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As regras de Tóquio e as medidas alternativas

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01/08/2002 às 00:00
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Estrutura das regras de Tóquio [28]

As Regras de Tóquio estão organizadas na forma de Seções. São, ao todo, 23 artigos, distribuídos em 08 diferentes Seções.

Na Seção I são desenvolvidas idéias gerais que formam a base das Regras de Tóquio. Apresentam-se os princípios gerais, nos quais advoga-se a favor da promoção das medidas não-privativas de liberdade e por uma participação maior da comunidade, além de destacar a importância cabal da racionalização das políticas de Justiça Penal.

A Seção II refere-se às medidas não-privativas de liberdade que podem ser aplicadas em substituição a um procedimento ou na fase anterior ao julgamento, de forma a evitar-se a prisão preventiva. Apóia-se nos princípios da presunção de inocência e da intervenção mínima, considerando a prisão como a ultima ratio, medida extrema, só aceitável quando absolutamente necessária, face à periculosidade do agente. [29]

Por sua monta, a Seção III refere-se aos relatórios sobre a investigação social e disposições proferidas por sentenças. Fornece uma lista não exaustiva de medidas não-privativas de liberdade. Dentre as medidas apresentadas, destacamos a liberdade condicional, as penalidades pecuniárias, o confisco, a restituição à vítima, a "probation", a prestação de serviços à comunidade, dentre outras.

A Seção IV refere-se às medidas para reduzir a duração das penas de prisão ou que oferecem alternativas para a execução de sentenças que impõem pena privativa de liberdade. Trata-se, portanto, das medidas aplicáveis na fase posterior à sentença. Dentre elas, destacamos: libertação para fins de trabalho e educação, remição da pena, indulto, dentre outras.

A execução das medidas não-privativas de liberdade é o objeto retratado na Seção V. Afirma que as autoridades encarregadas da execução devem orientar-se pelo princípio de que elas irão ajudar o delinqüente a não voltar a cometer delitos. A finalidade da vigilância é construtiva, e não punitiva, e seu objetivo precípuo é reduzir ao mínimo a reincidência, ajudando o delinqüente em sua reintegração social.

A Seção VI refere-se aos funcionários, que devem receber treinamento adequado para a função que irão desempenhar. A qualidade do material humano utilizado no trato com os delinqüentes é fator primordial no reconhecimento e tratamento dos mesmos.

A Seção VII refere-se aos voluntários e à sociedade em geral. Como as penas não-privativas de liberdade proporcionam ao criminoso uma interação maior com a sociedade, o auxílio do voluntariado, patronato, pastorais da igreja e sociedade em geral, torna-se elemento primordial na busca da ressociabilização do delinqüente.

A Seção VIII, por sua vez, diz respeito à pesquisa, planejamento, formulação e avaliação de políticas criminais. É importante o intercâmbio de conhecimentos entre os estudiosos do direito penal dos diversos países e diferentes sistemas punitivos existentes, de modo a definir-se as medidas mais acertadas para o tratamento do criminoso. Quando o país não investe em pesquisa, seus institutos jurídicos acabam por perder solidez, pois que alheios à nova realidade e à novel demanda de leis mais adaptadas aos conhecimentos e crenças de uma sociedade em constante e ininterrupta evolução.


Valor jurídico

Insta observar que as Regras de Tóquio, por tratar-se de um documento de caráter internacional, revestem-se de certa maleabilidade e adaptabilidade, respeitando as peculiaridades de cada país signatário, bem como o princípio da auto-determinação dos povos, inserto nos arts. 1º e 55 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, e no art. 4º, III, de nossa Carta Magna.

No que tange ao valor jurídico das referidas Regras, entende o ilustre professor Damásio Evangelista de Jesus [30] que, naquilo que não contrariar a Constituição Federal e as leis penais internas, possuem caráter de norma cogente. Parecer contrário oferece Luiz Flávio Gomes [31], quando ensina que as Regras de Tóquio, sendo apenas um Acordo Internacional, e não um Tratado, oferecem apenas parâmetros mínimos a serem seguidos, não possuindo, destarte, força cogente.

