“El primer principio es que no debes engañarte a ti mismo,
y tú eres la persona más fácil de engañar.”
RICHARD P. FEYNMAN
É conhecido desde a antiguidade que a forma como interpretamos o mundo é muitas vezes o que nos faz sofrer, e não tanto a realidade objetiva exterior. E nossa interpretação do mundo tem suas raízes nas narrativas que construímos acerca de nós mesmos e de nosso mundo social. Somos os fabricantes dos significados e do sentido que damos à nossa vida.[1]
Também é de sobra conhecido que para Aristóteles a existência separada e autônoma, a formação do indivíduo, de seu caráter, é um logro ético de primeira ordem e no qual intervêm por muito o próprio indivíduo, que se automodela e se faz a si próprio, na medida em que é capaz de eleger seus desejos e resolver seus conflitos interiores, integrando mais ou menos harmonicamente seus distintos “eus”[2]. Quer dizer, ainda que não sejamos sequer artífices parciais dos fatos que nos marcam mais profundamente e de que não elegemos quase nada do que tem maior importância em nossa existência (o momento e o lugar em que nascemos, nossos pais e irmãos, a primeira língua que falamos ou a religião que professamos ...), podemos tratar - porque temos essa capacidade, se bem que limitada - de exercer “el trabajado dominio de uno mismo, la posibilidad concedida a cada cual de ser dueño de su destino y de mejorar su existencia” (P. Bruckner), de “autolegislar-nos”, para dizê-lo com um giro kantiano.
Ademais, somos criaturas complexas que, apesar do fato de que nossas mentes não são sistemas cognitivos ideais ou ótimos e de sofrermos constantemente a desagradável sensação que provoca o arrependimento[3] e o manter pontos de vista e emoções incompatíveis entre si, desfrutamos do desejo de “consistência interna” e nos esforçamos desesperadamente por manter certa coerência e harmonia de pensamentos, sentimentos e atitudes (S. Blackmore). A razão aparente para isto é que o cérebro vive “a base de su dieta preferida, que se basa en la estabilidad, la certeza y la consistencia; y percibe lo impredecible, lo incierto y lo inestable como amenazas a su supervivencia; una supervivencia que, de hecho, es la nuestra”(D. DiSalvo).
Este fenômeno ou “princípio de consistência” é vital para compreender grande parte da conduta e do pensamento humano. Quer dizer, dado que uma parte considerável do mundo exterior é imodificável ou não é modelável de acordo com nossos desejos e caprichos, sentimos a irremediável necessidade de que, às vezes, o que deve ser transformado para salvaguardar nossa saúde psíquica, o que há que cambiar para impedir nossas frustrações, é nossa “alma”; isto é, o conjunto interior de nossas preferências, desejos, crenças e oportunidades.
Pois bem, um dos modos ou mecanismos para alterar esse conjunto na busca de coerência interna corresponde ao que a psicologia contemporânea conceitua como erupção de “dissonâncias cognitivas” na psique do indivíduo (L. Festinger). Imaginemos aquela tensão interna que sentimos quando nos damos conta (por pouco que seja) de que duas ou mais de nossas convicções, duas ou mais de nossas ideias, ou nossas crenças e nossas condutas entram em conflito: fumas, ainda que “sabes” que o cigarro pode matar-te; comes demasiado, ainda que “sabes” que a gula pode engordar-te ou enfermar-te; não fazes nenhum tipo de exercício físico ou mental, ainda que “sabes” que o sedentarismo e a mangona mental podem prejudicar-te.
Essa desagradável experiência, essa tensão de ver-se atado entre duas forças (pensamentos) contraditórias na mente ao mesmo tempo se conhece como dissonância cognitiva e pode provocar ansiedade, angústia, sentimento de culpabilidade e vergonha. A teoria da dissonância cognitiva[4] ensina que em uma situação de dissonância, as pessoas fazem todo o possível para reduzi-la, bem alterando seu sistema de crenças para acolher uma ideia nova e recuperar a consistência interna, bem reduzindo a importância de um dos elementos dissonantes. Além disso, não há que olvidar que a dissonância é uma reação físico-emocional bem ancorada em nossos circuitos neuronais. Não é que dependa exclusivamente de nossa vontade, senão que simplesmente não a podemos evitar quando de repente o mundo arredor se nega a atender ou não cumpre, com suas “obrigações evidentes”, nossas expectativas.
