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais, no que for cabível, os dispositivos do Título III da lei que instituiu o Código de Defesa do Consumidor.”
Lei nº 8.078/90, “Art. 90. Aplicam-se às ações previstas neste título as normas do Código de Processo Civil e da Lei n° 7.347, de 24 de julho de 1985, inclusive no que respeita ao inquérito civil, naquilo que não contrariar suas disposições”.
ANTÔNIO GIDI (1995, p. 77), a esse respeito, disciplina que:
“A parte processual coletiva do CDC, fica sendo, a partir da entra em vigor do Código, o ordenamento processual civil coletivo de caráter geral, devendo ser aplicado a todas as ações coletivas em defesa dos interesses difusos coletivos e individuais homogêneos. Seria, por assim dizer, um Código de Processo Civil Coletivo, como ordenamento processual geral”.
Nesse mesmo sentido, aduzem MARCELO ABELHA RODRIGUES e RODRIGO KLIPPEL que a quase totalidade dos preceptivos situados nas disposições finais e transitórias do Código de Consumo “são voltados à remuneração e à inclusão de dispositivos na LACP. O art. 117 do CDC, ao criar o art. 21 da LACP, determinou que à Lei de Ação Civil Pública se aplicasse todo o título III do CDC, formando assim a simbiose dos diplomas, que juntados são apelidados de sistema processual coletivo ou jurisdição coletiva” (2009, p. 2).
Ademais, referido sistema processual coletivo é composto também por outros diplomas, em função de preceptivos voltados à defesa de interesses metaindividuais, a exemplo da Lei nº 8.069/90, que institui o Estatuto da Criança e do Adolescente, da Lei nº 7.853/89, que cuida das políticas voltadas às pessoas portadoras de deficiência física, da Lei nº 7.913/89, referente aos investidores no mercado mobiliário, da Lei nº 8.884/94 (defesa da ordem econômica e da livre concorrência), da Lei nº 10.741/03, que regulamenta o Estatuto do Idoso, a Lei nº 10.671/03, que trata do Estatuto dos Torcedores, a Lei nº 10.257/2001, disciplinadora do Estatuto da Cidade, dentre outras.
O Código de Processo Civil, nesse passo, deve ser aplicado apenas a título subsidiário, uma vez que cuida de interesses puramente individuais, não conferindo tratamento digno à defesa dos interesses metaindividuais de que cuida o processo coletivo. Foi esse o entendimento, inclusive, consagrado pelo STJ ao julgar o Recurso Especial 1.108-542-SC, de relatoria do Ministro Castro Meira, transcrito no Informativo nº 0395 daquela Corte Especial:
“Na ausência de dispositivo sobre remessa oficial na Lei da Ação Civil Pública (Lei n. 7.347/1985), busca-se norma de integração dentro do microssistema da tutela coletiva, aplicando-se, por analogia, o art. 19 da Lei n. 4.717/1965. Embora essa lei refira-se à ação popular, tem sua aplicação nas ações civis públicas, devido a serem assemelhadas as funções a que se destinam (a proteção do patrimônio público e do microssistema processual da tutela coletiva), de maneira que as sentenças de improcedência devem sujeitar-se indistintamente à remessa necessária. De tal sorte, a sentença de improcedência, quando proposta a ação pelo ente de Direito Público lesado, reclama incidência do art. 475 do CPC, sujeitando-se ao duplo grau obrigatório de jurisdição. Ocorre o mesmo quando a ação for proposta pelo Ministério Público ou pelas associações, incidindo, dessa feita, a regra do art. 19 da Lei da Ação Popular, uma vez que, por agirem os legitimados em defesa do patrimônio público, é possível entender que a sentença, na hipótese, foi proferida contra a União, estado ou município, mesmo que tais entes tenham contestado o pedido inicial. Com esse entendimento, a Turma deu provimento ao recurso do Ministério Público, concluindo ser indispensável o reexame da sentença que concluir pela improcedência ou carência da ação civil pública de reparação de danos ao erário, independentemente do valor dado à causa ou mesmo da condenação. REsp 1.108.542-SC, Rel. Min. Castro Meira, julgado em 19/5/2009”[3].
