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O risco da banalização do Código de Defesa do Consumidor

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21/09/2014 às 15:15
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CAPÍTULO II - OS OBJETIVOS DO ESTATUTO PROTETIVO

2.1 Princípios norteadores.

 A idéia fundamental sobre a qual o legislador constituinte determinou que o Estado promovesse a defesa do consumidor certamente não é outra senão a de que ele é a parte mais frágil da relação de consumo e, como tal, deve ser tratado.

 Tal premissa é um dos pilares da Lei 8078/90: o reconhecimento inquestionável da vulnerabilidade do consumidor.[19]

 O Estatuto Protetivo, portanto, diante da fragilidade do consumidor em sua relação como o fornecedor, teve de ser forjado com mecanismos eficientes que pudessem servir de guia ou norte a todas as normas nele inseridas, efetivamente equilibrando e harmonizando essa relação, com prerrogativas ao consumidor que lhe garantissem que suas necessidades seriam atendidas,  que fossem respeitadas a sua dignidade, saúde e segurança, melhorada a sua qualidade de vida, protegidos os seus interesses econômicos,  respeitado seu direito à informação, coibidos e reprimidos os abusos praticados no mercado de consumo,  assegurandolhe a reparação de danos patrimoniais e morais que lhe forem causados, com a facilitação da defesa de seus direitos, no processo civil, através da inversão do ônus da prova a seu favor, quando restar constatada a sua hipossuficiência.

Esses mecanismos utilizados pelo legislador para bem proteger o consumidor ou para regrar o maior número de situações envolvendo relações de consumo,  suprindo ou preenchendo as lacunas porventura existentes e desenvolvendo de forma mais justa o direito estabelecido através de interpretação,  são os princípios, que antes de tudo,  dão a sustentação necessária para que as normas protetivas possam ser, de forma efetiva, levadas a efeito.

 De acordo com o magistério de Celso Antonio Bandeira de Mello, os princípios podem ser entendidos como

[...]mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico [20]

 Na aplicação do direito, os princípios indicam o caminho que deve ser perseguido pelo intérprete, que não deve hesitar em aplicá-los, especialmente porque criados ou concebidos para sustentar ou complementar a norma, que por vezes pode estar ausente ou conflitar com outras e, neste caso, os princípios surgem como verdadeiros magistrados, indicando a de melhor aplicação ao caso concreto.

  Os princípios, no entanto, também podem conflitar entre si. É o caso lembrado por Cláudio Bonatto[21], do artigo 170, inciso V, da Constituição Federal, que traz a defesa do Consumidor como um dos pilares da ordem econômica, mas que pode conflitar com o da busca do pleno emprego, por exemplo, que está na mesma hierarquia. Cita o caso exemplificativo de uma empresa que possui 500 empregados, que produz fogões com defeitos tais que podem ocasionar acidentes de consumo. Neste caso, estando ele sub judice, existirá um conflito entre os princípios – de um lado a defesa do consumidor e de outro a defesa do pleno emprego. Se houver proibição da comercialização dos produtos defeituosos, inevitável a despedida de muitos funcionários. Na hipótese, diante do conflito, deverá haver a escolha por um dos princípios, sem que o outro, no entanto, deixe de existir. Percebe-se, diante da situação apresentada, ser possível também o conflito entre princípios, que deve ser solucionado, conforme as circunstâncias de cada caso e a preponderância de um sobre o outro ou até mesmo harmonia, que se consiga vislumbrar. 

 Feitas essas breves considerações sobre princípios, de forma geral, necessário que se identifique precisamente quais foram os objetivos traçados pelo legislador no âmbito do Código de Defesa do Consumidor.

O artigo 4º da Lei 8078/90, define os objetivos que devem ser perseguidos quando se está diante de relações de consumo.[22]

 É preciso que se esclareça que o alcance das normas estabelecidas pelo referido artigo é mais amplo do que o estabelecimento de princípios aplicáveis às relações entre consumidor e fornecedor.  Na verdade, nela são estabelecidas, principalmente, condutas que deverão ser cumpridas através de atos de governo, quando o legislador determina que o Estado se faça presente no mercado de consumo.

 Nesse sentido, a sua presença deverá ocorrer por meio de iniciativa direta, incentivando a criação de associações que representem o consumidor, garantindo-lhe que os produtos e serviços lhe sejam fornecidos com qualidade, segurança, durabilidade e desempenho, proporcionando-lhe a educação e informação sobre seus direitos, incentivando os fornecedores a criarem mecanismos de controle de qualidade e segurança dos produtos e serviços, coibindo toda espécie de abuso no mercado de consumo, racionalizando e melhorando os seus próprios serviços, devendo sempre estar atento as alterações nas relações entre fornecedor e consumidor, buscando a harmonia entre eles, inclusive tendo em conta a necessidade de compatibilizar o indispensável desenvolvimento econômico e tecnológico do país e a defesa dos interesses do consumidor.

Por certo que entre esses objetivos, que demandam especialmente atuação governamental, encontram-se alguns princípios que o legislador determinou fossem aplicados às relações de consumo. Mas não só nesta norma estão contemplados os princípios. Na verdade, estão espalhados pelo código, como se demonstra a seguir.

 De acordo com o Magistério de Arruda Alvim, Thereza Alvim, Eduardo Arruda Alvim e Jaime Marins, seis são os princípios fundamentais aplicáveis à Política Nacional das Relações de Consumo: Princípio da Vulnerabilidade, Princípio do Dever Governamental, Princípio da Garantia de Adequação, Princípio da Boa-fé nas relações de consumo, Princípio da Informação e o Princípio do Acesso à Justiça.[23]

De fundamental importância, no entanto, inclua-se nesse rol de princípios o da igualdade, que entende-se seja, ao lado do da Boa-fé, o de maior destaque dentre os  aplicáveis às relações regradas pelo Código Protetivo.