Portanto, para tentar funcionar corretamente é necessário resolver a dissonância, tratar de eliminá-la ou evitar as situações e informações que possam aumentá-la: há que intentar reduzir a dissonância por meio da autojustificação, da invenção de novas razões ou justificações para apoiar nossa decisão ou ato. Não suportamos ao mesmo tempo dois pensamentos contraditórios ou incompatíveis, e justificamos dita contradição. Tampouco podemos fazer uma coisa e pensar outra; esta dissonância necessita ser resolvida e ao final conduz a que acabemos fazendo o que pensamos ou a que acabemos pensando de acordo com o que fazemos.
Recordemos a fábula de Esopo (reescrita por Jean de La Fontaine) da raposa e as uvas. Depois de tentar alcançar as uvas várias vezes em vão, a raposa desiste e se marcha, murmurando: “Provavelmente estavam amargas”. O câmbio de opinião da raposa é um exemplo perfeito de uma estratégia habitual que utilizamos de forma instintiva para reduzir a dissonância. Segundo a teoria da dissonância cognitiva (na qual as pessoas mudam qualquer opinião a fim de manter uma autoimagem positiva), para resolver este tipo de contradição interna, a mente, consciente ou inconscientemente, altera uma das duas ideias opostas (R. Feldman).
Suponhamos que prefiro “A” a “B” sempre e em qualquer caso. Contudo, o contexto no que me movo (meu conjunto exterior de oportunidades) é tal que “A” é mais difícil de conseguir e exige muito esforço; mas “B”, ao contrário, é de fácil acesso e menos exigente. Como um de nossos mecanismos psicológicos adaptativos, a teoria da dissonância cognitiva prediz que, baixo determinadas circunstâncias, a partir desse momento se desencadearão processos em minha mente que acabarão por fazer-me preferir “B” a “A”, sem que intervenha no processo nenhuma decisão consciente de minha parte.
A modificação de meu gosto se deve a mecanismos causais ocultos – ou quase ocultos – à minha consciência. E esse câmbio se produz no mesmo plano ou ordem de preferências: acabei por adaptar-me ao meu contexto de um modo espontâneo, automático, sem que se possa dizer que o tenha feito autonomamente, senão heteronomamente (isto é, forçado pelas circunstâncias exteriores e sem me aperceber de que fui determinado por elas). Neste caso, de adaptação ou busca de consistência interna, podem ocorrer efeitos colaterais perniciosos para minha saúde mental: sentimentos mais ou menos difusos de frustração, culpabilidade, impotência, dúvida, etc., acaso pequenos ou grandes, segundo a importância atribuída a “A”.
E porque a realidade não tem nem a mais ligeira obrigação de ser amigável ou reconfortante com nossas ideias, desejos e identidades, quando vivemos um conflito entre nossas crenças, nossos desejos e nossas ações não podemos dar marcha atrás e retificar (ou apagar) o que já fizemos; de modo que ajustamos nossas crenças e desejos para adaptá-los às nossas ações. O que é mais fácil, cambiar algo que fizemos no passado (ou um hábito) ou cambiar nossas ideias, crenças, preferências e desejos?
A opção mais fácil, sobra dizer, costuma ser a última. Assim que temos que inventar novas crenças (ideias, preferências e desejos), cambiar as que temos ou restar importância às crenças (ideias, preferências e desejos) incompatíveis para tentar eliminar a incoerência e aliviar a tensão interna: “Fazer dieta é algo que se nota a largo prazo, assim que não tem nenhum problema que tenha deixado de (ou deixe de) fazê-la este fim de semana”; “Por um docinho que comi ontem (ou que coma hoje) seguramente não engordarei muito”; “Já seguirei seriamente minha dieta na semana que vem”; “Depois desta torta de chocolate nunca mais voltarei a comer doces”; “Se posponho meu compromisso pessoal de fazer exercício ou estudar hoje, prometo que farei...”.
