INTRODUÇÃO
Para toda ação humana que se pratica, existem, em grande escala, normas que as regulam, que lhes dão licitude ou ilicitude. Diante da importância dessas normas em nossa sociedade é necessário analisarmos sua eficácia e sentido em nosso meio. Qualquer norma tem alguma finalidade, teoricamente benéfica, sendo essa a sua função, trazer melhorias em prol de um coletivo.
Segundo uma leitura Constitucional, verifica-se uma clara preocupação em lidar com a igualdade em nosso ordenamento. O problema é que em diversos momentos, essa igualdade, se mostra uma falácia, por insistentemente nosso sistema (realidade prática) privilegiar alguns em detrimento de outros, indo totalmente de encontro com as garantias positivadas em nossa Carta Magna.
Um dos grandes problemas atuais é a clara banalização dos projetos de lei, alguns legisladores iniciam projetos de lei em busca de uma mera promoção individual, sem preocupação com sua real função social. Exemplos são vários, projetos de leis ordinárias totalmente desnecessárias, onde há uma futilidade social visível. O que não pode acontecer, nossos representantes devem utilizar ao máximo as ferramentas que têm em mãos para o melhor proveito comum, fazer com que o voto de confiança de um eleitor tenha uma resposta merecida e a altura.
Iremos, no presente estudo, visualizar que as leis devem, portanto, ter algum sentido proveitoso, efetivo, para a sociedade em que esteja inserida, e que esse benefício se paute na igualdade.
Questionar-se-á se a criação e utilização de certas normas estão sendo realmente proveitosas e, no caso, se há equidade, se sua aplicação é comum a todos os cidadãos, se há alguma segregação ou preconceito em sua utilização. Tal inquietação é necessária dada à importância das normas em nosso meio, como dito anteriormente. Então, o estudo é indispensável para todos que estão inseridos nessa sociedade e devem respeitar tais normas vigentes.
Nesse viés, será apresentado o instituto do arrependimento posterior, utilizado de forma comparativa e contraposta a lei chamada de Refis da Crise, à luz desse Estado Democrático de Direito, analisando a aplicabilidade social de cada um segundo o princípio de igualdade, e há uma estigmatização da pobreza.
1 ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Cabe inicialmente uma breve exposição histórica para uma melhor compreensão geral do assunto. Tratando-se de uma ideologia atual de grande importância social, que com o tempo teve seu desenvolvimento perceptível, evoluindo de acordo com seu estágio cultural/social.
1.1 Estado
Imprescindível entender que a ideia de Estado é longínqua, tendo o seu surgimento se tornado tema de grande debate entre os doutrinadores do meio. Sabe-se ao certo que desde a Grécia Antiga existem as pólis, que seria um meio de organização social, muito menos complexa que o Estado, mas relevante importância.
Fato interessante é a relação das pólis com a liberdade, como referenciado por Arendt , o que distingue o convívio dos homens na pólis de todas as outras formas de convívio humano que eram bem conhecidas dos gregos, era a liberdade. Em outro momento completa que quem deixava sua pólis ou era dela degredada, perdia o único espaço no qual poderia ser livre, se privando da companhia daqueles que eram seus iguais.
Vale acrescentar que existem duas correntes quanto ao surgimento do Estado. A primeira – minoritária – relata que experimentalmente o Estado surgiu a um bom tempo, com base nessa experiência real nas diversas épocas, seja no período antigo, que efetivava a teocracia como base, até o período medial, com a fragmentação de poder e aumento de conflitos pelo mesmo. A segunda – majoritária – diz que o Estado nasce realmente no período moderno. Candido diz que em relação ao surgimento do Estado Moderno há algumas discordâncias, para Weber o Estado surgiu da política e do conflito bélico, enquanto para Marx a causa do surgimento do Estado Moderno seria o econômico.
Importante agora é entender que esse Estado se modificou, com o tempo tomou facetas diferentes, sua cara e finalidade/objetivo se transformaram, e nos próximos tópicos se conhecerá dois momentos desse Estado que vem nos acompanhado a um longo tempo.
1.2 Estado Social de Direito e sua importância
O Estado social de Direito teve grande relevância como fase de transição para o conhecido Estado Democrático de Direito.
