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A reprodução assistida e as relações de parentesco

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Direito à identidade genética x direito ao anonimato do doador

A questão que envolve o direito do filho conhecer sua identidade genética é muito delicada, pois mesmo possuindo um pai socioafetivo, muitas vezes a pessoa possui o desejo, ou até mesmo necessidade de conhecer suas origens, e assim poder buscar nos pais biológicos explicações para as mais variadas dúvidas e questionamentos.

Para José Roberto Moreira Filho [17], "o direito ao reconhecimento da origem genética é direito personalíssimo da criança, não sendo passível de obstaculização, renúncia ou disponibilidade por parte da mãe ou do pai."

Defendendo o direito à identidade genética, leciona Tycho Brahe Fernandes [18]: "... ao se negar a possibilidade do aforamento de ação investigatória por criança concebida por meio de uma das técnicas de reprodução assistida, em inaceitável discriminação se estará negando a ela o direito que é reconhecido a outra criança, nascida de relações sexuais.

No mesmo sentido posiciona-se Álvaro Villaça de Azevedo [19], ao defender que o filho gerado através de uma das técnicas de reprodução assistida poderá, a qualquer tempo, investigar a sua paternidade, devendo os responsáveis pelos dados do doador, fornecê-los, em segredo de justiça.

Eduardo de Oliveira Leite [20] defende o anonimato do doador, afirmando: "A pretendida alegação de que a criança tem "direito" a conhecer sua origem genética realça expressivamente a paternidade biológica (matéria já ultrapassada no direito de filiação mais moderno) quando é sabido que, atualmente, a paternidade afetiva vem se impondo de maneira indiscutível." Além do referido argumento, outros são citados pelo autor, na defesa do sigilo do doador:

* Pode haver maior respeito à dignidade humana no não conhecimento da origem genética de alguém, do que neste conhecimento.

* Defender o direito à ação de investigação de paternidade contra o doador do sêmen seria defender que todas as crianças adotadas tenham direito à buscar sua origem genética.

* O caos se instauraria, pois tendo um pai registral e conhecendo o pai biológico, de quem a criança herdaria? Poderia demandar alimentos contra qual dos pais? Adotaria o nome do pai biológico ou do afetivo?

* O anonimato evita que, tanto o doador como a criança, procurem estabelecer relações com vistas a obtenção de meras vantagens pecuniárias.

Na opinião de Silmara Juny de Abreu Chinaleto e Almeida [21]: "O direito à identidade genética" não significa a desconstituição da paternidade dos pais sócio afetivos. Hoje, enfatiza-se a importância da paternidade socioafetiva e a denominada "desbiologização’ da paternidade. E o filho só conheceria os pais biológicos se quisesse. O que não se pode é negar o direito de personalidade à identidade e fazê-lo crescer sob uma mentira, como alertam os psicólogos. Um simples exame do tipo sanguíneo pode destruir toda a fantasia de que a criança é filha biológica de um casal."

Sobre o tema, assim dispõe a Resolução do CFM de 1992:

"Sobre doação de gametas ou pré-embriões ficou estabelecido:

(...)

2 – Os doadores não devem conhecer a identidade dos receptores e vice- versa.

3 – Obrigatoriamente será mantido o sigilo sobre a identidade dos doadores de gametas e pré-embriões, assim como dos receptores. Em situações especiais, as informações sobre doadores, por motivação médica, podem ser fornecidas exclusivamente para médicos, resguardando-se a identidade civil do doador."

Está em tramitação um Projeto de Lei do Senado nº 90/99, que dispõe sobre esse tema e que segue fielmente o texto da Resolução do CFM acima referido.

DIREITO COMPARADO:

Segundo Guilherme Calmon Nogueira Gama, a maior parte dos textos legislativos em vigor, há a regra do anonimato, entretanto, em alguns países há previsão acerca de algumas exceções ao anonimato, ora para prevenir ou curar doenças genéticas, ora para reconhecer o interesse da pessoa gerada através da reprodução assistida em conhecer sua identidade biológica, mas sem qualquer atribuição de benefícios ou vantagens econômicas. [22]


A fecundação in vitro

As novas tecnologias reprodutivas criam para o direito inúmeros problemas, na medida em que proclamam a busca de respostas novas. As transformações biológicas moveram um dos pilares do direito: A Família.

