“Temos, há muito tempo, guardado dentro de nós um silêncio bastante parecido com estupidez” - “São muitos os cidadãos que perdem a opinião por falta de uso” - “na luta do bem contra o mal, é sempre o povo que morre” (Eduardo Galeano)
O presente artigo pretende abordar o comportamento abusivo e prepotente das grandes companhias frente ao consumidor brasileiro, fenômeno que cresce em proporções geométricas graças à atuação equivocada do Judiciário pátrio.
Vivemos em um mundo de realidades gigantescas e números que se multiplicam assustadoramente a cada instante, quadro que, como não poderia deixar de ser, acaba por afetar todo o nosso sistema jurídico em uma espiral que envolve todos os operadores do direito, desde o estagiário de um pequeno escritório de advocacia até os Ministros do Supremo Tribunal Federal, o que, por sua vez, redunda em uma outra situação ainda mais grave, que é a padronização desmesurada e irremediável dos conflitos de interesses.
Podemos afirmar, sem medo de ser panfletário, que o sistema judiciário como um todo vive o que podemos chamar de “a era dos modelos”. O mais assustador nessa realidade é a constatação de que não existe, pelo menos a curto prazo, mecanismo capaz de reverter essa teratologia, uma vez que a demanda criada pelo acesso irrestrito e, cada vez mais, irresponsável ao judiciário segue numa curva ascendente e acelerada.
Não há soluções simples ou milagrosas para combater o câncer, que já em grau avançado de metástase, toma conta do nosso sistema jurídico, contudo, algo urge de ser feito, sob pena de evertemos e subvertemos todo o sentido e fins que trouxeram à luz e fizeram crescer e florescer a ideia do judiciário como bastião seguro para a solução dos conflitos que estremecem a vida em sociedade, visando a tão necessária paz social, viga estruturante e fundamental para nossa necessidade gregária.
Muitos são os problemas, porém este singelo libelo pretende se ocupar especificamente de uma das mazelas que afligem e solapam hodiernamente o sistema referido em linhas volvidas, contribuindo sobremaneira para a avalanche de processos que assombra os escaninhos da justiça pátria, qual seja as ações de indenização movidas pelos consumidores em desfavor das empresas brasileiras.
Em uma pesquisa perfunctória, apenas a título de ilustração, extraída de um dos sites de reclamação colocados à disposição do consumidor para verter sua insatisfação acerca dos péssimos serviços prestados pelas empresas atuantes no nosso país, chegamos ao número absurdo de 582.814 reclamações (página: www.reclameaqui.com.br/ranking), sendo que em tal número estão computadas apenas as reclamações dirigidas contra 20 empresas, supostamente as mais negligentes e reiteradamente abusivas. Tal número se torna ainda mais impactante se levarmos em linha de consideração o fato de que essas reclamações são única e exclusivamente as que foram feitas diretamente naquele site específico. Com base nesses dados, que representam uma pequena amostragem do universo possível e real de infrações perpetradas pelas empresas em detrimento dos consumidores brasileiros, podemos apenas vislumbrar o número bilionário de ações ilícitas de tais pessoas jurídicas viciosamente cometidas dia após dia, mês após mês, ano após ano, em um círculo odioso e de completo desprezo pelas mais comezinhas regras de conduta tão valorizadas e necessárias para o resto da população.
Desses milhares de atos ilícitos cometidos diariamente e reiteradamente pelas empresas em face dos consumidores, esses cada vez mais atônitos e impotentes com a desfaçatez e abusividade espelhado no comportamento daquelas, algumas centenas acabam por acorrer ao judiciário, também diariamente, com a esperança ingênua de que a conduta desregrada e afrontosa dessas empresas será finalmente enquadrada e combatida. Ledo engano, do qual o já abusado consumidor apenas irá se dar conta após aguardar por meses, e não raro por anos, em algumas esperançosas peregrinações em salas de espera e de audiência pelos juizados afora.
Podemos resumir o cenário dessa tragédia nos seguintes atos:
- Primeiro ato – O consumidor, quase sempre após o assédio pessoal e tecnológico das empresas, adquire um produto, pagando à vista ou religiosamente suas prestações;
- Segundo ato – O produto apresenta algum defeito ou problema, obrigando nosso fiel e honrado consumidor a sacrificar horas e dias, sem medo de exagerar, da sua já atribulada agenda para tentar, em sagas indignas por call centers, resolver o problema amigavelmente, sendo invariavelmente tratado como idiota;
- Terceiro ato – Após meses de desprezo e negligência, assombrado pela raiva, impotência e desespero, o consumidor finalmente decide que não tem outra solução senão tentar lavar seu esgotamento moral com as águas justas e serenas do Judiciário, onde lhe será exigido mais alguns meses de sua já tão abalada paciência;
- Quarto ato – Sob um pomposo nome de “mero aborrecimento”, o nosso Dom Quixote consumerista finalmente descobre estarrecido que os moinhos de vento do capitalismo moderno varreram para outras plagas o bom senso que outrora reluzia orgulhoso naquele bastião último das mazelas humanas, chamado Poder Judiciário.