Sobre o caráter de cogência da norma de direito internacional, em âmbito interno, assim leciona REZEK:

O Estado soberano, no plano internacional, não é originalmente jurisdicionável perante corte alguma. Sua aquiescência, e só ela, convalida a autoridade de um foro judiciário ou arbitral, de modo que a sentença resulte obrigatória e que seu eventual descumprimento configure um ato ilícito. [32]

Em nosso entender, razão assiste à doutrina de Paul Reuter, quando preleciona:

A igualdade soberana entre todos os Estados é um postulado jurídico que ombreia com sua desigualdade de fato: dificilmente se poderiam aplicar, hoje, sanções a qualquer daqueles Estados que detêm o poder de veto no Conselho de Segurança da ONU. [33]

Sobre a falsa igualdade de poder entre as nações centrais e as nações em desenvolvimento, no âmbito político-econômico internacional, descreve CHOMSKY, ironicamente, da perspectiva de um assessor de Clinton para a América Latina:

Os Estados Unidos querem que outras nações ‘ajam de maneira independente, exceto quando isso afetar adversamente os interesses norte-americanos’; os Estados Unidos nunca quiseram ‘controlá-las’, desde que elas não ‘fiquem fora do controle’. Ninguém pode, portanto, acusar a liderança dos Estados Unidos de estar preocupada com outra coisa salvo o ‘bem do mundo’, incluindo a plena liberdade para agir como nós determinamos. [34]

Importante frisar o posicionamento constante em nosso Código Penal:

Art. 5º. Aplica-se a lei brasileira, sem prejuízo de convenções, tratados e regras de direito internacional, ao crime cometido no território nacional.

Norma cogente ou não, devem os países signatários envidar esforços para introduzi-las no ordenamento jurídico interno. O Brasil, de certa forma, realizou este intuito, com a edição das Leis 9.099/95 e 9.714/98. A Lei 9.099/95 instituiu os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, contendo em seu bojo 06 medidas alternativas. A Lei 9.714/98, por sua vez, veio a ampliar para dez o número de penas alternativas à prisão.


Objetivos

Quanto aos objetivos das Regras de Tóquio, conforme aufere-se das regras 1.1 a 1.5, podemos resumi-los em 05:

1.promover o emprego de medidas não-privativas de liberdade, entendidas estas medidas em sentido lato, abrangente;

2.obedecer as garantias mínimas ofertadas à pessoa delinqüente;

3.promover uma maior participação da comunidade na administração da Justiça Penal;

4.promover uma maior participação da comunidade no tratamento do delinqüente;

5.estimular entre os delinqüentes o senso de responsabilidade em relação à sociedade.


Da ideologia

Importante frisar que o ideário inserto nas Regras de Tóquio vai ao encontro do postulado da Nova Defesa Social (Felippo Gramatica, Mark Ensel, entre outros) que, além de visar a garantia de regras mínimas para a aplicação de medidas não-privativas de liberdade, preocupa-se sobremaneira com a ressociabilização do criminoso e com a proteção da sociedade durante o penoso processo ressociabilizante.


Feição quadrangular da pena

A figura da vítima, antes posta de lado, à parte do conflito entre Estado/delinqüente, agora aparece em posição privilegiada, visto que se adotam diversos mecanismos visando a possibilitar a efetiva reparação do dano por parte do infrator. A pena, então, que antes se resumia em uma tríade, tendo como vértices a punição, a ressociabilização e a intimidação, passa a possuir feição quadrangular, tendo como preocupação nova e impostergável a reparação do dano causado à vítima.

Várias são as Regras nas quais torna-se aparente o desejo de encontrar-se um perfeito equilíbrio entre os desejos do delinqüente, da sociedade e da própria vítima do delito.

Conforme lição de GOMES:

Paradigmática, a respeito, é a Regra 1.4 que diz: "Ao aplicar as Regras, os Estados-membros devem envidar esforços para atingir equilíbrio adequado entre os direitos dos delinqüentes, os direitos das vítimas e o interesse da sociedade na segurança pública e na prevenção do delito." [35]

Inquestionável, portanto, que apesar das Regras de Tóquio ainda conferirem importância para a ideologia do tratamento como forma de reabilitação do delinqüente, também deram destaque a outros aspectos da realidade sócio-criminal, tais como a proteção, prevenção e segurança sociais, a reparação do dano e o pedido de desculpas à vítima.


Intervenção mínima

A moderna criminologia corrobora o princípio da intervenção mínima, presente nas Regras de Tóquio. Damásio Evangelista de Jesus define este princípio como norteador da tendência moderna, que visa à descriminalização, descarcerização e despenalização. Por descriminalizar entende-se a extinção ou diminuição de tipos penais; descarcerizar é impor óbices para a aplicação de prisões cautelares; despenalizar, por seu turno, significa diminuir as penas impostas in abstracto aos delitos, bem como dificultar ao máximo a aplicação de penas restritivas de liberdade, reservando-as aos casos graves, após atenta análise do grau de periculosidade do delinqüente.

