A Convenção de Palermo e o tráfico de pessoas

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18/09/2014 às 04:10
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O melhor meio a ser empregado no combate do tráfico de pessoas é o preventivo, com políticas públicas intensificadas, fornecendo educação saúde, condição de vidas digna e saudável, e abrindo uma perspectiva de vida decente e em condições de igualdade para todos ou similares.

RESUMO: O presente artigo apresenta uma situação latente na sociedade mundial – o tráfico de pessoas. Trata-se de prática por demais antiga, mas ainda em pleno vigor, na qual as ações externas consorciadas com as de cada país contribui em perseverar na luta contra este crime, que assola parte da sociedade mundial. As próprias ações patrocinadas por órgãos da Organização das Nações Unidas (ONU) possibilitam uma maior transparência de tais práticas, assim como permite uma prevenção mais efetiva, em face da grande divulgação e prevenção usadas em alguns Estados.

PALAVRAS-CHAVE: Convenção de Genebra; Tráfico de pessoas; Convenção de Palermo; Vitimologia. 

ABSTRACT: This paper presents a latent situation in world society - human trafficking. It's practical too old but still in full force, in which the actions of external intercropped with each country contributes to persevere in the fight against this crime, plaguing the society worldwide. The own shares sponsored by agencies of the United Nations (UN) allow greater transparency of such practices, as well as allowing more effective prevention, given the ubiquity and prevention used in some states.KEYWORDS: Geneva Convention; Trafficking; Palermo Convention; Victimology.

 

SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Histórico; 3 Legislação brasileira; 4 Vitimologia; 4.1 Objeto da vitimologia; 4.2 Vítimas potenciais do tráfico; 4.3 Fatores que viabilizam a migração as vítimas; 4.4 Possíveis danos sofridos pelas vítimas; 4.5 Fatores que facilitam o sucesso do tráfico; 4.6 O tráfico no Brasil; 5 Dignidade da Pessoa Humana; Considerações Finais; Referências.


1 INTRODUÇÃO

Este artigo apresenta um quadro deprimente da exploração humana por humanos, tolerado e considerado uma coisa normal em diversos períodos de nossa sociedade. Com a expansão do desenvolvimento tecnológico, este meio de exploração lucrativa cada vez mais se intensifica, posto que sua rentabilidade gera cifras de bilhões de dólares para quem dele se apropria. Tal situação motiva, por parte da Organização das Nações Unidas, diversas medidas coercitivas para extirpar tal flagelo de nosso ambiente social.

No primeiro tópico é feita a contextualização histórica do tráfico de pessoas em nível mundial, tornando-se esclarecedor para o entendimento de que tal medida não se restringe ao século passado ou atual, mas remonta a milhares de anos. Desde época remota, o ser humano explora seu semelhante sem qualquer consideração, mas simplesmente como produto que visa a lucro, como ocorre nas sociedades ditas civilizadas.

No segundo tópico é abordada a legislação brasileira, quase em sua totalidade inspirada no Direito Comparado, mas especificamente nos vários tratados e convênios elaborados sob os auspícios da ONU, mas que ainda está apresentando uma eficácia tímida.

O terceiro tópico contempla com maior clareza este tema, ao apresentar noções da vitimologia, o seu objeto, as vítimas em potencial, os fatores que favorecem a migração dessas pessoas, possíveis danos sofridos pelas vítimas, os fatores que facilitam a atuação do tráfico de pessoas e como ocorre o tráfico no Brasil.

No quarto tópico tratamos da dignidade da pessoa humana, preconizada pela Organização das Nações Unidas em sua Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10 de dezembro de 1948, bem como os estudos desenvolvidos por grupos preocupados com tal matéria.

Ao final, tecemos alguns comentários gerais sobre o assunto que tem inclusive sido tema de abordagem midiática, mediante o noticiário e novela de televisão, o que o torna alvo de reportagens em jornais e revistas, devido ao interesse despertado no grande público.


2 HISTÓRICO

Desde as épocas remotas de nossa sociedade, existiu o tráfico de pessoas. No mundo grego, os conquistadores tornavam os vencidos seus escravos e os submetiam a trabalhos forçados ou os vendiam para outros senhores. De forma idêntica ocorria na Roma antiga, assim como nos povos que os sucederam no decorrer da História Universal. No século XVIII, durante o clímax da exploração colonial, Portugal e Espanha se utilizavam de mão de obra escava em suas colônias trazidas do continente africano.