Para Verdú tal Estado se pautava na manutenção da justiça social. Isso quer dizer que seu foco estava na preservação de meios que efetivamente gerassem benefícios sociais. Sua clara contribuição ao Estado de Direito foi efetivar os Direitos Humanos, agora tutelados pelo Estado. Como dito por Martinez que veio por meio de três documentos deveras importantes, a Constituição de Weimar de 1919, a Constituição Mexicana de 1917 e a Declaração de Direitos do Povo Trabalhador e Explorado na Rússia de 1918.
Sua criação não seria um meio de opressão a liberdade , o momento exigiu que a liberdade deixasse de ser liberdade classista para adaptar-se à ideia de liberdade em uma sociedade justa e livre. Esse ponto que nos chama atenção, e que merece foco, esse Estado não quer restringir a liberdade, quer uma relação mais justa entre os indivíduos, dando a estes oportunidades semelhantes, em celebração a uma maior equidade social, porém é falso relatar que essa sociedade irá, em plenitude, se desenvolver em uma igualdade efetiva, completa Verdú dizendo que isso existiria na atmosfera irrespirável da utopia.
Um ponto importante é tocado por Silva , quanto à ambiguidade da palavra social, que traria consigo sentidos diversos e com isso conflitante. A Alemanha Nazista, a Itália fascista e até o Brasil, desde a Revolução de 30, se diziam Estados Sociais.
Enfim, iremos passar para o tema de grande importância ao estudo, que é o Estado Democrático de Direito. O lado igualitário do termo será exposto para após começarmos o enfrentamento dos temas.
1.3 Estado Democrático de Direito e a Igualdade
Devemos, a priori, nos atentar em dizer que esse momento não seria uma mera junção do Estado de Direito e o Estado Democrático, segundo Silva seria “a criação de um conceito novo, que leva em conta os conceitos de elementos componentes”. Um deles vem da grande influência do Estado Social de Direito, supramencionado, que seria aquela vontade constitucional para a realização deste Social . De forma sublime, Lenio Luiz Streck configura que o Estado Democrático de Direito:
“[...] tem como questão fundamental a incorporação efetiva da questão da igualdade como um conteúdo próprio a ser buscado garantir através do asseguramento mínimo de condições mínimas de vida ao cidadão e à comunidade”.
Há, portanto, uma grande ligação entre Estado Democrático de Direito e a igualdade. Para melhor entendermos devemos nos atentar à Constituição Federal da República de 1988 , que em seu artigo 1º configura o Estado Democrático de Direito como fundamento elementar. Silva faz uma comparação desse trecho da nossa Constituição com a Constituição portuguesa, relatando que está positivou como democrático o Direito e não o Estado. Em sua visão a maneira correta foi utilizada no Brasil, quando qualifica o Estado como democrático, sendo assim, ocorre uma irradiação instantânea a todos os elementos constitutivos do Estado, abancando, portanto, também a ordem jurídica.
Posto isso, devemos entender que inicialmente, antes de qualquer ação, nossas normas devem se atentar a igualdade, isso quer dizer que deve-se analisar o impacto social quanto à desigualdade existente para programar qualquer norma.
Feita essa ligação com nossa Carta Magna fica clara a intenção da constituinte de buscar uma democratização não apenas legal em nosso país. Porém, a prática pode não estar se atentado a esse ponto primordial de nosso ordenamento, isso será posto em tela na seguinte contraposição de leis no presente estudo.
2 INSTITUTO DO ARREPENDIMENTO POSTERIOR
Feita essa breve conceituação, cabe realizar a explicação do que seria um dos temas a serem postos em embate. Sendo esse um instituto penal, mais especificamente encontrado no artigo 16 do Código Penal Brasileiro, com enunciado:
Art. 16 - Nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, reparado o dano ou restituída a coisa, até o recebimento da denúncia ou da queixa, por ato voluntário do agente, a pena será reduzida de um a dois terços.
O instituto do arrependimento posterior é interpretado com causa de diminuição de pena para o individuo, que seguindo os referenciados requisitos, terá sua condenação minorada de um a dois terços na sentença. Sua justificativa geral está no estímulo social à reparação do dano causado.
Para que a diminuição ocorra o indivíduo infrator deverá se atentar para alguns pontos relevantes. Destarte o crime cometido não deverá ter qualquer previsão quanto à prática de violência ou grave ameaça. Nesse sentido Greco aduz que:
No furto, por exemplo, é perfeitamente viável a aplicação do arrependimento posterior, mesmo que tenha sido ele qualificado pela destruição ou rompimento de obstáculo (art. 155, § 4º, I), uma vez que a violência repelida pelo art. 16 é aquela dirigida contra a pessoa, e não contra a coisa.