Luiz Flávio Gomes, em seu livro Penas e Medidas Alternativas à Prisão, (São Paulo: RT, 2000), afirma que o Direito Penal brasileiro começa a adotar as tendências mundiais contemporâneas, com medidas despenalizadoras e descarcerizadoras, como as das Leis 9.099/95 e 9.714/98.


Delinqüente: Uma questão de semântica jurídica

Vale ressaltar o sentido do vocábulo delinqüente, adotado pelas Regras de Tóquio: não se trata de uma denominação muito feliz, por englobar todas as pessoas contra quem houver acusação, julgamento ou execução de sentença.

Preferível seria a utilização dos termos jurídicos corretos, ou seja, delinqüente, réu ou suspeito. Porém, visou-se a simplificar os termos presentes nas Regras de Tóquio, como forma de facilitar a solução de possíveis problemas relativos à tradução dos termos empregados.


Análise político-criminal das medidas alternativas

Já nos idos de 1980 ensinava Heleno Cláudio Fragoso:

A prisão representa um trágico equívoco histórico, constituindo a expressão mais característica do vigente sistema de justiça criminal. Validamente só é possível pleitear que ela seja reservada exclusivamente para os casos em que não houver, no momento, outra solução. [36]

Foucault, em sua clássica obra Vigiar e Punir [37], se pergunta se a pena privativa de liberdade fracassou. Responde o notável pensador francês que ela não fracassou, uma vez que cumpriu o objetivo a que se propunha, qual seja: estigmatizar, segregar e separar os delinqüentes. Em que pese o lógico argumento de autoridade, ousamos discordar do mestre, apontando-lhe uma falha: Foucault esquivou-se de abordar a pena sob o aspecto da ressocialização do delinqüente.

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Em nosso entender, a pena privativa de liberdade falhou profundamente, ao ser abandonada à própria sorte por equívoco de administração político-criminal. Não falhou por sua própria culpa, visto que desempenhou - como ainda desempenha - de forma razoável a tarefa de conferir segurança à sociedade, dela retirando aqueles que a ela sejam nocivos. Falhou retumbantemente, entretanto, ao não conseguir concluir a tarefa que se lhe foi imposta, qual seja, a de ressociabilizar o condenado, trazendo-lhe de volta ao convívio social, como ser produtivo, arrependido e recuperado.

Ensina com propriedade BITENCOURT :

Embora a resposta estatal ao fenômeno criminal deva ocorrer nos limites e por meio do Direito Penal, que é o mais seguro, democrático e garantista instrumento de controle social formalizado, a reação ao delito não deve ser exclusivamente do Direito Penal, que somente deve ser chamado a intervir quando falharem todas as demais formas de controle social, isto é, deve ser utilizado como a ultima ratio. Para atingir esse desiderato, uma disciplina puramente normativa e sistemática, como o Direito Penal, necessita da complementação de outras disciplinas, como a Criminologia e a Política Criminal, que admitem a delinqüência como um fenômeno social e comunitário, que pode existir nas mais diferentes camadas da população, sem qualquer conotação patológica. Lamentavelmente, essa necessidade de utilização de outras disciplinas similares e complementares tem sido sempre ignorada pelo legislador brasileiro, que pretende resolver todos os problemas - econômicos, políticos, éticos, sociais e morais - através do Direito Penal, utilizando-o simbolicamente. Essa é a política criminal que se instalou no País, na década de 90, com os denominados crimes hediondos, criminalidade organizada e crimes de especial gravidade, simbolizando, mais que um Direito Penal funcional, um autêntico Direito Penal do terror. [38]

Na década de 1960, Bettiol já chamava-nos a atenção sobre a necessidade de se estabelecer limites no que cinge ao alcance da repressão estatal à ação do delinqüente:

(...) se é verdade que o Direito Penal começa onde o terror acaba, é igualmente verdade que o reino do terror não é apenas aquele em que falta uma lei e impera o arbítrio, mas é também aquele onde a lei ultrapassa os limites da proporção, na intenção de deter as mãos do delinqüente. [39]

Esta corrente de pensamentos se nos afigura como a mais correta, no que tange a traçar delineamentos para a construção de uma política criminal voltada para resultados positivos. Não há como manter-se intocado o ideário paleorrepressor que norteou a criação normativa brasileira no século passado. Em especial no que cinge aos casos de pena privativa de liberdade de curta duração, pensamos, como o faz ROXIN, que não é exagero dizer que a pena privativa de liberdade de curta duração, em vez de prevenir delitos, promove-os. [40]