 Dessa forma, adicionando-o àqueles informados por Arruda Alvim e outros, sem a pretensão de esgotar, porque certamente existem outros,  necessário que se discorra sobre cada um dos princípios, a fim de que se possa buscar uma compreensão acerca do objetivo do legislador consumerista ao regrar as relações de consumo.

2.1.1      Princípio da Igualdade

 É inevitável que se considere aplicável às relações de consumo e a qualquer outra submetida ao ordenamento jurídico brasileiro o princípio da igualdade, eis que de origem constitucional e, portanto,  com a natural ascendência sobre as normas infraconstitucionais. Mais do que isso, ousa-se afirmar, o maior dos princípios.

Acompanhado de outros, o princípio é  tido como garantia fundamental pelo artigo 5º da Constituição Federal, com a determinação de que todos devem ser tratados de forma isonômica, sem qualquer distinção.

 A sua definição não exige mais do que uma frase para ser compreendida,  porque a busca pelo reconhecimento da igualdade está presente em todos os seres, desde o nascimento.

Todos, sem exceção, desde os tempos mais remotos, se não buscaram a soberania ou ascendência sobre o semelhante – o que seria a prepotência -,  no mínimo a igualdade objetivaram. É bíblico: todos são iguais perante Deus.

 A definição da igualdade, portanto, é singela. Para que esteja presente, necessário que todos, sem qualquer distinção, sejam tratados e tratem o outro da mesma forma, sem privilégios ou distinções.

A história demonstra, porém, que a busca da igualdade não atende ao interesse de todos, notadamente porque aqueles que se encontram numa posição de desigualdade favorável, que lhes traga benefícios, por certo não pretendem a isonomia.

No mercado de consumo essa desigualdade sempre esteve presente, ao menos até a edição do Estatuto Protetivo.  De um lado, o consumidor, necessitado de produtos e serviços para sua subsistência e, de outro, o fornecedor, possuidor dessas necessidades.   Os primeiros, até pouco tempo desavisados do poder que possuem nessa relação, submetiam-se às regras ditadas pelos segundos que, invariavelmente, utilizando-se do poderio econômico, faziam crer que as regras do mercado eram por eles traçadas e indiscutíveis. Aos consumidores, para o atendimento de suas necessidades básicas, restava a pura aceitação das regras estabelecidas pelos fornecedores, sem a devida informação sobre os produtos e serviços, o devido respeito à qualidade e segurança que devem possuir e, principalmente, sem o devido direito que têm de estabelecer, de forma equilibrada, as condições do negócio.

 Não foi outra a preocupação do legislador consumerista: proporcionar a todos os participantes da relação de consumo a merecida e esperada igualdade, quase sempre desrespeitada.

 O artigo 4º do Código do Consumidor traz a primeira demonstração de que as relações de consumo devem ser pautadas com respeito à igualdade, exatamente quando o legislador, dentre outros objetivos e princípios da Política Nacional das Relações de Consumo,  determina a existência de equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores.

Como direitos básicos do consumidor, o artigo 6º elenca o da igualdade nas contratações.

Para que não restassem dúvidas de que a relação de consumo deve, em qualquer hipótese, respeitar a igualdade entre as partes, o legislador consumerista enfatizou, ao final do artigo 7º, que além dos direitos previstos na Lei 8.078/90, devem ser respeitados outros, nos moldes em que especifica, inclusive os que decorram dos princípios gerais do direito, analogia, costumes e, novamente, eqüidade.

Ao mesmo tempo em que o legislador cria normas que determinam a observância da igualdade entre as partes consumidora e fornecedora, flagrantemente – até porque esse é o seu objetivo – , recheia o código com normas que são verdadeiros benefícios para o consumidor, a exemplo da inversão do ônus da prova a seu favor, no processo civil.   

 Poderia parecer que a edição de normas visivelmente favoráveis a apenas uma das partes estaria por ferir o próprio princípio da igualdade, como aponta o renomado constitucionalista Manoel Gonçalves Ferreira Filho:

Deve-se assinalar que atualmente o princípio da igualdade parece em regressão. É inegável a tendência ao desenvolvimento de um direito de classe, que, embora para proteger o social e economicamente fraco, lhe concede privilégios em detrimento do princípio da igualdade. Também se pode observar que a intervenção do Estado no domínio econômico se tem feito ao arrepio desse princípio.[24]

 No entanto, a igualdade não pode enxergada apenas sob o seu aspecto formal. E isto bem apreendeu o legislador consumerista, que de forma feliz conseguiu harmonizar a aparente e tão-somente aparente contradição.

 Igualdade sempre se propalou existir. Na verdade, trata-se da meramente formal, aquela em que todas as pessoas devem ser tratadas com isonomia, sem distinções, como está consagrando pela Constituição Federal. Entretanto, a busca deve ser pela efetiva igualdade, a do mundo dos fatos. Nas palavras de José Afonso da Silva, “[...]porque existem desigualdades, é que se aspira à igualdade real ou material que busque realizar a igualização das condições desiguais[...].”[25]

Nesse mesmo  sentido, com sua natural facilidade, Luís Renato Ferreira da Silva ensina que

[...]A compreensão dos regramentos do Código de Defesa do Consumidor  passa pelo entendimento de que seus destinatários encontram-se descompassados na sociedade e a consecução do primado da igualdade  implica em tratamento tendente à diminuição desta dessemelhança. É sob esta ótica que se aceitam regras aparentemente contraditórias com a Constituição por privilegiarem certa classe de sujeitos, quando, na verdade, estão a inserir-se na moderna noção de igualdade, quer como conteúdo da lei expressa, quer como critério direto de valoração constitucional aplicável casuisticamente[26].