Assim, crimes mais graves, que tipifiquem a atuação por vis absoluta ou vis compulsiva não serão passíveis de diminuição pelo referenciado artigo.
Outro ponto descriminante é o momento de reparação do dano causado ou a restituição da coisa. Para Greco será possível em duas fases. A primeira quando a restituição da coisa ou a reparação do dano é feita ainda na fase extrajudicial, isso quer dizer, no decorrer das investigações policiais, por outro lado, poderá ocorrer após o encerramento do inquérito policial até o recebimento da denúncia ou queixa pelo juízo competente.
Seguindo com o instituto, verificamos outras vicissitudes, o ato de restituir deve ser de forma voluntária do agente, não sendo necessário saber ou identificar os meios que o levou a atitude de restituir. Então, se sua intenção foi meramente ser agraciado pelo dispositivo, sua diminuição será efetuada. O TJSP em 26/10/88 já havia se posicionado em relação à questão, dissertando que o ato de restituição não necessita ser espontâneo. Frisa-se que caso o indivíduo seja pego, por exemplo, em flagrância presumida , com os produtos do crime, não se caracterizará o arrependimento posterior.
Um ponto controverso na doutrina é a questão da presença do autor do fato. Se o próprio indivíduo tem que efetivar a restituição ou o reparo, ou se há a possibilidade de terceiro representá-lo. Filiamo-nos ao entendimento que a presença do indiciado ou ator do fato é dispensável, resguardando assim o interesse de ambas as parte. Porém, cabe certa ressalva pessoal, essa falta do mesmo deve ser devidamente motivada, passando por um juízo de proporcionalidade, assim, deverá haver justa causa para o não cumprimento presencial.
A reparação deve ser total, não há possibilidade de uma reparação parcial do dano causado ou da restituição da coisa. Entende-se que quanto à reparação do dano é imprescindível o conformismo da vítima sobre o quantum a ser ressarcido.
Por fim, é pacífica a aplicação do instituto para os crimes culposos, portanto, a violência ou grave ameaça estão diretamente ligados ao dolo. Se um indivíduo que pratica um homicídio culposo na direção de veículo automotor (art. 312, CTB) indeniza os familiares da vítima de forma extrajudicial, poderá sim ser beneficiado pela minorante.
Dadas as exposições gerais, vislumbra-se que tal instituto vê na reparação um meio de melhor solucionar esses casos que não envolvam qualquer violência por parte do autor do fato ou uma atuação de forma culposa, posição essa louvável, que será contraposta a lei do Refis da Crise.
3 REFIS DA CRISE
O instituto nasceu com a Lei n° 9.964 em 2000 que foi alterada posteriormente pela lei 10.189 de 14 de fevereiro de 2001, podendo ser chamado de REFIS ou Programa de Recuperação Fiscal. Em linhas gerais, seria a faculdade de uma pessoa física ou jurídica saldar seu débito com a Receita Federal do Brasil e Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional por meio de um parcelamento especial.
Pimenta aduz que “a concessão desse parcelamento importa no cumprimento de obrigações pelo devedor, à lei criou a figura da exceção, verdadeiro ato administrativo [...]”.
Ainda quanto ao projeto inicial, fica identificado nos artigos da Lei 10.189, e comentado por Oldoni e Silva , a extinção de punibilidade do agente que adimpli a dívida em qualquer fase do processo.
Art. 9. É suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nos arts. 1º e 2º da Lei 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos arts. 168A e 337A do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no regime de parcelamento.[...]§ 2º. Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos neste artigo quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios.
Ainda por um aspecto básico, Pimenta cita algumas dependências para que o REFIS seja aplicado. Deve, inicialmente, existir a manifestação de vontade do contribuinte em adimplir a dívida, após, tal ato irá ser apreciado por um Comitê Gestor para deliberação ou não. Com a deliberação em mãos a dívida será parcelada como uma obrigação do contribuinte, pagando-a com base para cálculo na alíquota. Além disso, essa dívida deve pré-existir a adesão/parcelamento do montante.
Especificamente o Refis da Crise surge no ano de 2009, pela Lei 11.941, trazendo algumas peculiaridades. O nome advém do momento em que surge o novo desdobramento, que seria a crise mundial que abarcou diversas empresas pelo Brasil e pelo mundo entre 2008 e 2010, e que ainda tem reflexos na economia atual.