Salienta Castilho que, na legislação comparada temos, a partir de 1814, a preocupação dos Estados pela proteção dos seres humanos, que eram explorados por outros semelhantes. A Convenção de Viena de 1814 teve como objetivo reorganizar as fronteiras europeias alteradas pelas conquistas de Napoleão, e restaurar a ordem absolutista do antigo regime, levando a mudanças políticas e econômicas em toda a Europa, acarretando também a proibição do tráfico de negros, objeto de comércio para a escravidão[1].

Com a criação da Sociedade das Nações, em 1926, mediante convenção firmada por este organismo internacional, houve a reafirmação do Tratado de Paris, ratificada em 1953, agora sob a égide da Organização das Nações Unidas.  Para fins dessa última convenção, o tráfico de escravos “compreende todo ato de captura, aquisição ou cessão de um indivíduo para vendê-lo ou trocá-lo; todo ato de cessão por venda ou câmbio de um escravo, adquirido para vendê-lo ou trocá-lo, e em geral todo ato de comércio ou de transporte de escravos”.

Na Convenção de Genebra, de 1956, repetiram-se os conceitos, mas o foco foi ampliado para instituições e práticas análogas à escravidão, nomeando expressamente a imobilização por dívidas e a servidão, assim como o casamento forçado de uma mulher em troca de vantagem econômica para seus pais ou terceiros; a entrega, onerosa ou não, de uma mulher casada a terceiro pelo seu marido, sua família ou seu clã; os direitos hereditários sobre uma mulher viúva; a entrega, onerosa ou não, de menor de 18 anos a terceiro, para exploração[2].

Os Estados que ratificaram essa Convenção além do acima aduzido deveriam, também, estabelecer medidas de natureza administrativa e civil, visando a modificar as práticas análogas à escravidão de mulheres e crianças. A Convenção fixou a obrigação de definir como crimes, entre outras, a conduta de transportar ou de tentar transportar escravos de um país a outro, de mutilar ou aplicar castigos, de escravizar alguém ou de incitar alguém a alienar a sua liberdade ou de quem esteja sob sua autoridade.

O Congresso de Viena de 1814 tinha como meta principal a reestruturação da Europa pós-era napoleônica, visando a garantir a paz no Velho Continente. Porém, além das disposições políticas territoriais, estabeleceu a condenação do tráfico de escravos, determinando sua proibição ao norte da linha do Equador. Com a evolução da sociedade, ou sua involução, verificaram-se novas incidências de condutas exploratórias, agora voltadas para a exploração laboral e para o tráfico de mulheres brancas destinadas à prostituição. Ante este novo surto exploratório na sociedade mundial, foi firmado em Paris, no ano de 1904, o Acordo para a Repressão do Tráfico de Mulheres Brancas. No ano seguinte, este Acordo foi convolado em Convenção, provocando o surgimento de outras convenções nas décadas subsequentes: a Convenção Internacional para a Repressão do Tráfico de Mulheres Brancas (Paris, 1910); a Convenção Internacional para a Repressão do Tráfico de Mulheres e Crianças (Genebra, 1921); a Convenção Internacional para a Repressão do Tráfico de Mulheres Maiores (Genebra, 1933); Protocolo de Emenda à Convenção Internacional para a Repressão do Tráfico de Mulheres e Crianças e à Convenção Internacional para a Repressão do Tráfico de Mulheres Maiores (1947); a Convenção e Protocolo Final para a Repressão do Tráfico de Pessoas e do Lenocínio (Lake Success, 1949)[3].

Observa-se um divisor de águas entre as convenções celebradas sob a égide da Liga das Nações e as que sucederam à criação da ONU. As primeiras se pautavam pela proteção das mulheres europeias, mas especificamente as do Leste Europeu, onde somente havia uma preocupação com a imposição de sanções de cunho administrativo.

Ficou patente que a Convenção e Protocolo Final para a Repressão do Tráfico de Pessoas e do Lenocínio (1949) foi ineficaz quando da edição da Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (1979), ao obrigar os Estados-Partes a tomarem as medidas apropriadas para suprimir todas as formas de tráfico e de exploração da prostituição de mulheres. Em 1983 o Conselho Econômico e Social da ONU não constatando nenhum dado eficaz, decide cobrar relatórios para poder melhor avaliar a Convenção[4].