A verdadeira igualdade é atingida quando as partes estiverem, efetivamente, em posição de similitude.  

 Considerando que o consumidor sempre foi a parte mais fraca na relação de consumo, a verdadeira igualdade somente será levada a efeito quando houver equilíbrio entre as partes, ou seja, se através da inversão do ônus da prova, por exemplo, se consiga que as partes estejam em um mesmo patamar, aí estará a igualdade.

Da mesma forma, quando a informação sobre produtos e serviços não seja monopólio do fornecedor; quando não existir qualquer espécie de abuso no mercado de consumo; quando, através da modificação ou revisão de cláusulas contratuais, sejam excluídas aquelas que estabeleçam prestações desproporcionais ou excessivamente onerosas, a igualdade estará efetivamente presente, porque as partes estarão diante das mesmas condições, das mesmas oportunidades, sem privilégios para os mais afortunados. Essa é a compreensão trazida por João Mangabeira:

"[...]O essencial é igual oportunidade para a consecução dos objetivos da pessoa humana. E para igual oportunidade é preciso igual condição. Igual oportunidade e igual condição entre homens desiguais pela capacidade pessoal de ação e direção. Porque a igualdade social não importa nem pressupõe um nivelamento entre homens naturalmente desiguais. O que ela estabelece é a supressão das desigualdades artificiais criadas pelos privilégios da riqueza, numa sociedade em que o trabalho é social, e conseqüentemente social a produção, mas o lucro é individual e pertence exclusivamente a alguns[...]".[27]

A igualdade que deve ser perseguida e que foi positivada pelo legislador é aquela que propicia o efetivo equilíbrio das relações de consumo, verdadeiramente tratando de forma desigual os desiguais e, dessa maneira, atingindo-se a tão esperada isonomia de tratamento.

2.1.2      Princípio da Vulnerabilidade

 A elaboração de uma lei que não apenas regulasse as relações de consumo, mas que fosse especialmente de caráter protetivo, não teve outra razão senão a decorrente da constatação de que o consumidor é a parte mais frágil ou vulnerável do mercado de consumo e, como tal, merece proteção diferenciada.

 De acordo com Paulo Valério Dal Pai Moraes, estudioso da matéria, entende-se a vulnerabilidade como sendo

[...] a qualidade daquele ou daqueles sujeitos mais fracos na relação de consumo, tendo em vista a possibilidade de que venham a ser ofendidos ou feridos, na sua incolumidade física ou psíquica, bem como no âmbito econômico, por parte do sujeito mais potente da mesma relação. 28

 Mesmo que de forma singela, importante registrar que a vulnerabilidade se assemelha, mas não se confunde com a hipossuficiência. Nesse sentido, Cláudio  Bonatto:

[...] a vulnerabilidade é um conceito de direito material e geral, enquanto a hipossuficiência corresponde a um conceito processual e particularizado, expressando aquela situação a dificuldade de litigar, seja no tocante à obtenção de meios suficientes para tanto, seja no âmbito da consecução das provas necessárias para demonstração de eventuais direitos.29

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Como já se mencionou, o consumidor sempre ocupou a posição mais frágil da relação, submetendo-se aos ditames do fornecedor, pela inevitável necessidade de consumir, mas dentro das regras do mais forte. 

 Cada vez mais surgem técnicas avançadas de marketing,  criando desejos e fantasias na mente do consumidor, que provavelmente inexistiriam não fossem as técnicas ludibriantes comumente utilizadas pelos fornecedores. São exemplos disso os comerciais de televisão, oferecendo produtos e serviços como solução ideal para todos os anseios e problemas das pessoas.

Sobre esse aspecto, fundamental transcrever o magistério de Cláudio Bonatto:

[...]Estas maneiras subliminares de incutir idéias na psique humana, geralmente não são identificadas com facilidade, pelo que a reiteração das mesmas passa, com o tempo, a integrar o subconsciente do indivíduo, determinando que ele proceda da forma originalmente planejada.

Não se trata de qualquer prognóstico futurista, mas da realidade, motivo pelo qual o consumidor, por este primeiro aspecto, é considerado vulnerável, ou seja, pode ser facilmente atacado na sua livre manifestação de vontade, relativamente à escolha das suas prioridades e necessidades, cabendo à lei defende-lo, sempre com o objetivo de fazer valer o princípio da igualdade[30].

 Não só sob o aspecto do convencimento publicitário verifica-se a fragilidade do consumidor, podendo estar presente sob diversos enfoques, como o da fragilidade técnica, jurídica, política ou legislativa, biológica ou psíquica, econômica e social, ambiental, conforme ensina Paulo Valério, no aprofundado estudo que realizou sobre o princípio[31].

 A vulnerabilidade técnica verifica-se especialmente pelo fato de o consumidor desconhecer a forma utilizada pelo fornecedor na confecção de produtos e serviços, os meios empregados, notadamente no que respeita à qualidade, durabilidade e segurança; a jurídica, pelo desconhecimento da maioria dos consumidores dos direitos que possuem e da forma como podem ser reclamados, a quem e como reclamar, bem assim pela disparidade existente entre o consumidor, que litiga eventualmente, e o fornecedor, acostumado a essas práticas, experiente e mais perspicaz no enfrentamento jurídico; a política e legislativa, porque o consumidor, apesar dos avanços que alcançou com a edição de normas protetivas, notadamente o CDC, ainda não possui a  influência que detêm os fornecedores junto ao poder legislativo, fomentando a criação de normas que os beneficiem ou reduzam os direitos dos consumidores; a biológica ou psíquica, pela própria natureza humana, isto é, se os interessados em criar desejos e necessidades nos consumidores, vendendo assim o seu produto ou serviço, identificarem e dominarem o funcionamento das reações do ser humano aos estímulos externos, poderão se valer de técnicas, até mesmo nefastas, aproveitando-se da natural fragilidade a que estarão subjugados os consumidores;   a econômica e social, pela natural diferença que existe entre consumidores e fornecedores no que diz com o aspecto econômico, especialmente pela possibilidade de estes últimos utilizarem-se de todos os meios ao seu alcance para, com isso, auferir benefícios, dos mais variados, em sua relação com o consumidor; a ambiental, porque ainda nos dias atuais a defesa do meio ambiente, do qual todos somos consumidores, ainda é enxergada como sob o ponto de vista ideológico, que sucumbe aos apelos econômicos do “produzir, competir e vender a qualquer custo.”[32]

 Facilmente se percebe que a situação de fragilidade a que sempre esteve submetido o consumidor, sob os mais diferentes aspectos, como acima tratado, é que justificou a elaboração de uma norma de caráter nitidamente protetivo.