Como explica Michael Gazzaniga, “quando justificamos nossas ações, [...] o hemisfério esquerdo do cérebro [ao que denomina “intérprete”] arruma um pouco as coisas para que encaixem em um relato lógico. Somente quando os relatos [nossas fabulações] se afastam demasiado dos fatos, o hemisfério direito do cérebro pisa o freio.[...] Utilizamos o módulo intérprete [hemisfério esquerdo] durante todo o dia para captar o essencial das situações, interpretar os sinais externos e as reações fisiológicas de nosso corpo, dar um sentido unificado e coerente a nossas ações, assim como para explicar tudo.” [5]
Esta tendência a dar as explicações que necessitamos e justificar o que fazemos, pensamos, elegemos e decidimos se deve a que nosso ego luta encarniçadamente por defender sua honra. Ou seja, que miramos em nosso interior e vemos objetividade, miramos em nosso coração e vemos bondade e honradez, miramos em nossa mente e vemos racionalidade, miramos a nossas crenças e desejos e vemos a realidade, miramos a nossas razões, motivos e preferências e vemos infalibilidade. Tendemos a confundir nossos modelos da realidade com a realidade mesma. Somos uma idiossincrasia com patas: “¿Por qué no han de ser todos tan razonables como yo?”.
De fato, dos que não pensam como nós dizemos que não estão no mundo real, quando o que queremos dizer é que não habitam nosso modelo do mundo, que não compartem nossa visão de como são as coisas. Dito de outro modo, como estamos cegamente convencidos de que não há mais que uma maneira correta de ver a realidade - a saber, a nossa – e totalmente persuadidos de saber o que passa pela cabeça dos outros (até o ponto de fazer inecessária toda comprovação ulterior), alçamos a mirada desdenhosa por encima dos demais sem ver a superfície sobre a qual caminhamos.
Assim que não deixamos de intentar por todos os meios evitar a incomodidade que nos causa a dissonância, ainda que para lográ-lo tenhamos que desacreditar aos que não estão de acordo conosco como malvados ou ignorantes, ajustar nossos recordos ou reconstruir nossas opiniões de ontem para fazê-las mais consistentes com o que sabemos hoje. Não somente interpretamos cada situação segundo nossos desejos, crenças, expectativas e intenções, senão que também reconfiguramos constantemente o passado para proteger-nos.[6]
Os estudos sobre a evolução das relações conjugais, por exemplo, ilustram como a memória trata de minimizar as dissonâncias. As pessoas que se consideram felizes ao casar-se, mas cuja relação se deteriorou de maneira progressiva entre os cinco e dez anos seguintes, quando se lhes pergunta de forma individual sobre a qualidade de sua relação tendem a recordar que se sentiam infelizes desde o primeiro momento, quando em realidade não é certo. Quanto mais negativa seja a opinião acerca da relação conjugal no presente, piores serão as lembranças dessa relação no passado. Da mesma maneira, as pessoas divorciadas se inclinam a valorar sua relação retrospectivamente de forma que lhes ajude a justificar sua ruptura (L. R. Marcos)[7].
De um modo similar, a necessidade de evitar dissonâncias cognitivas e criar um argumento coerente sobre quem somos e o que fazemos pode levar às pessoas a interiorizar valores e atitudes que ao princípio adotaram por outros motivos. Quer dizer, uma vez que conseguimos desenvolver uma identidade coerente gerada por essas interiorizações, também evitamos as dissonâncias de forma preventiva ao eleger seletivamente a maneira de reforçar esta identidade.