O Brasil, acompanhando os anseios da sociedade internacional, tem ratificado vários tratados relacionados ao tema em estudo, quanto à sua efetiva implementação no território nacional, porém isto é outro assunto, pois as políticas públicas na maioria das vezes são vacilantes no seu atendimento eficaz[5].

Quase duas décadas depois, em 1992, a ONU lança o Programa de Ação para a Prevenção da Venda de Crianças, Prostituição Infantil e Pornografia Infantil. Castilho aborda a necessidade de um processo de revisão que se fortalece na Conferência Mundial dos Direitos Humanos (1993), cuja Declaração e Programa de Ação de Viena salientam a importância da “eliminação de todas as formas de assédio sexual, exploração e tráfico de mulheres”. Daí o Programa de Ação da Comissão de Direitos Humanos para a Prevenção do Tráfico de Pessoas e a Exploração da Prostituição (1996)[6].

Complementa Castilho que a Convenção Interamericana sobre o Tráfico Internacional de Menores (1998) conceituou como tráfico internacional de pessoas com menos de 18 anos a “subtração, transferência ou retenção, ou a tentativa de subtração, transferência ou retenção de um menor, com propósitos ou por meios ilícitos”. Exemplificando como propósitos ilícitos, entre outros, a prostituição, a exploração sexual, a servidão e como meios ilícitos “o sequestro, o consentimento mediante coerção ou fraude, a entrega ou recebimento de pagamentos ou benefícios ilícitos com vistas a obter o consentimento dos pais, das pessoas ou da instituição responsáveis pelo menor[7].

Observa-se nestes acordos um processo evolutivo na repressão aos abusos sofridos pelas mulheres e crianças, sendo que em uma primeira fase estavam direcionadas às mulheres brancas, depois às mulheres e crianças, e agora aos seres humanos em geral, sem desfalecer o cuidado especial com as mulheres e crianças.

Até a Convenção e Protocolo Final para a Repressão do Tráfico de Pessoas e do Lenocínio de 1949 existia uma preocupação em coibir o tráfico para fins de prostituição.

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Com a edição da Convenção Interamericana, o lastro protetivo foi ampliado: além da prostituição, passou a ser considerada a exploração sexual e a servidão[8]. Nos primeiros tratados, as vítimas desses tipos de exploração apresentavam-se em uma situação dicotômica, como se fossem os criminosos, mas com o passar dos anos a consciência mundial os posicionou no seu devido lugar, de vítimas da exploração[9].


3  LEGISLAÇÃO BRASILEIRA 

Em 29 de janeiro de 2004, o governo brasileiro ratificou o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em especial de Mulheres e Crianças, adotado em Nova York, em 15 de novembro de 2000, levando a sua internalização com a promulgação do Decreto nº 5.017, de 12 de março de 2004. Trata-se de um instrumento internacional que contém normas e medidas relativas a todos os aspectos relacionados ao tráfico de pessoas, quais sejam, a prevenção e o combate ao tráfico, bem como a assistência e a proteção às vítimas.

É cediço que o tráfico de pessoas tem como foco mulheres, crianças e adolescentes. Com relação a este fato, o governo brasileiro ratificou em 1º de fevereiro de 1984 a Convenção das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (1979), dando um passo importante para a proteção de todas as mulheres brasileiras. Nas Américas, o Brasil é Estado-Parte da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (1994)[10].

A preocupação da Organização das Nações Unidas pela proteção das mulheres e crianças levou, através da Resolução nº 53/111 da Assembleia Geral, de 9 de dezembro de 1998, a instituir um comitê intergovernamental especial, de composição aberta, para elaborar uma convenção internacional de âmbito global contra o crime transnacional e examinar a possibilidade de elaborar um instrumento internacional para repressão contra o tráfico de mulheres e de crianças. Tal iniciativa culminou com a elaboração de um conjunto de instrumentos para inibir tais ações, conforme discriminado a seguir: Decreto nº 5.015, de 12 de março de 2004 (Convenção de Palermo)[11], Decreto nº 5.016, de 12 de março de 2004[12] e Decreto nº 5.017, de 12 de março de 2004 (Protocolo adicional da Convenção de Palermo)[13]. Tais dispositivos tratam respectivamente do seguinte: promulga a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional; promulga a Convenções das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, relativo ao Tráfico de Migrantes por Via Terrestre, Marítima e Aérea e o último promulga o Protocolo adicional à Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças.