Quanto a suas peculiaridades Simone e Alvarenga relatam que:
[...] a Lei 11. 941/09 prevê que a opção pelos parcelamentos acima indicados não importará confissão irrevogável e irretratável de todos e quaisquer débitos em aberto, mas apenas daqueles expressamente indicados pelo contribuinte para compor os referidos parcelamentos. Ainda, vale mencionar a possibilidade de (i) liquidação dos valores correspondentes às multas de mora ou de ofício e a juros moratórios, inclusive as multas referentes a débitos inscritos em Dívida Ativa, mediante a utilização de prejuízo fiscal e base de cálculo negativa da CSL; e (ii) utilização de depósito judicial para a quitação de débitos, ocasião em que serão aplicadas as reduções acima descritas e o saldo remanescente liberado em favor do contribuinte.
O indivíduo que frauda a União terá a possibilidade de adimplir sua dívida de diversas formas, tendo o prazo máximo de 180 meses para o parcelamento, com as respectivas multas, juros e encargos.
Vale citar a Lei 12.865/13, recentemente criada para ampliar a aplicação do Refis da Crise:
Além da reabertura dos prazos de programas anteriores, a Lei 12.865/13 institui novos programas de parcelamento específicos. O primeiro deles, previsto no seu artigo 39, estabelece programa de parcelamento destinado exclusivamente ao pagamento de débitos de PIS e Cofins de instituições financeiras e companhias seguradoras, vencidos até 31.12.2012. A adesão a esse programa de parcelamento deverá ser efetuada até 29.11.2013 e independerá de apresentação de garantias.
Mais um meio de parcelamento de dívidas com o Estado. Dando maior comodidade aos contribuintes brasileiros irregulares.
3.1 Viés Hermenêutico
Vale desenvolver esse tópico inicialmente com a fala de Christine Mendonça , que aprofunda o tema com relação à crise da hermenêutica jurídica.
O primeiro ponto a fazer-se uma ligação é com o direito positivo, fonte do positivismo jurídico, que teve como grande representante Hans Kelsen. Um ponto da teoria é a questão sistêmica do ordenamento, tendo como base a Constituição Federal, formado por normas superiores e normas inferiores, que retiram fundamento de validade daquelas. Nesse sentido a norma do Refis da Crise e suas antecessoras estão dentro do ordenamento, e tem relação com as outras normas .
Consequente, com sua criação surge uma norma jurídica, que advém de uma vontade do legislador, ligada com uma descrição de um evento do mundo social . O que se conclui, portanto, é que a criação de uma norma, que é válida, deve se pautar de alguma relação/sentido social, devidamente defendido constitucionalmente.
3.1.1 Dworkin
Identificam-se aspectos relevantes na fala do ilustríssimo autor Dworkin quanto à questão em embate, só que na óptica de um juiz. Dworkin é muito claro em dizer que o direito deve ser um conjunto de normas válidas, cumulado com princípios que nortearão essas normas, seriam juízos que não são regras, como exposto por Pedron:
Todavia, paralelamente às regras, pode-se perceber que os juristas utilizam um outro standard normativo, os princí¬pios – compreendidos aqui em seu sen¬tido lato, que abrangem tanto os princí¬pios propriamente ditos quanto as cha¬madas “diretrizes políticas”.
Esses princípios são tão importantes quanto às normas, Sgarbi relata que Dworkin faz a aproximação do direito com a moral por meio dos princípios.
Diante disso, Dworkin afirma que cabe ao magistrado encontrar a resposta mais justa, assim, o mesmo tem um compromisso moral na busca a tal resposta. Por esse viés, Dworkin cita que os juízes se baseiam e devem basear seus julgamentos de casos controvertidos em argumentos de princípio político, mas não em argumentos de procedimento político.
Posto esse compromisso, o magistrado deve procurar a resposta mais justa que existe para o caso. Partindo desse pressuposto, se colocado um caso que envolva a aplicação do Refis da Crise, em contraposição com o instituto do arrependimento posterior, a frente de um juiz, o que o mesmo deverá decidir?
Será que utilizando-se de princípios que versem sobre igualdade, discursos morais e visíveis desigualdades sociais, pode-se verificar que a aplicação de tal normal é amoral, injusta?