Por exemplo, os homens que se casam (ou convivem) com mulheres hiper-religiosas ou pouco dotadas para as atividades intelectuais (ou vice-versa) tendem a relacionar-se com amigos religiosos ou intelectualmente superficiais (o mesmo padrão pode ver-se entre os membros de qualquer grupo: de “direita” ou de “esquerda”, teístas, ateus, “alternativos”, católicos, evangélicos, etc.). O resultado final destas interações elegidas com “liberdade” é que não somente satisfazem nossa instintiva necessidade de pertencia a um grupo, senão que também facilitam a fixação de nossa (nova) identidade com o tempo e a tornam mais facilmente definível para aqueles que nos rodeiam (S. Iyengar).
Por outro lado, a dissonância é especialmente dolorosa e especialmente pungente e angustiante quando ameaça um elemento importante do conceito que temos sobre nós mesmos: quando a informação que processamos gera um conflito que põe em perigo a forma de ver-nos, ou quando questiona uma crença pessoal (religiosa, política, intelectual...) que consideramos fundamental. Por exemplo, se nos consideramos pessoas competentes, honradas, amáveis e boas, e de repente nos chega a informação de que fizemos algo incompetente ou que talvez não resulte muito ético ou pouco amável, o bálsamo a que recorremos para reparar e conservar nossa autoestima é o “autoengano”: “nos mentimos a nosotros mismos para mentir y engañar mejor a los demás” (R. Trivers).
Na verdade, quanto maior é a ameaça contra sentir-se bem consigo mesmo, maior é a tendência a ver a realidade através de umas lentes que a distorcem. Daí que para Robert Feldman a dissonância cognitiva é um dos elementos essenciais para compreender a mecânica do autoengano: “... quando nossas opiniões, nossa conduta ou nossas crenças se contradizem, nos vemos obrigados a alterar nossos sentimentos, a criar uma série picassiana de distorções do que pensamos; as ideias que aparecem em nosso interior são mais coerentes entre si, mas não são necessariamente coerentes com a realidade: a realidade física resiste à distorção mental fácil.”[8]
Na fábula de Esopo, se a história houvesse funcionado de maneira distinta e a raposa tivesse conseguido apanhar as uvas, somente para descobrir que eram amargas, haveria dito que lhe gostava o sabor amargo para evitar sentir que seu esforço havia sido absurdo e inútil. O fato é que “quando nos explicamos a realidade tratamos de evitar ideias ou recordos contraditórios ou dissonantes porque nos provocam sentimentos desagradáveis, nos desorientam, alteram o equilíbrio ou a harmonia de nossa lógica; [...] não suportamos manter ao mesmo tempo dois pensamentos ou crenças contraditórias e, automaticamente, justificamos dita contradição, ainda que para isso seja necessário recorrer a argumentações absurdas” (L. Festinger).
O importante é compreender que esta alteração de ideias (pensamentos, desejos, crenças e preferências) e reavaliações de critérios e valores representam um mecanismo natural e fundamental da mente humana (R. Feldman). Nos inventamos “contos a nós mesmos para poder viver”. Com esses contos reafirmamos nossas crenças, abraçamos informação que apoia o que preferimos ou que serve para justificar e confirmar nossas hipóteses e juízos (independentemente de serem ou não verdadeiros), expressamos nossas opiniões, reinventamos nossos recordos e encontramos a maneira de navegar pelas estranhas águas da vida sem cruciantes contradições internas.[9]
O que parece claro é que as coisas não são tão claras como às vezes pensamos e que nosso cérebro altera nossas percepções de forma permanente. Estamos todos programados para justificar nossas ideias, crenças, preferências, desejos e ações, e reduzir assim a dissonância quando determinados aspectos de nossa experiência não se curvam a nossos caprichos e desejos; quer dizer, para mentir-nos a nós mesmos, para adaptarmos nossa percepção de nós mesmos e construirmos uma falsa explicação do que pensamos, elegemos, decidimos e fazemos.
Criamos “pontos cegos” mentais e ao mesmo tempo vemos quão “hipócritas” são os demais, mas não (“nunca jamais!”) nós mesmos. É assim: não somente tendemos a sobrestimar inclusive nossa capacidade para resistir-nos a sobrestimar nossas mentiras autoimpostas, senão que também nos importa muito sentir-nos distintos dos outros e superiores, “por nimias que sean las razones que subyacen a nuestro sentido de superioridad y por mucho que podamos acabar saboteándonos a nosotros mismos”(L. Mlodinow).