 Pode-se afirmar, por fim,  que foi a partir da constatação de que o consumidor é a parte vulnerável da relação de consumo, que o legislador, através das inúmeras normas protetivas, buscou homenagear o princípio constitucional da igualdade, exatamente quando estipula como objetivo da Política Nacional das Relações de Consumo o equilíbrio entre consumidores e fornecedores, até hoje inexistente.  Reconhecer a vulnerabilidade e, a partir daí, editar normas díspares, que beneficiem aquele que se encontra em posição de inferioridade, desigualado, é verdadeiramente aplicar o princípio da igualdade, afastando a diferença entre as partes.

2.1.3      Princípio do Dever Governamental

 Por determinação constitucional, o Estado encontra-se obrigado a promover a defesa do consumidor.

  De forma efetiva, o Código de Defesa do Consumidor, editado em obediência ao inciso XXXII do artigo 5º da Constituição Federal, determina que o Estado intervenha nas relações de consumo, protegendo efetivamente o consumidor, através de ações diretas ou pelo incentivo na criação de associações protetivas, bem como pela sua presença no mercado, fiscalizando e reprimindo os abusos eventualmente praticados. Esta é a participação do Estado enquanto ente político, organizador da sociedade, previsão dos incisos II e VI do artigo 4º da Lei Protetiva.

 Embora as associações de defesa do consumidor, existentes antes da edição do Código, tenham em muito contribuído para os avanços obtidos nesta área, culminando com a criação da lei,  o legislador reforça a proteção, prevendo a necessidade de o Estado fazer-se presente, de forma mais efetiva, nas relações de consumo, sem que haja necessidade de sempre recorrer ao Judiciário para resolver conflitos nesta seara.

 Também como fornecedor o Estado participa do mercado de consumo. E sob este aspecto, compete-lhe melhorar os serviços públicos, reconhecidamente prestados de forma deficiente. É a previsão do inciso VII do artigo 4º do CDC.

 Tal determinação certamente prestigia o moderníssimo princípio da eficiência, aplicável aos serviços públicos, previsto na Constituição Federal, especialmente no caput e § 3º, inciso I, do artigo 37, bem como no artigo 2º da Lei 9.784/99.[33]

   Por esse princípio, o Estado tem o dever de bem prestar o serviço, de forma mais simples, desburocratizada, com qualidade, mais ágil e econômica. A eficiência está voltada para a melhor maneira pela qual as coisas devem ser feitas ou executadas, atingindo não só os fins do Estado como os objetivos do Usuário.

2.1.4     Princípio da Garantia da adequação

 Esse princípio aparece positivado no artigo 4º, inciso II, letra d, do CDC,  exatamente quando o legislador determinou que o Estado estivesse presente no mercado de consumo, também para garantir que os produtos e serviços fossem prestados com níveis adequados de qualidade, segurança, durabilidade e desempenho. Aparece igualmente no inciso V do mesmo artigo, pela previsão do incentivo à criação de formas efetivas de controle da qualidade e segurança de produtos e serviços, pelo fornecedor. No artigo 6º, inciso III, quando o legislador lhe garante o direito à informação adequada e clara sobre produtos e serviços, com as devidas especificações, bem como sobre os riscos que possam oferecer, e X, quando o legislador lhe garante o direito de ter serviços públicos prestados de forma adequada e eficaz.

Percebe-se que tal princípio demanda atuação conjunta do Estado e dos fornecedores. Destes, a de entregar produtos e serviços com a qualidade e segurança adequadas, e do Governo, a de fiscalizar, garantindo o atendimento desse objetivo da Política Nacional das Relações de Consumo.

O objetivo do legislador com a positivação do princípio já começa a surtir efeitos práticos, de maneira especial quando se percebe que o meio empresarial, embora, sabe-se, também e em especial como marketing,  tem criado departamentos especializados em atendimento personalizado ao consumidor, com o objetivo de colher informações sobre os produtos e serviços prestados, reclamações e sugestões. 

 Na verdade, a determinação legal de que os produtos sejam fornecidos com padrões adequados de qualidade e segurança tem ajudado aos fornecedores, pois as empresas que se diferenciarem nesse aspecto terão seus produtos como os mais procurados. Poderia, na edição do Código, aparentar uma oneração ao fornecedor, que talvez tivesse de aumentar o custo de produção para aumentar a qualidade. Entretanto, isto tem se refletivo de forma diferente, eis que o aumento da qualidade, em vez de onerar as empresas, vem servindo para aumentar o lucro, porque produtos com maior qualidade e segurança são os mais procurados atualmente, dada o crescente nível de exigência do público consumidor.

 O exemplo mais flagrante de que o princípio de adequação está servindo a interesses tanto de fornecedores como de consumidores é a implantação dos programas de qualidade total, reconhecidamente de sucesso no meio empresarial, eis que alia otimização de custos, aumento da qualidade e, como já se mencionou, do próprio lucro.