Insta analisarmos a posição de BITENCOURT, acerca da historicidade e da realidade social como critérios norteadores do tratamento dispensado aos crimes passíveis de privação da liberdade:

Na verdade, a questão da privação de liberdade deve ser abordada em função da pena tal e como hoje se cumpre e se executa, com os estabelecimentos penitenciários que temos, com a infra-estrutura e dotação orçamentária de que dispomos, nas circunstâncias e na sociedade atuais. Definitivamente, deve-se mergulhar na realidade e abandonar, de uma vez por todas, o terreno dos dogmas, das teorias, do dever ser e da interpretação das normas. [41]

Em que pese o argumento da autoridade, ousamos discordar frontalmente da opinião acima transcrita. Ciência é questão teórica, não prática. As ciências jurídicas, e a criminalística no caso, são objetos de análise dos operadores de direito, que, pela autonomia do objeto, do método e da lógica subjacente, fazem do direito penal uma ciência, um objeto teórico. Fazer ciência e elaborar um discurso teórico sobre os objetivos da pena, para desconhecer toda a teoria em função de uma precária realidade do sistema carcerário, é se negar a fazer ciência e tratar a questão como um problema prático, de simples administração burocrática.

É por isso que um jurista "que faz ciência", Norberto Bobbio, acusa de antinomia teleológica toda ação jurídica normativa que não tem associada uma prática administrativa que ofereça os meios adequados para se chegar aos fins. Elaborar um discurso teórico, no caso, significa indicar os meios necessários para que os fins da pena sejam alcançados, para que a ressocialização do preso aconteça em condições humanas condignas.

Acreditamos que é papel do estudioso do direito apresentar soluções doutrinárias e político-sociais que visem a modificar a precária realidade social hoje reinante. Devemos partir da premissa da necessidade de se modificar a realidade, em busca da modernização e humanização das condições sociais. Precisamos refutar qualquer análise apriorística que afirme cabalmente a impossibilidade de se aprimorar os institutos legais de controle social, o sistema legal, bem como a política criminal de uma sociedade, baseados num determinismo subserviente e odioso.

Adaptar-se a política criminal à caótica realidade, esquecendo-se de qualquer sentimento de justa distribuição legal, configura-se em distorção da finalidade do direito penal, do controle social, do Estado Democrático, bem como da própria sociedade, em si mesma considerada. A política criminal e o sistema criminal devem ser norteados para a busca da melhoria da convivência humana, partindo-se da premissa de que a sociedade encontra-se em constante e ininterrupta evolução. Cabe, desta feita, ao Direito Penal, especialmente à política criminal brasileira, interpretar a realidade, estudando formas para contribuir com sua modificação e melhoria. O anverso do aqui exposto configurar-se-ia em solução simplista, mera aceitação do status quo, independentemente dos defeitos e vicissitudes que se nos apresenta.

Portanto, pensamos que é tarefa dos juristas, doutrinadores e estudiosos do direito oferecer soluções para a modificação dos pontos negativos do atual sistema punitivo pátrio, bem como fornecer novos meios de manutenção e aprimoramento dos institutos que demonstrarem ser soluções satisfatórias. A realidade social é dado relevante, porém não é o limite ofertado ao estudioso do sistema punitivo, no elaboração de possíveis soluções alternativas.

Negamos veementemente a postura expiacionista radical, que prega a extinção pura e simples da pena de prisão, como o faz Stanley Cohen, quando afirma ser tão grande a ineficácia da prisão que não vale a pena a sua reforma, pois manterá sempre seus paradoxos e suas contradições fundamentais.

Discordamos, também, da visão ofertada pela criminologia crítica de Alessandro Baratta, que não admite a possibilidade de que se possa conseguir a ressocialização do delinqüente numa sociedade capitalista. Argumenta Baratta que a prisão surgiu como uma necessidade do sistema capitalista, instrumento eficaz para o controle e a manutenção desse sistema. Sustenta haver espécie de nexo histórico entre o cárcere e a fábrica. Acaba a instituição carcerária por servir de instrumento para reproduzir e ampliar a desigualdade social, e não para a correta ressocialização do delinqüente.

A prisão seria, portanto, instrumento assegurador da desigualdade social, na medida em que facilita a manutenção da estrutura vertical da sociedade, impedindo a integração de classes, transformando as classes baixas em classes efetivamente marginais. Baratta sustenta que a estigmatização e o etiquetamento pelos quais passa o delinqüente por meio de sua condenação tornam muito pouco provável sua reabilitação e conseqüentemente dificultam sobremaneira sua ressocialização.