O antigo modelo de família patriarcal e hierarquizada, centrada no casamento, evoluiu para uma família moderna, onde a liberdade de escolha fica evidente, já que lhes é permitido o planejamento familiar. Muitas vezes este projeto não pode ser realizado, pois o filho tão esperado não vem, restando a busca a uma forma alternativa de procriação, a artificial.

Uma técnica pioneira na reprodução assistida, por ser simples e barata é a fecundação in vitro, indicada para mulheres com obstrução irreversível ou ausência tubária bilateral. Consiste na fecundação do óvulo in vitro, ou seja, os gametas masculino e feminino são previamente recolhidos e colocados em contato in vitro para que sejam fecundados. O embrião resultante é transferido para o útero ou para as trompas. Pode-se utilizar óvulos e espermatozóides doados, neste caso a fecundação será heteróloga, ou do próprio casal interessado, sendo a fecundação homóloga.

Fecundação in vitro Homóloga

Na fecundação in vitro homóloga os problemas praticamente inexistem, já que a filiação corresponde a verdade biológica, além da socioafetiva, pois o filho será fruto dos gametas do casal.

No direito vigente o problema se processa de acordo com as regras relativas a filiação natural, porém não se aplicam as presunções legais do art. 338, porque na prática estas exigem a coabitação, e a fecundação artificial resulta exatamente da impossibilidade de coabitação. Assim, sejam os pais casados ou vivendo em união estável, aplicam-se as regras próprias da filiação natural, ou seja, reconhecimento voluntário ou judicial baseado na filiação biológica e afetiva.

No Novo Código Civil foram inseridos três dispositivos no art. 1.597 que trata da presunção de paternidade de filhos nascidos por reprodução assistida. Dispõe este artigo que se presumem concebidos na constância do casamento os filhos:

III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido;

IV – havidos a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga.

V – havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.

O código tentou resolver a questão da paternidade frente a uma forma de procriação que não exige relação causal com a cópula, pois, em princípio, no nosso direito, provada a relação sexual presume-se a fecundação. Em suma: com o Novo Código Civil da fecundação feita em laboratório com os gametas do casal casado, presume-se a filiação. Agora se concentram a filiação jurídica, biológica e sócio-afetiva.

Quanto aos casais que vivem em união estável, como a filiação corresponde a verdade biológica, além da sócio-afetiva, o reconhecimento será voluntário ou judicial.

Fecundação in vitro Heteróloga

As situações conflitantes brotam da fecundação in vitro na sua forma heteróloga, visto que a filiação não corresponderá à verdade biológica.

Duas situações podem ocorrer em relação a esta técnica:

- Doação de óvulos – a criança nasce após a fecundação in vitro pelo esperma do marido em um óvulo doado, e implantado no útero da mulher.

- Doação de embrião – a criança nasce de uma fecundação in vitro de óvulos e espermatozóides doados ao casal, e o embrião resultante é colocado no útero, que só fica vinculado ao casal pela gestação e afetividade.

No primeiro caso não tem problema a paternidade, pois a filiação corresponderá à verdade biológica, além da afetiva.

O que se questiona neste caso é a maternidade. O princípio mater semper certa est ficou abalado com os avanços tecnológicos, já que hoje é possível a maternidade sob três aspectos: biológico, gestacional e afetivo.

A legislação vigente no Brasil consagra a maternidade pela gestação e parto, considerando que a mulher que dá a luz é necessariamente aquela que forneceu o óvulo. Este pressuposto não é mais verdadeiro, pois a mulher pode da a luz a um filho que biologicamente não é seu. Portanto, a gestação, e principalmente a afetividade serão as determinantes da maternidade. Como nos diz Eduardo de Oliveira Leite [23]: "no direito atual, como é desejo do casal a quem foi feita a doação, e de acordo com a vontade da doadora do óvulo, a mãe é aquela que gera a criança, porque é ela que tem o parto, é ela que dá a luz. Nascida a criança, o registro de nascimento prova a filiação legítima".

Mas, afinal pode o parto na fecundação heteróloga determinar a maternidade? Mas, e se a mãe biológica reivindica a maternidade?