 Além de estar contemplado pelo artigo 4º, o princípio reflete-se em outras disposições do Código, sobretudo nas contidas no Capítulo IV, que trata da qualidade de produtos e serviços, prevenção e reparação de danos.

2.1.5     Princípio da Boa-fé nas relações de consumo

 Aliado à igualdade que se pretende exista nas relações de consumo, o princípio da boafé desponta como um dos principais mecanismos a regular as práticas consumeristas.

Conceituar ou escrever sobre a boa-fé não tem sido uma tarefa fácil para os doutrinadores, especialmente porque a sua definição principal está ligada a aspectos morais, intrínsecos do ser humano, sendo necessário recorrer a um padrão médio de conduta para estabelecer o que a sociedade espera seja um comportamento dotado de boa-fé.

 Sua origem deriva do latim bona fides, que tem sido traduzida como honestidade, confiança, lealdade, sinceridade, fidelidade.  É exatamente o contrário da má-fé, sinônimo de engano, malícia,  dolo.

De acordo com a doutrina de Agathe E. Schmidt da Silva,

A boa-fé pode ser abordada em diferentes aspectos da vida social. Sob o aspecto psicológico, boa-fé é o estado de espírito de quem acredita estar agindo de acordo com as normas de boa conduta. Sob o ponto de vista ético, boa-fé significa lealdade, franqueza, honestidade, conformidade entre o que se pensa, o que se diz, o que se faz.[34]

Para Cláudia Lima Marques, 

[...]Boa-fé é cooperação e respeito, é conduta esperada e leal, tutelada em todas as relações sociais. A proteção da boa-fé  e da confiança despertada formam, segundo Couto e Silva, a base do tráfico jurídico, a base de todas as vinculações jurídicas, o princípio máximo das relações contratuais[...][35]

 Das lições da citada autora, pode-se sintetizar a boa-fé como sendo o dever de respeito que devemos ter pelo outro. Mas não só isso. Na verdade, “[...]Boa-fé é um pensar refletido, é o pensar no outro, no mais fraco, no parceiro contratual, nas suas expectativas legítimas, é lealdade, é transparência, é informação, é cooperação, é cuidado, é visualização e respeito pelo outro[...]”[36]

 De acordo com a doutrina majoritária, duas são as espécies de boa-fé existentes: a subjetiva, que se refere ao estado psicológico da pessoa, e a objetiva, que se  apresenta como padrão de conduta esperado pela sociedade. Pode-se dizer que, nesta última, a pessoa comportase conforme a boa-fé esperada; naquela, está ou não de boa-fé, conforme o seu convencimento.

 Para bem compreender a diferença existente entre a boa-fé objetiva e a boa-fé  subjetiva, indispensável recorrer aos ensinamentos de Judith Martins Costa, segundo a qual

 A expressão "boa-fé subjetiva" denota "estado de consciência", ou convencimento individual de obrar (a parte) em conformidade ao direito (sendo) aplicável, em regra, ao campo dos direitos reais, especialmente em matéria possessória. Diz-se "subjetiva" justamente porque, para a sua aplicação, deve o intérprete considerar a intenção do sujeito da relação jurídica, o seu estado psicológico ou íntima convicção. Antitética à boa-fé subjetiva está a má-fé, também vista subjetivamente como a intenção de lesar outrem. Já por "boa-fé objetiva" se quer significar – segundo a conotação que adveio da interpretação do parágrafo 242 do Código Civil alemão, de larga força expansionista em outros ordenamentos e, bem assim, daquela que lhe é atribuída nos países da common law – modelo de conduta social, arquétipo ou standard jurídico, segundo o qual cada pessoa deve ajustar a própria conduta a esse arquétipo, obrando como obraria um homem reto: com honestidade, lealdade, probidade. Por este modelo objetivo de conduta levam-se em consideração os fatores concretos do caso, tais como o status pessoal e cultural dos envolvidos, não se admitindo uma aplicação mecânica do standard, de tipo meramente subsuntivo.

Um indivíduo economicamente desprivilegiado pode ver-se obrigado, por estado de necessidade ou monopólio de determinada empresa em relação ao produto ou serviço por ele desejado, por exemplo, a sujeitar-se a contraprestações abusivas, mesmo que a intenção do contraente economicamente mais forte não fosse a de prejudicá-lo. Em situação hipotética como a mencionada, a concepção que se vinha adotando da boa-fé não traria um julgamento satisfatório ao caso, de modo a manter o equilíbrio contratual. De fato, ter-se-ia em consideração apenas o seu caráter puramente subjetivo: uma simples constatação de inexistência da má-fé por parte do contraente privilegiado (a sua não intenção em prejudicar aquele com quem contratou), dele não se exigindo a devida observância às regras de conduta impostas, aos interesses e finalidades a que visaram ambas as partes (boa-fé objetiva, como standard jurídico) no momento do acordo de vontades.[37]

 Depreende-se dos ensinamentos da renomada autora que a boa-fé subjetiva diz respeito ao estado de ânimo do sujeito, considerando-se a sua intenção. Trata-se de um estado de consciência, de espírito, em que alguém acredita que sua conduta é correta, embora possa não ser. A objetiva, por outro lado, refere-se a uma padrão de conduta que a sociedade exige dos contratantes, sem que haja preocupação com a intenção de cumprir ou não contrato, mas, fundamentalmente, se existe ou não a lealdade, transparência, veracidade e cooperação recíproca no pacto estabelecido.

 Especificamente nas relações de consumo, a boa-fé foi prevista pela Lei 8.078/90, onde flagrantemente o legislador consumerista optou pelo princípio da boa-fé objetiva.