O artigo 2º da Convenção de Palermo é uma norma explicativa, mediante a qual os principais termos ali utilizados são definidos, conforme é delineado em seguida:

a) "Grupo criminoso organizado" - grupo estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo e atuando concertadamente com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves ou enunciadas na presente Convenção, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro benefício material;

b) "Infração grave" - ato que constitua infração punível com uma pena de privação de liberdade, cujo máximo não seja inferior a quatro anos ou com pena superior;

c) "Grupo estruturado" - grupo formado de maneira não fortuita para a prática imediata de uma infração, ainda que os seus membros não tenham funções formalmente definidas, que não haja continuidade na sua composição e que não disponha de uma estrutura elaborada;

d) "Bens" - os ativos de qualquer tipo, corpóreos ou incorpóreos, móveis ou imóveis, tangíveis ou intangíveis, e os documentos ou instrumentos jurídicos que atestem a propriedade ou outros direitos sobre os referidos ativos;

e) "Produto do crime" - os bens de qualquer tipo, provenientes, direta ou indiretamente, da prática de um crime;

f) "Bloqueio" ou "apreensão" - a proibição temporária de transferir, converter, dispor ou movimentar bens, ou a custódia ou controle temporário de bens, por decisão de um tribunal ou de outra autoridade competente;

g) "Confisco" - a privação com caráter definitivo de bens, por decisão de um tribunal ou outra autoridade competente;

h) "Infração principal" - qualquer infração de que derive um produto que possa passar a constituir objeto de uma infração definida no Artigo 6 da presente Convenção;

i) "Entrega vigiada" - a técnica que consiste em permitir que remessas ilícitas ou suspeitas saiam do território de um ou mais Estados, os atravessem ou neles entrem, com o conhecimento e sob o controle das suas autoridades competentes, com a finalidade de investigar infrações e identificar as pessoas envolvidas na sua prática;

j) "Organização regional de integração econômica" - uma organização constituída por Estados soberanos de uma região determinada, para a qual estes Estados tenham transferido competências nas questões reguladas pela presente Convenção e que tenha sido devidamente mandatada, em conformidade com os seus procedimentos internos, para assinar, ratificar, aceitar ou aprovar a Convenção ou a ela aderir; as referências aos "Estados Partes" constantes da presente Convenção são aplicáveis a estas organizações, nos limites das suas competências.

De forma similar podemos encontrar no Protocolo Adicional a Convenção de Palermo uma norma explicativa, como pode ser observada no seu art. 3º:

a) por “tráfico de pessoas” entende-se o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ante a situação de vulnerabilidade da vítima, ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos;

b) o consentimento dado pela vítima de tráfico de pessoas, tendo em vista qualquer tipo de exploração descrito na alínea “a” do presente artigo, será considerado irrelevante se tiver sido utilizado qualquer um dos meios referidos na mesma alínea;

c) O recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de uma criança para fins de exploração serão considerados “tráfico de pessoas” mesmo que não envolvam nenhum dos meios referidos da alínea “a” do presente artigo;

d) o termo “criança” significa qualquer pessoa com idade inferior a dezoito anos. Já no Estatuto da Criança e do Adolescente, criança tem até 12 anos incompletos. De 12 a18 anos, período da adolescência. Acima dos 18 anos, fase adulta.

Observe-se que o consentimento da vítima de tráfico de pessoas, tendo em vista o assinalado na sua definição, não terá eficácia quando da utilização de qualquer dos meios ali mencionados[14]


4 VITIMOLOGIA

O que vem a ser a vitimologia? As definições a seguir transcritas prendem-se a observações baseadas na visão social de seu autor, apresentando, diante disto, variações específicas do momento social de sua elaboração.

O autor mexicano Luis Rodrígues Manzanera indica ser ela o estudo científico da vítima, que não deve esgotar-se com o estudo do sujeito passivo do crime, mas também ater-se a outras pessoas que são atingidas e a outros campos não delituosos, como pode ser o campo dos acidentes[15].