Nas sensatas palavras de J. Lehrer, “todos calamos a dissonância cognitiva mediante a ignorância autoimposta.” Quanto sofrimento humano deixa sua raiz mais profunda em um conflito entre nossas ordens de preferências, no abandonar à deriva nossas crenças e pensamentos, na tensão gerada por nossas dissonâncias mais cotidianas e na incapacidade para conformarmo-nos com o disponível em cada momento e equilibrar os desejos impossíveis que modelam nosso trato com o mundo exterior que nos limita e “de lo que no podemos cambiar o controlar mediante un mecanismo de nuestra voluntad” (H. Frankfurt).
Notas
[1] “Pero todos nosotros tenemos la sorprendente idea de que el modo como vemos el mundo refleja el mundo en su objetivo ser así. Y no caemos en la cuenta de que somos nosotros los que atribuimos una significación a ese mundo. […] Si nosotros lo creyéramos, sabríamos que no solo somos los creadores de nuestra desdicha, sino también de nuestra felicidad” (P. Watzlawick). O certo é que ao construir nossa experiência subjetiva da realidade o cérebro-mente humano é (e funciona como) uma máquina de produzir significados: “No son las cosas las que atormentan a los hombres, sino las opiniones que se tienen de ellas” (Epicteto).
[2] “Tú existes, ¿cierto? Pruébalo. Cómo 100 mil millones de neuronas parloteando crean el conocimiento —o la ilusión— de que estás aquí” (S. Pinker). Apesar de que operamos baixo a ilusão de um “Eu” único, estático e imutável, cada um de nós albergamos em nosso interior uma multiplicidade de “eus”, muitos estados do “eu” distintos; e não se trata de uma curiosa aberração, senão o estado natural do ser humano: “¡el yo es una ilusión!” (D. Hume e E. Mach). De fato, o que chamamos personalidade nem sequer é algo fixo, coerente e individual: mais bem somos múltiples atores representando uma obra de teatro, tal e como explica Rita Carter em seu livro Multiplicity. É nossa forma de adaptar-nos às novas situações, assim que, segundo Patricia Linville, «cuantas más personalidades tributarias poseamos» melhor dotados estaremos para enfrentar-nos às situações inesperadas: «Yo soy yo [y mis yos sucesivos] y mis circunstancias, y si no los salvo a ellos tampoco me salvo yo». Nas palavras de Miguel de Unamuno, quando duas pessoas se encontram não há duas, senão seis pessoas: “una es como uno cree que es, otra como el otro lo percibe y otra como realmente es; esto multiplicado por dos da seis”. Já disse Montaigne que “estamos por entero hechos de pedazos, y nuestra contextura es tan informe y variada que cada pieza, cada momento, desempeña su papel. Y la diferencia que hay entre nosotros y nosotros mismos es tanta como la que hay entre nosotros y los demás”.
[3] Embora exista muita gente que afirma não se arrepender de nada e que não cambiaria nada em sua vida, a realidade é que não cometer erros e querer que tudo se repita da mesma maneira não é habitual. A maioria cambiaríamos algumas coisas. Porque viver é decidir, e decidir é descartar alternativas, e quando as coisas saem mal é difícil não atormentar-se pelo que imaginamos que haveriam sido as consequências dos caminhos que não tomamos: viver é também lamentar. Como assinalou em certa ocasião John Greenleaf Whittier: «No hay palabras más tristes del habla o la pluma que “pudo haber sido”».