Segue esse entendimento Fabiana Rodrigues Barletta,  segundo a qual

 O Código de Defesa do Consumidor adotou o princípio da boa-fé objetiva. Os próprios dispositivos do referido Código dão a certeza de que tal assertiva é correta, pois contêm positivadas condutas que se coadunam não apenas com boas intenções por parte dos contratantes: impõem, outrossim, condutas efetivas que primam pela lealdade, solidariedade e cooperação entre os contratantes, o que implica posturas objetivas para o alcance desse fim.[38]

Dessa forma, considerando o objetivo deste trabalho, a atenção será voltada para a boa-fé objetiva.

 Reforçando o pouco que já foi mencionado sobre ela, importante enfatizar que não se questiona acerca da intenção do sujeito, do seu objetivo na prática do ato. No dizer de Cláudio Bonatto,

 A boa-fé objetiva traduz a necessidade de que as condutas sociais estejam adequadas a padrões aceitáveis de procedimento que não induzam a qualquer resultado danoso para o indivíduo, não sendo perquirido da existência de culpa ou de dolo, pois o relevante na abordagem do tema é a absoluta ausência de artifícios, atitudes comissivas ou omissivas, que possam alterar a justa e perfeita manifestação de vontade dos envolvidos em um negócio jurídico ou dos que sofram reflexos advindos de uma relação de consumo.[39]

O Código de defesa do consumidor prestigia o princípio da boa-fé em várias disposições. De forma expressa, no entanto, é previsto no artigo 4º, inciso III e 51, inciso IV.

 Para Cláudia Lima Marques, o princípio da boa-fé objetiva foi positivado como linha teleológica de interpretação no artigo 4º e, como cláusula geral, no artigo 51, com vários deveres anexos decorrentes do princípio espelhados pelo Código.[40]

Importante mencionar, ao menos resumidamente, alguns desses deveres anexos às relações contratuais, apontados pela expoente autora, aceitos pela doutrina nacional.

 O dever de informar é o primeiro que aparece na Lei 8.078/90, disposto nos artigos 30 e 31, segundo o qual deve o fornecedor prestar todas as informações necessárias, completas, adequadas e claras, sobre o bem ou serviço que está negociando. Tal dever decorre especialmente de direito básico do consumidor previsto no artigo 6º, inciso III do Código.

 Na seqüência,  aparece o dever de cooperação, que exige um comportamento leal de ambas as partes, uma ajuda mútua para atingir os fins objetivados por elas. Acredita-se que tal dever está ligado intimamente ao princípio da harmonia, previsão do artigo 4º, inciso III, do Código.

  O dever de cuidado é outro apontado pela citada autora. Dele naturalmente decorre a obrigação do fornecedor em adotar medidas necessárias para que o consumidor não sofra danos em sua integridade pessoal ou patrimonial com a utilização do produto ou serviço ou em decorrência de qualquer ato que traga essa conseqüência. Tal dever está relacionado ao direito básico do consumidor previsto no artigo 6º, inciso I, do CDC, de proteção à sua vida, saúde e segurança, bem como pela garantia que lhe deve ser alcançada de que os produtos e serviços devem ser fornecidos com padrões adequados de qualidade, segurança, durabilidade e desempenho, que é a previsão do artigo 4º, inciso II, letra ‘d’.[41]

 A presença de deveres anexos à relação contratual, naturalmente fortalece a defesa do consumidor, pois o contrato não mais se esgota em si mesmo, revestindo-se de outras obrigações pelos contratantes, especialmente pelo fornecedor, que deve bem informar acerca do negócio contratado ou em vias de sê-lo, cooperar para que sejam atingidos os objetivos almejados por ambas as partes, acautelando-se para que o consumidor não tenha prejudicada sua integridade pessoal ou patrimonial em decorrência da utilização de produtos ou serviços perigosos ou nocivos ou por qualquer ato que lhes ocasione danos.

  Nas sábias palavras de Cláudia Lima Marques, “O princípio da boa-fé objetiva é, portanto, um princípio limitador do princípio da autonomia da vontade e um elemento criador de novos deveres contratuais, que deve contar, para sua maior efetividade, com sua previsão legal específica.”[42]

2.1.6     Princípio da informação

Os consumidores sempre foram carentes de conhecimento sobre a real qualidade e quantidade, características, preços, composição e possíveis riscos que pudessem apresentar produtos e serviços que lhes eram ofertados no mercado de consumo, bem como sobre as condições do negócio, invariavelmente estabelecidas em seu desfavor.

 A deficiente informação ao Consumidor, que inegavelmente pode lhe causar os mais diferentes danos, levou o legislador consumerista a espalhar pelo CDC inúmeros dispositivos que visam corrigir mais essa desigualdade entre os sujeitos da relação de consumo.

 Tamanha a importância dada à informação, que por  vinte e sete vezes o legislador se referiu à ela.  Dentre os doze tipos penais existentes no Código, dez deles cominam pena àqueles que, nos moldes em que especificam os artigos,  deixarem de prestar informações ou, prestandoas, o fizerem de forma deficiente,  incorreta, enganosa, falsa.

A clara e perfeita informação é fundamental para que o “[...] homem não seja levado a assumir comportamentos que não correspondam a uma perfeita compreensão da realidade[...]”[43].

 E não foi com outro espírito que o legislador tanto insistiu, em diversas disposições do Código, fosse o consumidor bem informado: possibilitar a ele que decidisse sobre a realização do negócio com o conhecimento de todas as suas circunstâncias, com toda a transparência, podendo a ele aderir, se as condições lhe satisfizessem, ou a ele não se vincular,  acaso as corretas informações lhe revelassem algo que não lhe conviesse.