3.4) A AÇÃO CIVIL PÚBLICA E A AÇÃO CIVIL COLETIVA
Ação civil pública é a designação ofertada pela Lei nº 7.347/85 ao procedimento especial por ela instituído para as “ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados” a direitos transindividuais, englobando a instrumentalização processual de demandas preventivas, reparatórias e cautelares destinadas a salvaguardar tais interesses. Consoante salienta o eminente Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI (2008, p. 48-49):
“Depois dela, algumas variantes de ações civis públicas foram instituídas, tais como: pela Lei nº 7.853, de 24/10/89, que nos artigos 3º a 7º disciplina a tutela dos direitos e interesses coletivos e difusos das pessoas portadoras de deficiência; pela Lei nº 8.069, de 13/07/90 (‘Estatuto da Criança e do Adolescente’), que, em seus artigos 208 a 224, disciplina a tutela dos direitos e interesses coletivos e difusos das crianças e adolescentes; pela Lei nº 8.078, de 11/09/90 (‘Código de Proteção e Defesa do Consumidor’), cujos artigos 81 a 104 (salvo a parte especificamente relacionada com direitos individuais homogêneos, arts. 91 a 100) disciplinam a tutela dos direitos e interesses difusos e coletivos dos consumidores; e pela Lei 10.741, de 1º/10/2003 (‘Estatuto do Idoso’), que, em seus artigos 69 a 92, traça regras processuais específicas para a tutela dos direitos coletivos e individuais das pessoas idosas. Apesar dessa variedade, essas ‘ações’ mantiveram, na essência, a linha procedimental adotada originalmente na Lei nº 7.347, de 1985, que tem aplicação subsidiária para todas as demais, sendo apropriado, por isso mesmo, conferir-lhes a denominação comum de ação civil pública”.
Esclarece PEDRO LENZA que tal denominação surgiu, na doutrina italiana, “em contraposição à ação penal pública. Pública porque ajuizada pelo Ministério Público; penal ou civil, de acordo com a natureza jurídica de seu objeto” (2008, p. 149), apesar de que “do ponto de vista subjetivo a terminologia ‘ação civil pública’ seria inadequada já que não houve atribuição de legitimidade exclusiva a órgãos públicos”, bem como “o critério material também seria insuficiente para justificar a escolha do nomem juris, já que o objeto da tutela trazido pela Lei 7.347/85 (LACP), também, não é público” (2008, p. 152).
De outro modo, a terminologia “ação civil coletiva” ou “ação civil coletiva de responsabilidade pelos danos individualmente sofridos” veio consignada, de modo expresso, no Capítulo II do Título III da Lei nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), que se refere às “ações coletivas para a defesa de interesses individuais homogêneos”, com rito e características próprios, a exemplo da sentença genérica de procedência (art. 95) e da liquidação e execução coletivas (art. 97 e seguintes).
Nada obstante exista alguma divergência doutrinária, os processualistas pátrios costumam utilizar-se da expressão “ação coletiva” como gênero, enquanto instrumento processual de tutela de interesses metaindividuais em sentido amplo, valendo-se da terminologia ação civil pública quando destinada à salvaguarda de direitos difusos ou coletivos, e da ação coletiva (stricto sensu) quando em referência à tutela coletiva acidental de direitos individuais homogêneos. É o que, com toda propriedade, leciona TEORI ZAVASCKI (2008, p. 50-51):
“No domínio do processo coletivo, seria importante ter presente que, quando se fala em ação civil pública (seja adequada ou não essa denominação que a Lei 7.347, de 1985, lhe atribuiu), está-se falando de um procedimento destinado a implementar judicialmente a tutela de direitos transindividuais, e não de outros direitos, nomeadamente de direitos individuais, ainda que de direitos individuais homogêneos se trate. Para esses, o procedimento próprio é outro, ao qual também seria importante, para efeitos práticos e didáticos, atribuir por isso mesmo outra denominação (‘ação coletiva’ e ‘ação civil coletiva’ foi como a denominou o Código de Defesa do Consumidor, em seu art. 91).”
Registre-se, por fim, que essa distinção, efetivamente, “não está sendo observada, nem pelo legislador e nem pela jurisprudência, que, de um modo geral, conferem a denominação ação civil pública para todas, ou quase todas, as ações relacionadas com o processo coletivo” (ZAVASCKI, 2008, p. 51).