No mês de abril do corrente ano, uma situação curiosa nos foi apresentada na Central de Plantão Policial de Criciúma/SC, pela Polícia Militar deste Estado: eis que um cidadão, aparentemente embriagado, teria causado um acidente, sem vítimas, na direção de uma bicicleta elétrica.
O problema posto tinha o seguinte viés: seria possível subsumi-lo ao tipo penal descrito no artigo 306 do Código de Trânsito brasileiro (Lei n. 9.503/97) e, portanto, autuá-lo em flagrante delito? Caso não efetuasse o pagamento da fiança arbitrada, correto seria encaminhá-lo ao presídio local, onde ficaria à disposição do Poder Judiciário? Seria a bicicleta elétrica um veículo automotor à luz do Código de Trânsito brasileiro?
Antes de tudo, cabe salientar o enorme vácuo doutrinário e jurisprudencial sobre o tema, não obstante a crescente produção de tais veículos, em muitos locais já maciçamente adotados pela população em seus deslocamentos diários. Um breve passeio pelo shopping das capitais, a exemplo de Florianópolis, é suficiente para se deparar com estandes de venda do produto.
Pois bem. O crime em análise, com a redação dada pela Lei n. 12.760/12, traz a seguinte conduta proibida:
Art. 306. Lei 9.503/97. Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência:
Penas – detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor. (Grifamos)
Ora, uma possível resposta, fundada na literalidade do conceito de veículo automotor, previsto no anexo I do mesmo diploma legal, responderia positivamente a questão, senão vejamos:
Anexo I. Lei 9.503/97. Veículo Automotor: todo veiculo a motor de propulsão que circule por seus próprios meios, e que serve normalmente para o transporte viário de pessoas e coisas, ou para a tração viária de veículos utilizados para o transporte de pessoas e coisas. O termo compreende os veículos conectados a uma linha elétrica e que não circulam sobre trilhos (ônibus elétrico).
Ocorre que, apesar da clareza do conceito, a resposta não é tão simples como parece. Isso porque a definição legal de veículo automotor possui caráter extremamente genérico, capaz de abrigar qualquer engenhoca motorizada.
Some-se a isso a ausência de definição específica de bicicleta elétrica, certamente pouco conhecida (ou sequer fabricada) à época da promulgação da legislação, motivo pelo qual se faz recomendável valermo-nos de outro conceito mais próximo, o de ciclomotor, para fazermos a adequação típica perfeita.
Vale dizer, por inexistir acepção legal, para não ficarmos apenas na definição genérica de veículo automotor, evitando-se, assim, conclusões simplistas, importante explorar sistematicamente a legislação de trânsito, além de buscar veículos anatomicamente próximos à bicicleta elétrica.
Ademais, o próprio Conselho Nacional de Trânsito, em sua exposição de motivos introdutória à Resolução de n°. 315/2009, fixou entendimento no sentido de que as bicicletas elétricas são, em verdade, fruto da evolução tecnológica dos ciclomotores.
Dos ciclomotores
Em relação a estes, assim dispõe o Código de Trânsito brasileiro:
Anexo I. Lei 9.503/97. Ciclomotor - veiculo de duas ou três rodas, provido de um motor de combustão interna, cuja cilindrada não exceda a cinqüenta centímetros cúbicos (3,05 polegadas cúbicas) e cuja velocidade máxima de fabricação não exceda a cinqüenta quilômetros por hora.
Vê-se que, no que diz respeito aos ciclomotores, em sua conceituação, além de não se utilizar o vocábulo “automotor” -usado na definição das motocicletas- , leva-se em conta sua potência, que deve ser igual ou inferior a cinquenta cilindradas (famosas “cinquentinhas”).
Além disso, seu registro e licenciamento ficam a cargo das autoridades municipais (art. 24, XVII, c.c. art. 129, ambos do CTB), e, para sua condução, se faz necessária a “Autorização para Circulação de Ciclomotor” (Resolução Contran n°. 168/2004), documento semelhante à Carteira Nacional de Habilitação.