Desta feita, segundo Baratta:

É utópico pretender ressocializar o delinqüente; é impossível pretender a reincorporação do interno à sociedade por meio da pena privativa de liberdade, quando, de fato, existe uma relação de exclusão entre a prisão e a sociedade. [42]

PEARCE, por sua monta, defende:

A Criminologia Crítica não propõe o desaparecimento do aparato de controle, pretende apenas democratizá-lo, fazendo desaparecer a estigmatização quase irreversível que sofre o delinqüente na sociedade capitalista [43].

Em que pesem as abalizadas doutrinas de Baratta e Pearce, delas não somos totalmente partidários. Pensamos que a reforma proposta pela Criminologia Crítica pode ser empreendida dentro do sistema capitalista, sem que haja uma ruptura abrupta e radical das estruturas sociais dominantes. O problema não é relativo à organização política de dado Estado, mas sim de aplicação efetiva do sistema penal, bem como do estabelecimento de regras diretivas que norteiem a política criminal da sociedade em questão. Já no que tange ao problema da supressão das prisões, acreditamos, assim como fazem BITENCOURT e BACIGALUPO, que:

(...) diante das condições socio-políticas prevalentes na atualidade, a pena privativa de liberdade é um meio de controle social do qual, neste estágio da civilização, não se pode abrir mão. Pode-se e deve-se reformar racionalmente as suas formas de execução, mas não existem condições sociais, políticas, econômicas e culturais que permitam a total supressão da prisão. [44]

Feitas estas ressalvas, cabe transcrever ponto da doutrina de Baratta, com o qual concordamos, sem ressalvas:

É necessário que a questão criminal seja submetida a uma discussão massiva no seio da sociedade e da classe obreira. Todos os segmentos sociais devem conscientizar-se de que a criminalidade é um problema de todos e que não será resolvido com o simples lema "Lei e Ordem", que representa uma política criminal repressiva e defensora intransigente da ordem (geralmente injusta) estabelecida. Os meios de comunicação coletiva exercem um papel importante, posto que apresentam a criminalidade como um "perigoso inimigo" interior. Nessas condições, fica difícil que a opinião pública possa abandonar a atitude predominantemente repressiva e vingativa (além de estigmatizante) que tem a respeito do fenômeno delitivo. [45]

BITENCOURT, ao comentar a obra de Baratta, apresenta o mesmo ponto de vista:

É indispensável uma transformação radical da opinião pública e da atitude dos cidadãos em relação ao delinqüente se se pretende oportunizar-lhe a possibilidade de ressocializar-se. Se isso não ocorrer, será muito difícil a reincorporação ao sistema social de uma pessoa que sofre grave processo de marginalização e de estigmatização. O fenômeno delitivo tem uma inevitável dimensão social; por essa razão é que a atitude e participação do cidadão é decisiva (sic). [46]

Em que pesem os questionamentos levantados no que tange à doutrina de Baratta, estamos acordes que quando a política social vigente produz graves injustiças, estas devem ser erradicadas.

Talvez, o mais urgente na atualidade seja a supressão das leis penais ou parapenais que, violando o princípio da igualdade perante a lei, reprimem, como típicos, comportamentos das classes marginalizadas, como são os casos da mendicância e da vadiagem. [47]

Especificamente sobre o tema da necessidade do direito penal estar acorde com a política criminal do país, bem como da necessidade de subsunção da legislação penal interna ao princípio da ofensividade a bens jurídico-penais e seus pressupostos substantivos, cabe transcrever a lição de FRANCO:

Se se toma, como ponto de partida, o Estado Social e Democrático de Direito, não há como imaginar o equacionamento dos conflitos societários sem que haja um controle social capaz de impor regras e comportamentos que visam preservar a coesão social e garantir o convívio pacífico. Ora, dentre os controles sociais formais desse modelo sócio-jurídico, inclui-se induvidosamente o controle penal, cuja atuação objetiva (visa), antes de tudo, conter a forte carga de violência, seja ela privada ou seja ela estatal, imersa numa sociedade conflitiva, reduzindo-a a limites toleráveis. (...) Assim, o controle penal necessita, de algum modo, ser legitimado e tal legitimação deve ser buscada não somente nos limites que lhe são impostos pelos princípios expressos ou implícitos do modelo sócio-jurídico escolhido, mas também na idéia de que sua validade só tem razão de ser se tiver a capacidade de proteger bens jurídicos considerados essenciais para a existência, manutenção e desenvolvimento da sociedade como um todo e do ser humano, enquanto pessoa, impedindo a concretização de condutas que lhes provoquem lesões ou lhes acarretem perigo concreto de lesão. Não há, portanto, concordância possível entre um esquema estatal democrático e um sistema penal atrabiliário, descontrolado, selvagem. Isso significa que a capacidade de criminalizar condutas ofensivas a bens jurídico-penais tem necessariamente pressupostos substantivos que não podem ser desprezados, a menos que se queira estabelecer o reinado da repressão absoluta. [48]