[4] Para que nos entendamos: o conceito de dissonância cognitiva (onde "cognição" é definida como qualquer elemento do conhecimento, incluindo as atitudes, desejos, emoções, crenças, preferências ou comportamentos) surge dentro do paradigma de psicologia social desenvolvido por Leon Festinger e que teve uma importante influência no campo das ciências sociais. O suposto mais importante para explicar este conceito é que todo indivíduo procura lograr a coerência ou consistência interna de suas opiniões e atitudes. Se isto é assim, então as exceções à regra, quer dizer, as inconsistências serão combatidas com o objetivo de reestablecer a coerência perdida. Estas inconsistências são denominadas «dissonâncias cognitivas» e entanto que são psicologicamente incômodas, fazem que os afetados por elas tratem de reduzi-las e de restaurar a conssonância. Como consequência disto a pessoa também buscará evitar aquelas situações e informações que poderiam aumentá-la. A dissonância e a consonância são relações que existem entre dois elementos cognitivos, que bem podem ser duas crenças ou atitudes que refletem a realidade e que referem ao que uma pessoa sabe sobre si mesma, sobre sua conduta e sobre seu entorno. O conhecimento sobre a realidade pode constituir-se a partir de experiência própria ou a partir do que outros pensam, dizem ou fazem. Finalmente, dois elementos são dissonantes se, por uma razão ou outra, não concordam bem. Pode que sejam logicamente contraditórios ou que as normas do grupo ou as conveniências sociais determinem que não se ajustem. Em síntese, constitui uma defesa psicológica de nosso cérebro “que trata de reducir el desacuerdo entre nuestros sentimientos y la realidad. Y para sentirnos bien hemos de reducirla: ya que no podemos cambiar la realidad, cambiamos la forma de pensar sobre ella: de la misma manera que el hambre nos lleva a una serie de actos que se orientan hacia quitar el hambre, la disonancia cognitiva, como condición antecedente, nos lleva hacia una actividad dirigida a la reducción de la disonancia” (C. Anne Tavris).
[5] “Todos estamos fabulando de alguna manera. Cuando nos resulta muy difícil decidir entre dos posibilidades, como me caso o no me caso, da igual la decisión porque al final elijas lo que elijas vas a buscar una justificación. Eso significa que también estamos interpretando continuamente nuestras acciones, estamos leyéndonos el pensamiento a nosotros mismos...” (S. Martínez-Conde). Recordemos que a ideia de que a (plena e absoluta) racionalidade é um dos ingredientes da natureza humana forma parte desse tipo de contos ou fabulações, menoscabando a relevância das narrações, dos relatos e das justificações “post hoc” para a tomada de decisões. Quer dizer: a imagem de que a tomada de decisões é um processo puramente racional, analítico e dedutivo, uma busca da verdade objetiva e nada emocional, não é acertada, é um mito. Como D. Kahneman, G. Lakoff, M. Johnson e D. Ariely demonstraram, a mente humana opera de acordo com marcos e mecanismos que tratam de manter o sentido e a coerência. Os mecanismos cognitivos criam “sesgos, interpretaciones y atajos con el fin de eliminar la disonancia cognitiva y la incoherencia. Expresado de forma directa: no tomamos decisiones de un modo analítico sino narrativo, incluso en decisiones tan aparentemente lógicas y calculadoras como las decisiones jurídicas” (M. Herzenstein, S. Soneneschein e U. M. Dholakia).
[6] Exceto para os descerebrados, reconhecer que isto é verdade constitui o melhor preventivo contra o excesso de confiança que descansa em estruturas mais profundas de autoengano (R. Trivers). Ademais, grande parte do que vemos o inventa alegremente nosso cérebro, modificando as instantâneas da realidade como se dispusera de um sofisticado PhotoShop. Os recordos de nosso passado em realidade são reconstruções, não autênticos reflexos do que aconteceu, com independência de que nos tenhamos involucrados emocionalmente ou estejamos completamente seguros de que as coisas passaram tal e como recordamos. Às vezes, estas distorções se produzem em pequenos detalhes; mas, outras vezes, reconstruímos recordos completos e traumáticos com um grande número de detalhes falsos que em realidade nunca tiveram lugar. Tal e como explica Susana Martínez-Conde: “Hoy sabemos que cada vez que recuerdas algo extraes esa memoria de su almacén, y la haces consciente y la vuelves a guardar. Y cada vez que recordamos cambiamos esa memoria. No es igual la que extraemos que la que almacenamos de nuevo. Cuanto más se accede a un recuerdo más se cambia. Esto tiene relevancia importante, porque todos tenemos experiencias que nos definen. Soy la persona actual por los hechos que ocurrieron en mi pasado. Pero estas experiencias son las que más tiendes a recordar y por tanto son las que más cambiamos. Por tanto no somos las personas que creemos y somos los menos indicados para describimos.” Nas palavras de J. LeDoux, “el cerebro que recuerda no es el cerebro en el que se formaron los primeros recuerdos. Para que éstos tengan sentido en el cerebro actual, la memoria tiene que actualizarse. La memoria biológica se encuentra en perpetuo estado de renovación”. Em resumo, a memória é "uma amiga desleal"; é distribuída e reconstruída. Não reside em nenhum lugar específico de nosso cérebro e, a um nível mais profundo e biológico, todos nossos recordos são falíveis e incompletos. Resultado: “tenemos una memoria distorsionada y construida de una percepción distorsionada y construida, ambas al servicio de la narrativa bajo la cual está operando tu cerebro”.