Para Ramírez González, a vitimologia é o estudo psicológico e físico da vítima que, com o auxílio das disciplinas que lhe são afins, procura a formação de um sistema efetivo para a prevenção e controle do delito[16].

Segundo Eduardo Mayr, vitimologia é o estudo da vítima no que se refere a sua personalidade, quer do ponto de vista biológico, psicológico e social, quer do de sua proteção social e jurídica, bem como dos meios de vitimização, sua inter-relação com o vitimizador e aspectos interdisciplinares e comparativos[17].

Já Fiorelli e Mangini conceituam vitimologia da seguinte forma:

É a ciência que estuda a vítima sob os pontos de vista psicológico e social, na busca do diagnóstico e da terapêutica do crime, bem como da proteção individual e geral da vítima. Tem por objetivo estabelecer o nexo existente na dupla penal, o que determinou a aproximação entre a vítima e delinquente, a permanência e a evolução desse estado[18].

Por seu turno, Sandro D’Amato Nogueira afirma que vitimologia é “uma ciência que nasceu a princípio incorporada à criminologia e tem como sua principal meta estudar a vítima, seu comportamento, sua participação no delito sofrido, suas tipologias, bem como a possível reparação de danos por elas sofridos” [19].

A definição mais adequada ao momento social do Brasil pode ser considerada aquelas elaboradas por quem vivencie o aspecto social nacional, cabendo, neste caso, as apresentadas por Eduardo Mayr e Fiorelli e Mangini, conforme descrição acima. 

4.1 OBJETO DA VITIMOLOGIA

Os estudos dos fenômenos vitimológicos enfocam as pessoas ou grupos sociais ofendidos por ações delituosas de natureza criminal, as vítimas de ilícitos civis e as vítimas de outros fenômenos sofrimentos geradores do sofrimento humano. Separovic faz um amplo estudo da vitimologia à luz das ciências sociais, no qual afirma que:

A vitimologia deve ter como meta a orientação para a maior proteção dos indivíduos. O seu propósito deveria ser contribuir, tanto quanto possível, para tornar a vida humana segura, principalmente a salvo de ataque violento por outro ser humano:

1- Explorando meios para descobrir vítimas latentes ou em potencial e situações perigosas que levam à morte, lesões e danos à propriedade.

2- Provendo direitos humanos para os que sofrem em resultado de ato ilegal ou de acidente.

3- Incentivando as pessoas e as autoridades nos seus esforços para reduzir os perigos e estimulando novos programas para prover condições seguras de vida.

4- Provendo meios para pesquisa na área de segurança humana, incluindo fatores criminológicos, psicológicos e outros, e desenvolvendo métodos e enfoques inovadores para tratar de segurança humana.

5- Promovendo um programa efetivo não só para proteger a sociedade de atos ofensivos, através de condenação, castigo e correção, mas também proteger as vítimas reais e em potencial de tais atos.

6-Facilitando a denúncia de atos vitimizadores, o que contribuirá para atingir o objetivo de prevenção de danos futuros[20].

4.2 VÍTIMAS POTENCIAIS DO TRÁFICO

Em levantamento realizado em 19 estados brasileiros, visando a investigar as vítimas preferenciais para o tráfico de pessoas, ficaram patentes que aquelas que se destinam ao tráfico para fins sexuais são recrutadas preferencialmente entre mulheres e adolescentes, afrodescendentes, na faixa entre 15 e 25 anos. As mulheres são as da classe menos favorecida, com baixa escolaridade, residentes na periferia dos grandes centros urbanos, desprovidos de saneamento básico, sem emprego fixo, possuindo um filho e que residem com algum familiar[21]. Observa-se que muitas dessas mulheres já possuíram passagem pela prostituição.