Como já mencionado, inúmeras são as disposições do Código onde se constata a relevância alcançada à informação. No artigo 4º, encontra-se como princípio-norma a determinação para que fornecedores e consumidores sejam informados e educados no que diz com seus direitos e deveres; no 6º, como direito básico de que a informação lhe seja prestada de forma adequada e clara; nos 8º e 9º artigos, o alcance do conhecimento se refere a riscos à saúde e segurança dos consumidores, que podem advir da utilização de determinados produtos e serviços; nos artigos 12 e 14,  a responsabilização do fornecedor, à reparação de danos, inclusive por informações insuficientes e inadequadas sobre utilização e riscos dos produtos;  no artigo 30, a veiculação de informação e publicidade obriga o fornecedor a cumpri-la; no 31,  novamente o legislador exige a correta informação na oferta e apresentação de produtos e serviços; no artigo 36, a obrigação do fornecedor de manter dados que dão sustentação à publicidade, para informação dos interessados; no 37, temos a publicidade, verdadeira informação, que não pode ser enganosa ou abusiva; no inciso VII do artigo 39, considera-se prática abusiva divulgar informação depreciativa do consumidor pelo tão-só fato de reclamar pelos seus direitos; no 43, a previsão de acesso, pelo consumidor, a informações existentes sobre ele em banco de dados, cadastros; no §1º do artigo 55, a fiscalização e controle, pelo Estado, de que o consumidor está sendo informado do que lhe é de direito; nos artigos 63, 64, 66, 67, 68, 69, 71, 72, 73 e 74, como já mencionado, há cominação de pena àqueles que, conforme o preceito de cada norma, deixarem de prestar informações ou, prestando-as, o fizerem de forma deficiente,  incorreta, enganosa, falsa e, no 106, o dever do Departamento Nacional de Defesa do Consumidor de manter o consumidor informado sobre o mercado de consumo e sobre os seus direitos.

É facilmente perceptível a preocupação do legislador com a correta informação.  O Código de Defesa foi dotado de mecanismos suficientes para obrigar o fornecedor a prestar as informações corretas e necessárias para que o consumidor possa, diante de cada situação, decidir por conta própria e não apenas de acordo com os ditames e a vontade do parceiro mais forte.

Parece que a intenção legislativa, entretanto, no que respeita à Política Nacional das Relações de Consumo,  transcende as fronteiras da Lei 8.078/90, quando se refere à informação. O artigo 4º, em seu inciso IV,  corrobora tal entendimento, exatamente quando  prevê, ao seu lado,  a educação, o que se pode concluir que elas caminham juntas, esta e aquela, indissociáveis que são.

A informação sobre direitos e deveres deve existir muito antes de haver a relação de consumo.  E esta parece ter sido também a intenção do legislador, fomentando a educação dos consumidores e fornecedores já nos bancos escolares, a partir do ensino fundamental.

Os autores do anteprojeto demonstram que esse é o espírito da norma:

[...]Experiências pioneiras, do ponto de vista formal, têm sido constatadas sobretudo nos Estados do Rio Grande do Sul e Goiás, onde as respectivas Secretarias de Educação já têm programas próprios de educação de alunos dos 1º e 2º graus, inseridos nas disciplinas afins, como por exemplo, nas ciências, educação moral e cívica, matemática etc., como também se tem feito na educação relativa ao meio ambiente e sua preservação.

Assim, as crianças já começam a ser intruídas, por exemplo, com relação à qualidade dos alimentos que consomem, sua condição de exposição à venda, componentes artificiais, etc., bem como quanto a preços das mercadorias e outros aspectos de cunho econômico.[...][44]

Antes dos bancos escolares, a educação sobre o consumo começa na família, desde o nascimento.  Nesse momento inicia o aprendizado do certo e do errado, do bem e do mal, do justo e do injusto. É aí que se começa a aprender e cristalizar conceitos sobre a lealdade, confiança, sinceridade, honestidade, transparência.

Pode parecer utópico, mas entende-se que a educação, para o certo ou para o errado, dificilmente é mudada quando já está consolidada; deve ser forjada antes, no nascedouro.

  A educação, portanto, deve vir antes da informação. Se houver consciência coletiva dos valores básicos acima citados, especialmente o da transparência,  a informação não precisará ser perseguida, postulada, reclamada, mas decorrerá, naturalmente, das regras de convivência, dos valores éticos, existentes muito antes da relação de consumo. 

2.1.7     Princípio do Acesso à Justiça

Embora não conste de forma expressa no artigo 4º do CDC, percebe-se a presença do princípio por várias disposições do Código, a iniciar pelo artigo 6º, inciso VII, como direito básico do consumidor, precisamente o de ter acesso a órgãos administrativos e judiciários para a prevenção ou reparação de danos, com a garantia de proteção jurídica, administrativa e técnica.

 O princípio tem origem constitucional, como direito e garantia fundamental, previsto no artigo 5º, inciso XXXVI, segundo o qual não poderá haver lei que exclua da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão ou ameaça a direito.  A norma constitucional, prestigiada pelo legislador consumerista, deve ser entendida como o direito de todos ao livre acesso à justiça para postular a defesa de direitos, tanto individuais como coletivos.

 Ressalta-se, entretanto, que o acesso à justiça nem sempre está, efetivamente, ao alcance de todos, hajam vista os inúmeros obstáculos que surgem quando da propositura de uma demanda, a exemplo do pagamento de custas e de honorários advocatícios.

 Diante dessa realidade, certamente percebida pelo legislador consumerista, é que o consumidor foi municiado de mecanismos bastantes para fazer valer seus direitos, notadamente aqueles materiais previstos no Estatuto Protetivo, como indicam as normas previstas no artigo 5º, inciso I, através da assistência judiciária gratuita para o consumidor carente; inciso II, através das Promotorias de Defesa do Consumidor; inciso III, das delegacias especializadas em atender ao consumidor vítima de infrações penais de consumo; inciso IV,

dos Juizados Especiais destinados ao julgamento de litígios de consumo; do inciso V, com as Associações de Defesa do Consumidor; do artigo 6º, inciso VIII, com a facilitação da defesa dos seus direitos, até mesmo com a inversão do ônus da prova a seu favor no processo civil;  dos artigos 81 e seguintes, pela previsão da sua defesa através de ações coletivas, que visam a tutela dos interesses difusos,  coletivos e os individuais homogêneos.