Abarcados os diversos pontos, em um mesmo ordenamento, iremos partir para as críticas e incoerências das duas normas, tentando entender o sentido de cada uma, e principalmente verificar se estão seguindo um dos grandes pontos do Estado Democrático de Direito, que é a igualdade e se a criminologia crítica tem algo a nos acrescentar sobre o tema.
4 ARREPENDIMENTO POSTERIOR X REFIS
Esse será um momento de analisarmos os dois pontos e juntos tirarmos nossas conclusões. Colocando frente a frente o instituto do arrependimento posterior, presente em nosso Código Penal, e o programa de recuperação fiscal, criado no ano de 2000, em meio ao mandado do Presidente da República Fernando Henrique Cardoso, e seus desdobramentos.
É importante aduzir a complexidade de contrapor normas de matérias distintas, haja vista uma remeter-se a matéria exclusivamente penal, enquanto a outra versa sobre matéria tributária. Porém, analisando nosso ordenamento como um conjunto e segundo uma Constituição da República que tem como prisma um ideal de igualdade explicitamente difundido, devemos pesquisar se realmente uma norma está se portando de maneira desigual em comparação com outra, isso em prol de uma segurança jurídica.
Nesse diapasão, tomando por base a fala de Oliveira e Ferreira, poderemos iniciar o debate quanto à desigualdade:
Alguns conceitos de estratificação social e de classes sociais podem ser utilizados para expor as contradições e desigualdades encontradas em nossa sociedade: a estratificação econômica é determinada pelos bens materiais, a estratificação política é instituída pelo poder e a profissional pelo valor atribuído a determinadas profissões desfavorecendo outras. Quando uma pessoa ou um grupo de pessoas melhora o seu poder aquisitivo ocorre uma mudança social definida como mobilidade social (grifo nosso).
Ao citar tal passagem, tenta-se compreender os motivos, que são deveras extensos da desigualdade. Será que existirá algum modelo correto que faça acabar com ela? Será que conseguiríamos viver sem ela? São questionamentos que não vem ao caso, apesar do amplo campo de discussão.
O que vale buscar é se essa desigualdade, relacionada com a situação econômica, citada acima, tem alguma semelhança com o embate em questão, pois fica claro dizer que existe algum privilégio dado ao credor que pode financiar sua dívida de maneira agradável e com isso não sofrer nenhuma sanção e estigma penal.
4.1 O “Benefício” do pobre e do rico
Analisando o instituto do arrependimento posterior, verificamos superficialmente ser um benefício dado ao infrator que não agiu com violência ou grave ameaça e espontaneamente restituiu o lesado. Vale dizer que a maioria dos casos seriam crimes “pequenos”, de menor potencial ofensivo ou com pena não elevada, passíveis, até, da arguição do princípio da insignificância, que a jurisprudência e doutrina vêm utilizando na prática.
Esse agente, que “conturba” e “amedronta” a vida em sociedade, por ter praticado um furto, por exemplo, de duas barras de chocolate em um supermercado, terá a “graça” de receber um alívio em sua condenação com a restituição ou ressarcimento dessas duas barras.
Portanto, parte-se de um pressuposto que o mesmo passará por toda a degradação do atual sistema jurídico criminal, e ainda terá sua condenação delimitada pelo juízo comum competente. Onde queremos chegar é na comparação da sanção das duas normas postas pelo Estado. Porque vemos que na anteriormente citada, haverá uma clara degradação penal do indivíduo cumulada a uma condenação penal. Em contrapartida a norma do Refis da Crise é vista e aplicada de maneira a diferenciar os cidadãos. Com o surgimento de dívidas de pessoas físicas ou jurídicas com a União, dar-se-á a possibilidade para que tal dívida, advinda de maneira criminosa na maioria dos casos, seja parcelada a gosto do “freguês”.
Em uma comparação de grau é mais interessante para o Estado receber um grande crédito de um devedor de uma forma agradável para o mesmo, sem colocá-lo em uma posição de medo e aviltamento, pois sua sanção com o descumprimento é irrisória, do que não receber a quantia. Isso quer dizer que o agente ou empresa criminosa será isenta de qualquer sanção penal, assim que devidamente feito o total adimplemento do montante.
Tal entendimento só contribui para o que alguns doutrinadores defendem, que seja o atual sistema penal seletivo. Dentre os discursos utópicos do cárcere, encontramos a ressocialização do indivíduo delituoso, e também a prevenção de futuras práticas iguais. Na realidade, o sistema penal, junto com o mecanismo carcerário não segue esse ideal, portanto, esse discurso legitimador se mostra como uma verdadeira falácia social.