Não são, entretanto, todos os bens jurídicos que serão objeto de tutela penal. O direito penal reveste-se de caráter de fragmentariedade, e, portanto, sua atuação não pode abarcar a totalidade da realidade fática. Ainda nos dizeres de FRANCO, os bens jurídicos penalmente tutelados (...) são, em verdade, ilhas isoladas ou, no máximo, arquipélagos, no mar da ilicitude. [49]

Indispensável, também, para que o direito penal manifeste interesse em agir, que a conduta delitiva represente uma real ofensa a bens jurídicos, com condições efetivas de lesa-los gravemente, ou, ao menos, coloca-los em perigo concreto de lesão. Reconhece-se, portanto, a inafastabilidade do exame do cabimento do princípio da ofensividade no caso concretamente analisado. Caso não se encontre presente o pressuposto da ofensividade a bem jurídico, admite-se por conseqüência a existência do princípio da insignificância, que lhe é correlato e diametralmente oposto. Caso a ofensa ou o perigo da ofensa seja de pequena expressão sobre o bem jurídico atacado, não há razão lógica que justifique a intervenção da máquina repressora estatal.

Neste sentido é a lição de FERRAJOLI, acerca do princípio da ofensividade:

(O princípio da ofensividade) tem o valor de critério polivalente de minimização das proibições penais. Ele equivale a um princípio de tolerância tendencial da desviação, idôneo para reduzir a intervenção penal ao mínimo necessário e, com isso, reforçar a sua legitimidade e fiabilidade, pois, se o direito penal é um remédio extremo, devem ficar privados de qualquer relevância jurídica os delitos de mera desobediência, degradados à categoria de dano civil os prejuízos reparáveis, e à de ilícito administrativo todas as violações de normas administrativas, os fatos que lesionem bens não essenciais ou que são, só em abstrato, presumidamente perigosos. [50]

Por fim, mesmo que a lesão ou o perigo de lesão ao bem jurídico tutelado não tenha sido de pequena monta, mesmo que a conduta delitiva objetivamente observada haja ofendido gravemente algum bem jurídico considerado importante para a sociedade ou para a pessoa humana, mesmo assim ainda é necessário algo mais para a correta justificação da atuação repressora estatal:

Se a situação delitiva pode ser equacionada sem o emprego do sistema penal, recorrendo-se a outros tipos de controle, formal ou informal, não há cabimento no apelo às sanções penais que são as mais pesadas do arsenal punitivo e que, não obstante o grande empenho em aboli-las, constituem ainda uma "amarga necessidade" de que a estrutura estatal não tem condições, na atualidade, de prescindir. Coloca-se aqui em jogo o princípio da necessidade. A máquina penal não deve ser posta em ação se outras formas de controle, menos gravosas, podem ser utilizadas. Daí o caráter subsidiário do sistema penal: só deve atuar em última instância quando os demais controles fracassem ou se mostrem inertes. [51]

Hodiernamente já se reconhece mais um parâmetro norteador da utilização da tutela penal e sua correlação com a política criminal interna: considera-se indispensável que a interferência repressora estatal produza uma resposta adequada à situação concretamente observada. É necessário realizar-se um prévio juízo de adequação da tutela penal, observando se a atuação penal está apta a atingir os fins visados pela política criminal, bem como conferir se os meios utilizados para se alcançar os fins encontram-se corretamente dosados.

Como bem alerta BIANCHINI:

Adequação e eficácia encontram-se no plano mais próximo quando se diz que a medida é inidônia, por ser ineficaz. Portanto, pode ocorrer de a intervenção ser considerada imprópria, ou porque os meios são considerados ilegítimos (em descompasso com a expressão de vontade do Estado social e democrático de direito) ou por se considerar ineficaz (não sendo capaz de alcançar os fins visados). [52]

Busca-se, portanto, a racionalização do sistema penal, adequando-se a dotação orçamentária disponível a hipóteses de reforma racionalmente aceitáveis e empiricamente verificáveis como capazes de alcançar os fins de defesa da sociedade e de recuperação do criminoso. Por meio da análise da adequação/inadequação do meio pena observada do ângulo estrito do custo do sistema (pena) em relação ao benefício social produzido (tutela eficaz do bem jurídico).