Enquanto isso, bilionárias, prepotentes e cada vez mais audaciosas, as empresas infratoras continuam sua escalada assustadora de infrações em detrimento de seus consumidores, certos da impunidade e, por que não dizer, cumplicidade de um Judiciário atolado em milhares de processos e refém de seus modelos padronizados, sem se dar conta de que tal conduta apenas alimenta e fortalece o círculo vicioso, provocando avalanches cada vez maiores e mais destrutivas.
Como dito anteriormente, não existem soluções fáceis ou simples, mas, sem sombra de dúvidas, algo há que ser feito e demanda urgência, antes que seja muito tarde para reverter os efeitos já tão deletérios que exsurgem dessas decisões industriais e equivocadas.
O nominado “mero aborrecimento” tem sua origem no mesmo berço em que foram concebidas tantas outras construções hoje existentes no nosso ordenamento jurídico, qual seja as reiteradas decisões de nossos tribunais, sendo que tal manifestação jurídica ainda não se encontra positivada em nenhuma norma em vigor. Ora, a motivação que deu ensejo a tão solicitada e requisitada figura jurídica, foi, ao que tudo indica, de cunho político, voltada para o combate do que se acordou chamar de “a indústria das indenizações”, partindo da premissa de que os consumidores, sabidamente hipossuficientes, estariam se valendo do judiciário para achacar e extorquir as empresas, o que evidentemente deságua em uma lógica perversa, como sói comum acontecer em terras nacionais.
Será que alguém em sã consciência pode presumir que o Judiciário, através de seus juízes, leigos ou togados, possui capacidade técnica para avaliar ou mensurar a extensão, a qual se deu uma dimensão aparentemente matemática, do aborrecimento sofrido pelo consumidor que resolveu, na esmagadora maioria das vezes ao fim de uma odisseia imoral e inútil através dos ineficientes e impessoais serviços de atendimento das empresas, bater às portas da justiça na esperançosa tentativa de solucionar o problema (para o qual não deu causa, nunca é demais lembrar) e tentar, através de uma indenização, não apenas se ver ressarcido de seus dissabores, o que sabemos que não tem preço, mas, na sua qualidade de cidadão e cioso de seu papel perante a comunidade, educar e combater o comportamento odioso levianamente repetido pelas empresas.
Não precisa ser nenhum gênio da economia para chegar a conclusão que é imensamente vantajoso para as empresas continuarem com suas diversas e incontáveis modalidades de atos ilícitos, sendo certo que um pequeno número dentro do gigantesco universo de prejudicados procura o Judiciário para a defesa de seus direitos explicitamente violados, e desse montante já reduzido, apenas uma ínfima parte obtém sucesso, sendo os demais enxovalhados para a vala fácil do “mero aborrecimento”.
De nada adiantaram os avanços promovidos pelo novel Código Civil, com sua visão personalizadora, abortando o individualismo atomista e o culto ao patrimônio que norteavam as codificações antecessoras. De nada adiantou o enquadramento crescente das empresas dentro de uma responsabilização objetiva ou a inversão do ônus probatório, sempre no afã de instrumentalizar o consumidor de mecanismos mais eficientes para sua proteção, quando, dentre os elementos do dever de indenizar, a prova da culpa sempre era tarefa ingente para o hipossuficiente.
Hoje as empresas nem se preocupam em contrariar a existência de qualquer um daqueles elementos: conduta, dano, nexo e culpa, sendo que não raro reconhecem tranquilamente a incidência de todos esses fatores. Nos cinzentos dias atuais as empresas conseguiram uma panacéia muita mais poderosa para seus males: “mero aborrecimento”.
Voltando um pouco sobre a óbvia impossibilidade do Judiciário avaliar o aborrecimento sofrido pelo consumidor, o que, a toda evidência, demandaria um laudo confeccionado por expert na área, seja psiquiatra ou psicólogo, o que, até onde sabemos, não é feito. Trazendo tal problemática para a seara processualista chegamos ao norte imposto pelo diploma formal, o qual em seu artigo 333, reza a quem cabe o ônus da prova. Ora, que houve dano por parte do autor isto é evidente, enquadrando-se perfeitamente nos incisos que dão corpo ao artigo 334 do CPC, sendo tal dano notório e geralmente confessado ou admitido pelas empresas requeridas. Por outro norte, dependeria da parte requerida provar que tal dano seria apenas um “mero aborrecimento”, em respeito ao inciso II, do artigo 333, isto sem lançar mão do recurso da inversão do ônus da prova em favor do autor hipossuficiente. Desta forma, caberia à empresa demandada provar, através de perícia qualificada, que o sofrimento reclamado pelo autor não é significativo a ponto de gerar uma indenização, o que, naturalmente não é feito, uma vez que as empresas contam com a incompreensível atitude do julgador de presumir, sem que possua qualquer qualificação médica ou elementos bastantes, que o sofrimento moral, físico e psíquico suportado pela parte autora foi irrelevante.