A doadora de óvulo não poderá reivindicar a maternidade em decorrência do sigilo exigido pelos laboratórios, e porque, no momento da doação, renunciou a maternidade voluntariamente, da mesma forma como quem entrega uma criança para adoção, que renuncia ao direito de filiação. Na ausência de legislação que regule a questão, é assim que deverão resolver os tribunais, em analogia com a adoção, e ainda com uma atenuante: ao contrário da fecundação, na adoção não há o parto, o que é mais um ponto para determinar a filiação. Mas, acima de tudo: a filiação, aqui, é determinada pela afetividade, já que a filiação deixou de ser exclusivamente biológica.

Da mesma forma entende Tycho Brahe Fernandes [24]: "ante a possibilidade de um conflito de maternidade, é fundamental estabelecer juridicamente que a maternidade deverá cair sempre naquela que será a mãe socioafetiva, até porque o projeto de maternidade partiu dela ao escrever o seu direito constitucional do planejamento familiar".

A medicina já provou que o útero não é apenas um lugar para alojar o bebê. Além de fornecer alimentos, proporciona a troca de sangue que ativa os genes do embrião e determina o momento exato de formar os órgãos e os genes e funciona como um antídoto para as aberrações que a genética pode produzir. [25]

Quanto a segunda hipótese (doação de embriões), o embrião é geneticamente do casal doadores de gametas. A gestação completa e o parto, além da afetividade, como ocorre em relação à doação de óvulos, determinam a maternidade.

Já a paternidade recairá sobre o pai que consentiu fazer a fecundação, que efetivamente deseja o filho, ou seja, o pai socioafetivo. Como entende, com propriedade, Maria Helena Diniz "o filho deverá ser, portanto, daqueles que decidiram e quiseram o seu nascimento, por serem deles a vontade "procriacional" [26]. A supremacia da afetividade coloca em xeque a toda poderosa paternidade biológica, mostrando a sua absoluta relatividade.

O Novo Código Civil ao mencionar a inseminação artificial heteróloga, no seu inciso V do art. 1.597, leva à presunção de que o legislador teve a intenção de referir-se também à fecundação in vitro heteróloga, causando uma certa confusão, pois se tratam de técnicas diferentes, e, dessa forma, tal redação pode levar ao entendimento de que esta técnica não foi englobada nos casos do referido artigo. Indaga-se: Houve falha do legislador? Caso se entenda desta forma poderia ser aplicado analogicamente o inciso V, do art. 1.597 do NCC, que trata da inseminação heteróloga, à fecundação heteróloga, já que são casos análogos. Neste caso, o marido consentindo com a fecundação, determinada fica a filiação jurídica e afetiva, mesmo não sendo pai biológico.

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Mas, se a omissão foi intencional como ficaria a determinação da filiação frente a nossa legislação? Mediante um conflito positivo de paternidade os tribunais deverão resolver a questão por analogia com a adoção, dando prevalência à paternidade socioafetiva, se houve consentimento. Desta forma entende Zeno Veloso [27]: "a adoção viabiliza e concretiza o parentesco por assimilação, um parentesco eletivo. Consagra a paternidade socioafetiva, baseando-se não num fator biológico, mas num fator sociológico(...) a filiação adotiva e a filiação resultante da procriação medicamente assistida se definem por dois traços comuns: nenhuma delas provêm de relação sexual".

Na prática, os possíveis conflitos entre os pais biológicos (doadores do embrião) e os pais socioafetivo (que fizeram a fertilização heteróloga) inexistem, tendo em vista que o embrião implantado será um dos 20.000 congelados no Brasil, sobras de outras fertilizações, que provavelmente seriam descartados ou utilizados em experiências.

Escolha do sexo ou qualquer outra característica biológica

A Resolução nº 1.358/92 proíbe que as técnicas de RA sejam aplicadas com a intenção de selecionar sexo ou qualquer outra característica biológica do futuro filho, exceto quando se trate de evitar doenças ligadas ao sexo do filho que venha a nascer.

Citada resolução não é respeitada em muitos pontos, tendo em vista não possuir força de lei, e somente vincular médicos e clínicas. Assim, apesar de proibir o uso das técnicas para escolha de sexo, casos têm acontecido no Brasil, que revelam o profundo egoísmo dos casais, que apenas visam a atender interesses pessoais, que nada tem haver com infertilidade ou esterilidade.