Cabe, desta feita, aos operadores do direito que lidam com a política criminal brasileira, interpretar a realidade, estudando as melhores formas de contribuir para a sua modificação e melhoria. Elaborar um discurso teórico da criminalística que se adapte à realidade social indicando os meios necessários à prática de um direito penal em condições condignas, evitando antinomia teleológica, é máxima que deve ser perseguida.

Não podemos aceitar, portanto, a falta de critério político-criminal, que leva o legislador a coadunar com uma incontinência legislativo-penal que se traduza em Leis casuísticas, tornando evidente a falta de critério político-criminal e a gritante demonstração de desconhecimento das técnicas básicas de elaboração normativa.

Visando a reparação deste erro, o legislador pátrio optou por acatar os lineamentos de certos institutos de controle da produção normativa, de cunho eminentemente alternativo e humanístico, alterando de forma abrupta parte importante da política criminal brasileira. Desta feita, primeiramente em 1995, editou-se a Lei nº 9.099/95, que criou os Juizados Especiais, e, em 25 de novembro de 1998, surgiu entre nós a Lei nº 9.714, regulamentando as Novas Penas Alternativas.

A priori, temos a impressão de que os dois diplomas legais adotaram a mesma política criminal descarcerizadora e despenalizadora, na medida em que buscam, sempre que possível, evitar a pena privativa de liberdade, substituindo-a por outras alternativas sancionatórias. BITENCOURT [53], no entanto, ensina:

Contudo (as Leis 9.099/95 e 9.714/98) não atuam na mesma faixa, quer de infrações quer de sanções penais. A primeira limita-se às infrações de menor potencial ofensivo (ressalvada a hipótese de seu art. 89), cuja sanção não ultrapassa a um ano de privação; a segunda, muito mais abrangente, destina-se à criminalidade média e até grave, na medida em que o limite de quatro anos não se refere à pena cominada, in abstracto, mas, ao contrário, contempla o limite máximo de pena concretizada na decisão final condenatória. Implica afirmar que infrações abstratamente puníveis com sanções de até oito ou dez anos podem, eventualmente, beneficiar-se com penas alternativas (...). Com efeito, a nova previsão de penas "restritivas de direitos" abrange mais de noventa por cento das infrações tipificadas no Código Penal brasileiro, estando excluídos dessa política, basicamente, apenas os crimes contra a vida, os crimes contra o patrimônio praticados com violência (como roubo e extorsão), o estupro e o atentado violento ao pudor, em razão da quantidade da pena. Afora estas infrações, somente algumas outras, que forem praticadas com violência ou grave ameaça à pessoa, estarão excluídas.

(...) qualquer infração penal de menor potencial ofensivo, independentemente de sua forma de execução, em princípio, será abrangida pela política criminal consensual da Lei n. 9.099/95. No entanto, a aplicação da política criminal descarcerizadora da Lei n. 9.714/98, para penas não superiores a quatro anos, exige que a infração penal não tenha sido praticada "com violência ou grave ameaça à pessoa (art. 44, I, do CP). É prudente e racional que esta nova política, mais abrangente e mais audaciosa, venha enriquecida de requisitos necessários para autorizar a sua aplicação, pois de alguma forma e através de algum meio, precisam-se filtrar os inconvenientes naturais de uma política extremamente abrangente, sob pena de se oficializar a impunidade e tornar impossível a convivência social.

Apesar do peso das assertivas propostas por Bitencourt, pensamos de modo um pouco diverso. Acreditamos que as duas Leis em comento estão norteadas pela mesma política criminal, descarcerizadora e despenalizadora, ora em voga no direito penal brasileiro, visualizada num conceito unitário, em consonância com as diretrizes dos modernos Acordos Internacionais, tais como as Regras de Tóquio.