De outro lado, naqueles casos que finalmente é reconhecido o dano moral, as indenizações fixadas são simplesmente ridículas, equacionadas mais uma vez dentro da mesma lógica perversa onde as empresas deveriam ser protegidas da horda marginal de consumidores. Evidentemente que o enriquecimento sem causa, odioso ao sistema jurídico, deve ser combatido com rigor, evitando-se desse modo fomentar uma excrecência no afã de exterminar outra. Se é certo que um consumidor não pode se utilizar do Judiciário para engordar sobremaneira sua conta bancária, a fortiori, não é crível que as empresas possam se ver livres de todo o sofrimento e transtorno causado a milhares de consumidores através de condenações irrisórias e absolutamente sem nenhum valor educativo.
A solução para tal paradoxo podemos extrair da interpretação sistematizada do nosso ordenamento jurídico, o qual, em suas normas positivadas, possui mecanismos para que o Judiciário, no seu mister primevo e institucional de alcançar a paz social, consiga finalmente encontrar uma luz que venha reverter o caos instalado dentro do sistema, oriundo da desfaçatez das empresas em relação aos seus consumidores.
Segundo os artigos 927 e 944 do Código Civil, todo aquele que comete ato ilícito fica obrigado a indenizar, sendo tal indenização medida pela extensão do dano. Tenho comigo que todo dano causado a um consumidor individual por uma empresa carrega em si um dano residual que tem reflexos em toda comunidade, ou seja, em toda ação de indenização movida em face de uma empresa fundada em uma relação de consumo teríamos dois tipos de danos a indenizar: o dano sofrido pelo autor e o dano reflexo suportado por toda a comunidade em virtude da conduta ilícita da empresa, o que, sem sombra de dúvidas, acaba por elevar o tão falado “custo Brasil”, o qual, em última análise, será certamente suportado pelos mesmos consumidores.
Desta forma, o consumidor seria indenizado dentro de um valor condizente com sua condição e a extensão dano, satisfazendo seu desejo merecido por justiça. E, na outra ponta, a sociedade também seria indenizada, desta feita de olho na condição financeira da empresa requerida, de maneira que o valor seja suficientemente significativo a ponto de reprimir novos atos ilícitos de sua parte. Tal valor seria revertido para o Fundo de Defesa de Direito Difusos, estruturado nos termos da Lei nr. 9.008/95, o que ademais já tem previsão no próprio CDC em seus artigos 57, 99, parágrafo único e 100, parágrafo único.
Os valores, a serem fixados para fazer frente a essa indenização devida para a sociedade, obviamente, não podem ser modestos, sob pena de surtirem o mesmo efeito que um cisco atirado em um elefante. Poderíamos usar como parâmetro o próprio CDC, em seu artigo 57, parágrafo único, ou, deixando de lado a indulgência que já a tanto tempo socorre tais empresas renitentes, podemos lançar mão dos montantes previstos pelo artigo 37, incisos I a III, da Lei nr. 12.529, que prevê multa de até R$ 2.000.000,00 (dois bilhões de reais).
Com certeza, já temos normas suficientes dentro do nosso ordenamento jurídico para avalizar decisões que venham por fim à tirania com a qual as empresas tratam os consumidores brasileiros. Os julgadores, por seu turno, possuem instrumentos atuais e hábeis, tais como a festejada teoria do diálogo das fontes, a original teoria da responsabilidade pressuposta ou, ainda, a formidável construção constitucionalista da eficácia horizontal dos direitos fundamentais. Muito tempo já foi perdido neste raciocínio oblíquo e equivocado em que desembocou o Judiciário, passamos da hora de reconhecer que os grandes princípios diretores da nossa atual ordem constitucional – dignidade da pessoa humana e solidariedade –, bem como os princípios civilistas contemporâneos – boa-fé objetiva, probidade e função social do contrato – devem prevalecer sobre quaisquer outros eventuais fundamentos que possam fomentar o comportamento deletério das empresas brasileiras no seu trato com os consumidores.
Por fim, não fazemos ouvido mouco às reclamações de que as empresas no brasil são reféns de um sistema voraz e insaciável de tributos e regulações imposto pelo governo, o que acaba por sobrecarregar de maneira cruel sua estrutura. Contudo, tal realidade não pode ser utilizada por parte dessas empresas para justificar sua conduta atávica no sentido de desrespeito ao consumidor. O Judiciário, por seu turno, não pode se deixar iludir por tal falácia, contribuindo para que a conta de tais distorções acabe recaindo, como tem sido até o presente momento, sobre os ombros daqueles que deveriam ser os principais protegidos: os hipossuficientes. Se conta houver, que ela seja atribuída a quem de direito e que tenha gordura suficiente para aguentar o corte, seja o governo, sejam as empresas.