Também foi constatado que estas mulheres têm experiência em atividades de baixa renda, sem necessidade de algum conhecimento específico, tais como prestação de serviços domésticos e do comércio, funções de baixa remuneração, sem carteira assinada, com alta rotatividade, obrigadas a uma jornada cansativa de trabalho diário, sem perspectiva de progressão funcional e, em consequência, de melhoria econômica.  Constata-se, também, que as mulheres e adolescentes vítimas de tráfico para fins sexuais já sofreram algum tipo de violência no seio familiar e fora do ambiente familiar em locais de internação, colégio, abrigos etc.[22]. Em função de sua formação familiar, essas pessoas apresentam-se desestruturadas em suas bases, por terem sofrido violência social e por serem, portanto, presa fácil para a ação dos exploradores que se apresentam como ajudadores, na perspectiva de uma vida melhor do que a anterior, tornando-se ainda mais vulneráveis pela falta de ação das redes protetoras[23].

4.3 FATORES QUE VIABILIZAM A MIGRAÇÃO AS VÍTIMAS

A abordagem das vítimas é primordial para o sucesso do aliciador traficante, pois ele se aproveita dos sonhos e/ou da fragilidade das vítimas em busca de uma melhor qualidade de vida, apesar das deficiências intelectuais acima mencionadas. Elas são atraídas pelas as artimanhas criadas pelo traficante, tentando alcançar uma melhoria de vida para si e seus familiares[24].  Até mesmo sabendo vão viver na prostituição, as vítimas acalentam um pensamento positivo, acreditando que não serão molestadas, e acabam enganadas e submetidas a tratamento subumano, como maus-tratos. Muitas são mantidas em cárcere privado para o exercício da prostituição[25]

A falta de recursos econômicos tem sido fator primordial para permitir a ação do traficante aliciador, pois não havendo possibilidade de melhor sobrevivência no local de moradia, desperta o interesse em ganho “fácil” e rendoso, sem considerar os riscos inerentes à aceitação do serviço. A oportunidade de trabalhar no exterior, recebendo em moeda teoricamente mais forte que a nossa, por acreditar que as oportunidades são maiores que no nosso país, também é outro facilitador para a atuação do traficante.  Prevalece a ilusão de que a vida no exterior trará uma condição social mais relevante daquela em que estão no momento presente, submetidas à pressão existente no ambiente social em que vivem [26].

Outro fator relevante é o estigma da opressão daquelas que já vivem na prostituição, ao considerar uma oportunidade o afastamento do habitat para outro ambiente desconhecido onde possam conseguir um status diferenciado do anterior. Algumas destas vítimas se arriscam a viver em outro local, fora do país de origem, mesmo desconhecido, independente de alcançar os objetivos financeiros[27]. Por faltar um ambiente emocional equilibrado em seu local de origem, tentam no exterior conseguir esta estabilidade, onde acreditam que receberão afeto, amor e compreensão, todos negados em seus lares. 

Estes são alguns dos fatores que levam ao sucesso do aliciador na conquista da vítima para o tráfico.

4.4 POSSÍVEIS DANOS SOFRIDOS PELAS VÍTIMAS

Conforme estudo promovido pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), o tráfico de pessoas para fins de exploração sexual pode levar a diversos danos, entre eles, o psicológico, o físico, o legal, social e o econômico[28].

Aqueles que afetam a psique são decorrentes de negligência, confinamento e violência, podendo desenvolver sintomas da síndrome pós-traumática, depressão e tendências suicidas, dificuldades de interagir socialmente e formar relações de afeto.

Os efeitos físicos, conforme a OIT, são em decorrência do confinamento, uso forçado de drogas, abortos compelidos, privação de alimentação e sono; no sistema reprodutor, em decorrência de doenças sexualmente transmissíveis, pulmões, por falta de alimentação adequada, excesso de umidade nos locais das atividades, tabagismo incentivado para suprir carências, e sistema imunológico, em razão da contaminação pelo vírus da AIDS[29].

Em seu aspecto legal a OIT apresenta a condição de migrante não documentado no país de destino da exploração e autoria de crime, no caso de a prostituição ser considerada crime no país de destino, levando por vezes à perda da guarda dos filhos tidos durante o período de exploração sexual, isto em face de seu encarceramento, deportação, expulsão do país para onde foi traficada[30].

No aspecto social a vítima do tráfico fica alijada do meio social, face ao seu isolamento, a sua desconfiança com o ambiente onde vive, além de sua timidez.