O que ocorre, na prática, é que nos Juizados Especiais Criminais as penas restritivas de direitos possuem natureza alternativa, enquanto no Código Penal (mesmo após a Lei 9.714/98) elas são de natureza substitutiva. Em outras palavras: nos Juizados Especiais Criminais não há aplicação de pena privativa de liberdade a ser substituída, partindo-se diretamente da cominação abstrata; já no sistema do Código Penal, concretiza-se a pena de prisão, que, a seguir, deve ser substituída. [54]

(...) Nada impede, por exemplo, que no rol das infrações definidas como de menor potencial ofensivo, existam algumas que possam ser praticadas ‘com violência ou grave ameaça à pessoa’, e, a despeito dessa circunstância, continuem sendo definidas como infrações de menor potencial ofensivo. [55]

A mudança de rumos da política criminal brasileira evidencia-se quando examinamos a recente Lei nº 10.259/01, que criou os Juizados Criminais Especiais Federais e, segundo acreditamos, amparados na doutrina de Luiz Flávio Gomes, Alberto Silva Franco, Suannes, Bitencourt, Capez, Tourinho Filho, Damásio, Nalini, Vitor Gonçalves, dentre outros, em que pesem as opiniões em contrário, ampliou o limite de todas as penas cominadas a infrações de menor potencial ofensivo de um ano para dois anos. Ensina GOMES:

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (Quinta Câmara) já tinha reconhecido (pioneiramente no Brasil) que o novo conceito de infração de menor potencial ofensivo dado pela Lei 10.259/01 (crimes até dois) vale também para o âmbito dos juizados estaduais.

É o que ficou decidido no Recurso em Sentido Estrito 70003736428, rel. Amilton Bueno de Carvalho, que sublinhou: "Penal. Processual penal. Recurso em sentido estrito. Porte e disparo de arma de fogo. Competência. Isonomia. Derrogação do artigo 61 da lei 9.099/95. Retroatividade da lei 10.259/01. Com o advento da Lei 10.259/01, restou ampliado o conceito de infração penal de menor potencial ofensivo, por exigência da isonomia Constitucional". [56]

Desde de 14 de janeiro de 2002, portanto, todos os crimes punidos com pena máxima não superior a dois anos já não mais permitem a prisão em flagrante, porque passaram à competência dos Juizados Especiais Criminais. O alcance legal da referida Lei é tal que aproximadamente cem crimes antes sujeitos à prisão em flagrante agora não mais sofrem medida tão dura e repressiva. Crimes como porte ilegal de arma de fogo, ou porte ilícito de substância entorpecente para uso próprio, desacato, lesão corporal em crimes de trânsito, crimes de imprensa, etc, não mais se sujeitam ao flagrante nem tão pouco se cingem à esfera do inquérito policial.

A autoridade policial agora deve apenas lavrar o termo circunstanciado de ocorrência (TCO), que nada mais é do que uma espécie de boletim de ocorrência minuciosamente detalhado. [57]

Afasta-se, desta forma, do cárcere, o criminoso praticante de crimes de menor potencial ofensivo, o que vêm ao encontro dos enunciados constantes nas Regras de Tóquio, que exigem a utilização das penas de prisão apenas como a extrema ratio da ultima ratio, na feliz expressão cunhada por Luiz Flávio Gomes. [58]

Com a nova Lei (Lei 10.259/01) muitos crimes passarão a comportar solução consensuada. Não se trata de um acréscimo insignificante, mesmo porque esta última lei não ressalvou os casos de procedimentos especiais. Conclusão: crimes apenados com até dois anos, com ou sem procedimento especial, passam a admitir a transação penal, se presentes todos os seus requisitos legais. [59]

É inegável a maior celeridade alcançada pelo modelo de justiça que se pratica nos juizados especiais criminais. Respeita-se, também, o direito das vítimas dos delitos, vez que, quando há acordo, acabam por recebem indenização na própria audiência preliminar. Segundo lição de GOMES [60], os juizados especiais criminais auxiliam para desafogar os juízos e tribunais, e, conseqüência natural disto, contribuem para diminuir os casos de prescrição. Liberou-se, também, a justiça tradicional, para cuidar dos casos mais graves, que realmente causam perturbações sociais, contribuindo sensivelmente para a melhoria da prestação jurisdicional por parte do Estado.

Outra virtude que assinalam aos juizados consiste na não-aplicação da pena de prisão. Aliás, nasceram justamente para se evitar o encarceramento de infratores que praticaram (ou venham a praticar) crimes de menor gravidade. Com as novas Varas Especializadas ou Centrais de Apoio às penas alternativas, melhorou consideravelmente o problema da fiscalização e execução dessas penas, que está se tornando cada vez mais certa. [61]

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Sobre o autor
Carlo Crispim Baiocchi Cappi

mestrando em Ciências Penais pela Universidade Federal de Goiás, professor da Faculdade de Direito da UFG

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAPPI, Carlo Crispim Baiocchi. As regras de Tóquio e as medidas alternativas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 58, 1 ago. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3118. Acesso em: 23 abr. 2024.

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