Posto isso, indaga-se: são os ciclomotores, para fins penais, veículos automotores?
Não existe consenso na escassa doutrina sobre o tema.
Há quem defenda a impossibilidade de equiparação dos ciclomotores aos automotores, sob o argumento de que a legislação não exige, obrigatoriamente, Carteira Nacional de Habilitação para sua condução, e o fazem com fundamento no art. 141 do CTB. Neste sentido: Fernando Capez.[1]
Outros, a exemplo de Pedro Lazarini[2], citando Damásio E. de Jesus e, a nosso ver com razão, não efetuam qualquer distinção para fins penais. Em resumo, defendem que, apesar de o CTB, ao conceituar ciclomotor, não mencionar o vocábulo “automotor”, como o faz quando define motocicleta ou motoneta, deve-se considerar que nas definições de "caminhonete" e "camioneta" também não o fez.
Isso, por si só, torna-se suficiente para refutar o argumento da não consideração do ciclomotor como veículo automotor, já que completamente inconcebível que os dois últimos acima citados não sejam considerados "automotores".
Ainda, salienta-se que o CTB não exige CNH para conduzi-lo possivelmente em virtude da potência menor de seu motor, o que não afasta a previsão legal de autorização específica para sua condução, cujas exigências são semelhantes àquelas do documento comum, inclusive a imputabilidade penal.
Defendemos que o ciclomotor se adequa perfeitamente na acepção de veículo automotor, pois, além dos argumentos já citados, se trata de veículo de propulsão, que circula por seus próprios meios e que se destina ao transporte de passageiros, nos exatos termos da definição legal. Exige-se autorização ou habilitação, que pode ser a própria ou a CNH "A", devendo circular nas vias públicas destinadas aos veículos em geral[3].
A relevância do debate não se restringe aos crimes de trânsito, considerando a importância de pacificação do conceito para fins de aplicação da qualificadora prevista no art. 155, § 5°, bem como da causa de aumento prevista no art. 157, § 2, IV, ambos do Código Penal.
Da Bicicleta Elétrica
Após aceita, não sem controvérsia, a equiparação dos ciclomotores aos veículos automotores, novamente se indaga: idêntica fórmula pode ser aplicada à bicicleta elétrica?
Em relação à bicicleta elétrica (equiparada ao ciclo-elétrico)[4], haja vista o silêncio da legislação de trânsito sobre o tema, devemos destacar a Resolução Contran de n° 315/2009, que expressamente a equipara aos ciclomotores.
Pelo simples conceito de veículo automotor, à luz da equiparação infralegal realizada pela resolução, possível seria considerar os ciclos-elétricos como ciclomotores, e, por consequência, ambos como veículos automotores.
Porém, para a referida conclusão, há que se meditar sobre outro fator, qual seja, a classificação dos veículos trazida pelo CTB, mais especificamente em seu art. 96, a saber:
Art. 96. CTB. Os veículos classificam-se em:
I - quanto à tração:
a) automotor; b) elétrico; c) de propulsão humana;
d) de tração animal; e) reboque ou semi-reboque; (...)
Ora, percebe-se uma importante distinção expressa, quanto à classificação dos veículos, entre automotor e elétrico. Ou seja, o legislador intencionalmente os desequiparou.
Argumento idêntico fora utilizado por Damásio Evangelista de Jesus, quando da análise do art. 155, § 5°, do Código Penal, para afastar a qualificadora em questão a todos os veículos constantes nas alíneas “b, c, d, e” do art. 96, não considerados automotores[5][6].
Semelhante fato ocorre em outros dispositivos, tratando-os como veículos distintos, como de fato o são, a exemplo do art. 140 do mesmo diploma, cujo conteúdo aduz que “A habilitação para conduzir veículo automotor e elétrico será apurada por meio de exames (...)" (Grifamos), cindindo-os.