[7] E logo está o amor… Realmente podemos prometer? Estamos imunes às dissonâncias em nossas relações conjugais? Inclusive hoje se promete amor até que “a vida nos separe, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza...”, segundo famosa formulação. Mas, está obrigado o “homem de hoje” por aquela promessa que fez à “mulher do passado”, a uma jovem esbelta e alegre com quem falava da filosofia existencialista de Sartre, e que agora, amargada e multiatarefada, se passa a maior parte do tempo “conectada” e ocupada com a vida dos demais, mirando e “atualizando” Facebook, Instagram, Twitter... ou vendo novelas? Ou, está obrigada a “mujer de hoje” pela promessa que fez ao “homem do passado”, a um jovem atencioso, sobrecarregado de ambição, sonhos e projetos de futuro, e que agora se converteu em uma criatura obesa, egocêntrica e narcisista a quem só interessa a ociosidade inútil, a boa culinária e o palavreado com amigos reais ou virtuais?
[8] Um bom exemplo parece ser a atitude subjetiva adotada por um agente ou “cidadão” corrupto: não costuma ser consciente, distorce ou ignora deliberadamente essa sua natureza imoral. Quando eu me enriqueço injustamente à custa do cargo que exerço, não vou ficar pensando ou dizendo todo o tempo a mim mesmo que sou um canalha desonesto, um hipócrita e um empedernido criminoso. Não! Confabularei e tecerei uma rede de justificações e racionalizações: que ao fim e ao cabo todos fazem o mesmo e que não serei o pior dos mortais por fazer parte desse “espírito compartido”; que pareceria “anormal” ou muito insensível de minha parte rechaçar alguma “lembrancinha” ou "dinheirinho" que me passa alguém em troca de uma “ajudinha” para violar (com "jeitinho” e sem que a humanidade se inteire) uma norma legal e constitucional; que a gente geralmente tem o que se merece e que deve aprender a viver e a aproveitar as oportunidades...[e não duvidamos que muitos, por segurança, ainda rezem para algum Deus (necessariamente) indiferente ao mal moral]. É assim! Aos corruptos lhes costuma ir muito bem a arte do autoengano para essas coisas suas de autorregulação moral, de “limpeza moral mental”.
[9] Como sugere D. Kahneman: “Não há que confiar em ninguém – incluídos nós mesmos – que nos indique o muito que devemos confiar em seu juízo”. Por essa razão – e aqui vai um pequeno conselho de cautela epistemológica -, atender às explicações e justificações que as pessoas dão acerca da “verdade” de suas ações, sentimentos, pensamentos e/ou juízos resulta interessante (e até divertido), mas, com frequência, é uma enorme perda de tempo. Nesses casos, o mais sensato é seguir o conselho que Richard Dawkins dá a sua filha: «E a próxima vez que alguém te diga que uma coisa é verdade, experimenta preguntar-lhe: “Que provas existem disso?” E se não podem dar-te uma resposta, espero que penses muito bem antes de crer uma só palavra do que te digam».