Um exemplo desta situação foi citado na Revista Veja [28], em que um casal diz ter escolhido o sexo da criança, para realizar o sonho do pai, o deputado federal Ricardo Rique, de ter uma filha, já que só conseguiu ter filhos homens. Piora a sua situação quando afirma não ter problemas de infertilidade, e o seu único objetivo era escolher o sexo da criança. Penso que não tem noção este casal de que alguns embriões foram sacrificados para atender um capricho pessoal.

Um outro caso citado na mesma revista veja [29] revela o oposto.Uma mãe, que nunca poderia engravidar, sob a pena de ter um menino portador da síndrome do X- frágil (provoca em meninos retardamento e morte precoce), buscou a RA como forma de escolher o sexo da criança, o que é permitido pela Resolução (penso que não justifica, pois alguns embriões sobraram e provavelmente serão descartados).

Os embriões excedentes

A Resolução do CFM autoriza as clínicas, centros ou serviços a criopreservar os embriões excedentes. O número total de embriões produzidos em laboratório será comunicado aos pacientes, para que se decida quantos pré-embriões serão transferidos a fresco. No momento da criopreservação, os conjugues ou companheiros devem expressar a sua vontade, por escrito, quanto ao destino que será dado aos pré-embriões criopreservados, em caso de divórcio, doenças graves ou de falecimento de um deles ou de ambos e quando desejam doá-los. Não pode o casal optar pelo descarte ou destruição, nem cede-lo a pesquisas ou experimentações, mas apenas doá-los para satisfação do projeto parental de outro casal estéril ou utiliza-los novamente para outros filhos futuros, já que o NCC assegura a filiação.

O Novo Código Civil, em seu art. 1597, IV, dispõe que se presumem concebidos na constância do casamento os filhos havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes da concepção artificial homóloga. Com esta disposição fica assegurado a filiação aos embriões excedentes criopreservados, resultante da fecundação homóloga, nascidos a qualquer momento por desejo do casal solicitante da fecundação.

Na prática a maioria dos casais desiste de ter mais, e, desta forma, um grande numero de embriões congelados ficam abandonados nas clínicas de fertilização, para serem adotados ou utilizados em pesquisas e experimentos. O médico inglês Peter Brinsden, que participou da equipe que fez o primeiro bebê de proveta, diz que um dos dilemas tão forte quanto a clonagem é o descarte de embriões, tendo em vista que são milhares em todo o mundo, e a queima será inevitável. Relava que as técnicas de RA exprimem o egoísmo dos casais, que querem satisfazer os seus desejos de filiação, mas não sabem o que fazer com os embriões excedentes.

Ação Negatória de Paternidade

Quanto à negatória de paternidade na fecundação heteróloga a lei civil brasileira não se manifestou sobre a possibilidade, levando-se a supor que a qualquer momento poderá o pai socioafetivo contesta-la.Mas, seria justo sujeitar o filho as indecisões paternas? Por isso a importância dos tribunais aplicarem soluções semelhantes ao da adoção, e estabelecer um status jurídico para os filhos, para que tenham direitos e deveres, inclusive os sucessórios.

Em suma: O consentimento é irretratável, e determina a filiação. O marido ou companheiro que consente na inseminação heteróloga não poderá negar a paternidade da criança, pois como diz Eduardo de Oliveira Leite [30]: "A anuência do mesmo é prova irrefutável de que deseja o filho, e, portanto, não mais milita em seu favor tal recurso".

O doador também não poderá recorrer a ação investigatória de paternidade já que, assim como na adoção, no momento da doação renunciou a qualquer vinculo de filiação, devendo prevalecer o sigilo.

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Sobre as autoras
Andrea Aldrovandi

Advogada. Professora do Curso de Direito da Universidade de Caxias do Sul - UCS. Especilista em Direito de Família e Sucessões - ULBRA. Mestre em Direito - UCS/RS.

Danielle Galvão de França

advogada em Canoas (RS), especialista em direito público pela PUC/RS, pós-graduanda em Direito de Família e Sucessões da ULBRA/RS - Canoas

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALDROVANDI, Andrea ; FRANÇA, Danielle Galvão. A reprodução assistida e as relações de parentesco. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 58, 1 ago. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3127. Acesso em: 16 abr. 2024.

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