Em reforço, veja-se que em relação ao ônibus elétrico, o Código de Trânsito abre verdadeira exceção, quando no epílogo do conceito de veículo automotor cita que "o termo compreende veículos conectados a uma linha elétrica e que não circule sobre trilhos (ônibus elétrico)". Ou seja, se considerasse veículo elétrico como automotor, desnecessário seria citar especificamente, com ares de excepcionalidade, aqueles conectados por uma linha elétrica.
Talvez por isso a necessidade de edição da resolução mencionada, a fim de que ambos os veículos fossem expressamente equiparados, elidindo quaisquer dúvidas, como forma de complemento infralegal.
E, aceita tal premissa, imperioso concluir pela impossibilidade de uma resolução de trânsito equiparar determinado veículo a automotor, possibilitando a aplicação de norma penal desfavorável, se o referido Código de Trânsito ainda não o fez.
Decorrência pacífica da legalidade penal (art. 5º, XXXIX, CF) reside na impossibilidade de aplicação da regra da analogia em desfavor do réu (leia-se: indiciado), tema tão caro ao Estado Democrático de Direito.
Vale ressaltar, preventivamente, a impossibilidade de se sustentar, no caso em tela, a existência de norma penal em branco heterogênea, haja vista que o conceito de veículo automotor é trazido expressamente por lei, não exigindo qualquer regulamentação.
Por tais motivos, a nosso ver, a Resolução Contran de n° 315/2009 tem validade de equiparação apenas para fins administrativos, nada mais.
Como se não bastasse, em data recente, a Resolução Contran de n° 465/2013, alterando expressamente a Resolução Contran de n° 315/2009, criou exceção à regra da equiparação aos ciclomotores, para excluir as bicicletas elétricas, desde que sujeitas a alguns requisitos, a exemplo da potência máxima de motor e inexistência de acelerador, dispensando-as inclusive de habilitação.
Concluindo
Analisando todo o contexto exposto envolvendo conceito e classificação de veículos, conclui-se:
- os ciclomotores são considerados veículos automotores, pois perfazem seus requisitos legais, além de não especificados em classificação diversa nem diferenciada, aplicando-se aos seus condutores, portanto, as normas criminais previstas no Código de Trânsito brasileiro;
- em relação ao ciclo-elétrico, igual conclusão não se pode chegar, já que apresentam tratamento, citação e classificação diferenciados pelo Código de Trânsito brasileiro, bem como pela impossibilidade de sua equiparação por via infralegal produzir efeitos criminais. Ainda há que se considerar no caso da bicicleta elétrica, o fato de a recente Resolução Contran de n° 465/2013 distingui-la dos ciclomotores, mais um argumento a favor da não aplicação das normas penais em tais casos.
Notas
[1] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. Vol. 4. Legislação Penal Especial. 9° ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 306.
[2] Apud. NETO, Pedro Lazarini. Código Penal Comentado e Leis Especiais Comentadas. São Paulo: Primeira Impressão, 2007, p. 1562.
[3] A única exceção se daria em relação ao delito previsto no art. 309 do CTB, cuja redação possui como elemento normativo expresso a necessidade de carteira nacional de habilitação ou permissão. Nestes casos, impossível qualquer equiparação. Nesse sentido inclusive: TJMG, Acórdão de n° 1.0000.12.094019-2/000, Data de Julgamento 02/10/2012.
[4] Art. 1, § 1º, da Resolução Contran de n° 315/2009, após renumeração procedida pela Resolução Contran de nº 465/2013.
[5] JESUS, Damásio Evangelista de. Código Penal Anotado. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 577.
[6] Aliás, a análise sistemática do ordenamento para fins de subsunção não é novidade no âmbito jurisprudencial a casos controversos. Mutatis Mutandis: frise-se a decisão do STJ no Resp. 942288-RS, que excluiu o objeto material “bebidas alcoólicas” da incidência do art. 243 do ECA, com argumento análogo ao utilizado no presente artigo.