Economicamente falando, a vítima do tráfico fica em poder dos traficantes, sempre endividada, sofrendo a perda de seus bens pessoais, tendo a exclusão dos serviços educacionais e sociais. Privada, portando, de um meio da sair daquele ambiente promiscuo e sem progresso[31]

4.5       FATORES QUE FACILITAM O SUCESSO DO TRÁFICO           

Conforme já mencionado, a ausência de oportunidades de trabalho pela falta de qualificação e o desejo de uma rápida ascensão social alavancam o direcionamento das vítimas em direção aos traficantes[32].

A discriminação de gênero, no que se refere à mulher ser considerada socialmente como um objeto sexual, e não como sujeito com direito à liberdade, favorece toda forma de violência sexual.

A percepção do homem como o provedor emocional e financeiro estabelece relações de poder entre ambos os sexos e entre adultos e crianças. Nesse contexto, mulheres, tanto adultas como crianças e adolescentes, são estimuladas a desempenhar o papel social de atender aos desejos e demandas do homem ou de quem tiver alguma forma de poder hierárquico sobre elas[33].

Outros países que não o nosso, onde há instabilidade política, econômica e civil, como nos países do Leste Europeu, favorecem aos abusos sexuais forçados. Outro ponto de desestabilização é a violência doméstica, tanto física, como psicológica e sexual, permitindo a ação do aliciador para o tráfico.

Pode-se considerar também como meio facilitador da ação do traficante aqueles que tentam entrar em outros países desprovidos dos documentos exigidos, caindo nas mãos dos chamados “coiotes” que, se aproveitando da condição de submissão, exploram aqueles que tentam se dirigir ao país de seus sonhos. Aqueles que se aventuram ao turismo sexual, mulheres e adolescentes, ficam de uma forma ou outra, ligados aos traficantes e, quando desejam retornar ao país de origem, se valem dos traficantes.

As leis e o sistema judicial, em face da burocracia excessiva e da atividade judicial morosa, atrapalham o combate ao tráfico.

4.6 O TRÁFICO NO BRASIL

A participação do Brasil nas redes internacionais do tráfico de pessoas é favorecida pelo baixo custo operacional, pela existência de boas redes de comunicação, de bancos e casas de câmbio e de portos e aeroportos, pelas facilidades de ingresso em vários países sem a formalidade de visto consular, pela tradição hospitaleira com turistas e pela miscigenação racial[34].

Levantamento do Ministério da Justiça, realizado no âmbito de projeto implementado com o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC), apurou que os estados onde a situação é mais grave são Ceará, São Paulo e Rio de Janeiro, por serem os principais pontos de saída do país, e Goiás. No caso deste último, onde o aliciamento acontece principalmente no interior, profissionais que atuam no enfrentamento ao tráfico de pessoas acreditam que as organizações criminosas se interessam pela mulher goiana pelo fato de seu biótipo ser atraente aos clientes de serviços sexuais na Europa.

Inquéritos policiais, denúncias de organizações não-governamentais (ONGs), registros em órgãos governamentais, entrevistas com vítimas e notícias veiculadas na mídia indicam, no entanto, que o tráfico interno é praticado no Brasil com a mesma intensidade do tráfico internacional. Muitos desses casos ficam camuflados sob outras violações da lei, como sequestro ou lenocínio (crime pelo qual uma pessoa fomenta, favorece ou facilita a prática de prostituição). O tráfico interno com o objetivo de fornecer mão de obra para o trabalho forçado na agricultura, deslocando as vítimas de áreas urbanas para áreas rurais, também é um problema grave no país. A situação ganha ainda maior gravidade quando se verifica que a Organização Internacional do Trabalho estima que 25 e 40 mil brasileiros são submetidos a trabalho forçado.

O Brasil também é um país receptor de vítimas do tráfico. Elas vêm principalmente de outras nações da América do Sul (Bolívia e Peru), como também da África (Nigéria) e Ásia (China e Coreia). A maioria acaba submetida a regimes de escravidão nas grandes cidades, como São Paulo, e fica confinada em oficinas de costura, fazendo jornadas de mais de 15 horas e sendo obrigada a dormir no próprio local de trabalho. A Pastoral do Migrante calcula que 10% dos imigrantes bolivianos ilegais que chegam a São Paulo terminam nessas condições.

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Sobre o autor
David Augusto Fernandes

Mestre e Doutor em Direito. Professor Adjunto da Universidade Federal Fluminense.

Informações sobre o texto

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