 Foi feliz o legislador ao dotar o código de instrumentos que pudessem cristalizar, de forma eficaz,  a defesa dos direitos do consumidor, pois inócua seria a criação de uma lei protetiva, recheada de direito material, se não fosse oportunizado e assegurado ao seu destinatário a efetividade dessa defesa, através da facilitação da obtenção da tutela jurisdicional.

A assistência jurídica, integral e gratuita ao consumidor carente deve ser destacada como homenagem e avanço à Lei 1.060/50, que estabelece normas para a concessão de assistência judiciária aos necessitados, estado em que se encontra a maioria do público consumidor, constituído de pessoas sem condições de arcar com as despesas de um processo, de modo que a norma afigura-se como medida adequada, propiciando ao consumidor que, se necessário, defenda efetivamente dos seus direitos. 

Outra decorrência do princípio, que merece destaque, é a atuação do Ministério Público, da Defensoria Pública e das Associações civis, na defesa dos consumidores, percebida especialmente nas tutelas coletivas, representando verdadeiro avanço nas relações de consumo.

 Da mesma forma, a instalação de Varas Especializadas para a solução de Litígios de consumo, afigurando-se como alternativa ao trâmite mais rápido das questões envolvendo direitos do consumidores, pelo só fato da especialização.

2.1.8     Outros princípios

Vários outros princípios, não menos importantes que os acima destacados, são mencionados pela doutrina, a exemplo do da repressão eficiente aos abusos e o da transparência.

O princípio da repressão eficiente aos abusos aparece de forma expressa no inciso VI do artigo 4º do CDC, consubstanciado na proibição e repressão eficientes de todos os abusos praticados no mercado de consumo.

Abuso significa excesso, mau uso ou uso errado, excessivo ou injusto, exorbitância de atribuições ou poderes, aquilo que contraria as boas normas, os bons costumes.[45]

Para entender a figura do abuso, ainda que de forma breve, mas suficiente para compreendê-lo dentro do princípio da repressão, inestimáveis os ensinamentos de Cláudio Bonatto sobre o tema:

A noção de abuso está intimamente ligada ao conceito de direitos, pois abusar significa exercer de maneira desproporcional e contrária aos critérios de igualdade determinada conduta reconhecida, em princípio, como lícita.

Vale aqui, então, a velha lição de que nossos direitos acabam exatamente na medida em que começam a prejudicar os direitos dos demais indivíduos integrantes do corpo social, ou seja, uma conduta que era lícita na origem, tornase contrária ao direito, merecendo restrição advinda da lei.[46]

 O legislador consumerista, atento aos abusos praticados em detrimento do consumidor, determinou a proibição e repressão de todos os existentes no mercado de consumo, em especial daqueles constatados em condutas de empresários que, aproveitando-se de sua natural ascendência sobre o consumidor, subjugavam-no das mais diferentes formas, com o emprego desmedido do aparato empresarial.

 Como exemplos dessas condutas abusivas, destaca-se a utilização de técnicas avançadas de marketing,  que podem criar desejos e fantasias no consumidor, que provavelmente inexistiriam não fossem as técnicas ludibriantes comumente utilizadas; a cobrança de altas taxas de juros, como é o caso de certas operações bancárias, exorbitando e aproveitando-se da necessidade do consumidor em obter numerário para financiar a sua subsistência, da chamada venda casada, quando o fornecedor condiciona o fornecimento de um produto à aquisição de outro, da exigência de vantagem manifestamente excessiva, de expor o consumidor a ridículo na cobrança de dívidas, do estabelecimento de cláusulas visivelmente benéficas ao fornecedor e prejudiciais ao consumidor e de muitas outras técnicas que, em detrimento do mais fraco, excedendo os limites do direito,  aproveitando-se da fragilidade do consumidor, perseguem apenas o lucro, sem qualquer preocupação com o parceiro contratual.

 É preciso salientar que a proibição e repressão aos abusos, prevista no inciso VI do artigo 4º do CDC, refere-se a todos aqueles praticados no mercado de consumo e não somente àqueles praticados pelos fornecedores. Embora o caráter nitidamente protetivo da norma, ela busca o equilíbrio, harmonia, transparência, boa-fé nas relações de consumo, estados que só serão atingidos se for admitido que o consumidor também pode abusar, se houver isonomia de tratamento. Aliás, esse é um dos principais enfoques deste trabalho, em capítulo próprio, que trata da abusividade nas relações de consumo.

O princípio da transparência vem positivado, de forma implícita, no caput do artigo 4º do CDC.  De acordo com o magistério de Cláudia Lima Marques, “[...]significa informação clara e correta sobre o produto a ser vendido, sobre o contrato a ser firmado, significa lealdade e respeito nas relações entre fornecedor e consumidor[...]”.[47]

Através deste princípio, exige-se que o fornecedor preste informações diretas e efetivas sobre todas as condições do negócio a ser realizado, desde a oferta até o conteúdo do contrato, seja escrito, seja verbal.

Estas são noções superficiais sobre os princípios da transparência e da repressão eficiente de abusos. Considerando que os capítulos seguintes estão a eles intimamente relacionados, a figura do abuso, como já mencionado, será melhor analisada no capítulo 3, e a transparência, no último capítulo.

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Sobre o autor
Alfredo Benito Cechet

Advogado - Especialista em Direito do Consumidor e Direitos Fundamentais

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CECHET, Alfredo Benito. O risco da banalização do Código de Defesa do Consumidor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4099, 21 set. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/31546. Acesso em: 18 dez. 2024.

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