Seria apenas uma fala para dar tranquilidade social, um meio de manutenção do poder de um determinado grupo. Assim, como relata Nepomoceno:
[...] é justo afirmar que o sistema penal é seletivo e que esta seleção é realizada nas camadas mais vulneráveis ao próprio sistema, visto que elas não são detentoras de poder político e/ou científico e/ou cultural.
É o que se verifica com o presente debate, uma parte social que consegue se desvencilhar do ius puniende estatal, por meio da sua condição, enquanto outros, os inimigos, são devidamente etiquetados como agentes pré-determinados para sofrer com o falível sistema carcerário estatal.
4.2 Estigmatização: Direito Penal do Inimigo x Homo Sacer atual
Vislumbra-se, portanto, uma norma que foi criada para abarcar todos, o arrependimento posterior, porém a mesma vem sendo aplicada privativamente apenas a certa camada social por se tratar de crimes “menores”, na maioria patrimoniais. Os quais são praticados em grande escala por indivíduos da uma classe mais humilde. Pelo contrário a outra norma tem como fundamento atingir os indivíduos com condições econômicas elevadas, dados os altos valores frutos de atuação criminosa.
É fato que as consequências de ter seu nome inserido no meio repressivo jurídico-criminal são visíveis para toda a sociedade. A estigmatização não tem prazo, os não primários (ou qualquer que teve seu nome envolvido) serão vistos de maneira diferente, assim, suas oportunidades sociais futuras são drasticamente diminuídas.
Alexandre Morais da Rosa , dentre outros autores, são precisos em determinar que a inserção do indivíduo no sistema penal influenciará por todo o restante da sua vida em todos os aspectos sociais. Caso seja parte de um novo processo judicial esses atos passados irão macular sua nova conduta, mesmo não tendo qualquer relação com o fato novo, em análise das circunstâncias (reincidência, antecedentes, conduta social...) do art. 59 do Código Penal Brasileiro, indo de encontro com a ideia do Direito Penal Garantidor. Diante dessa degradação, Günther Jakobs ganhou reconhecimento mundial com sua teoria do Direito Penal do Inimigo. Conceito esse que surge após grandes tragédias terroristas pelo mundo, por exemplo, o atentado de 11/09/2001 nos Estados Unidos da América.
Jakobs se utiliza de uma diferenciação feita por Carl Schimtt, onde a relação entre amigo e inimigo configura uma relação política, não sendo necessário um contrato social. Pois bem, parte-se disso para diferenciar na sociedade quem seria o cidadão e o não cidadão. O cidadão, para ele, seria aquele que tem todos os seus direitos garantidos, pois tem uma situação cognitiva esperada sobre o seu comportamento.
O não cidadão/inimigo, pelo contrário, não oferece essa segurança ou nunca quis participar de tal sociedade, e por isso não tem essas garantias. O que nos importa entender é que esse indivíduo é diferenciado perante o ordenamento, não tem os mesmos direitos, não é um cidadão, seu processo jurisdicional é outro, em comparação com o verdadeiro “cidadão”. Zaffaroni, o ilustre doutrinador, expõe de forma clara quem seriam os inimigos:
O poder punitivo sempre discriminou os seres humanos e lhes conferiu um tratamento punitivo que não correspondia à condição de pessoas, dado que os considerava apenas como entes perigosos e daninhos. Esses seres humanos são assinalados como inimigos da sociedade e, por conseguinte, a eles é negado o direito de terem suas infrações sancionadas dentro dos limites do direito penal liberal, isto é, das garantias que hoje o direito internacional dos direitos humanos estabelece universal e regionalmente.
Veja, o poder está concentrado em um determinado local, com um determinado ciclo de pessoas que irão sempre tentar preservar ao máximo esse monopólio. Destarte, quem não estiver nesse meio, ou for uma ameaça a essa preservação, será um inimigo, que, consequentemente, não é visto como igual, pelo contrário, seria um erro social.
Hoje a realidade se pauta em uma ideia de exceção permanente, onde a separação entre amigo-inimigo é bem clara na sociedade. Vários ordenamentos pelo mundo utilizam de forma explicita tal exceção, sendo que o Brasil não fica para trás.Nessa linha encontramos a ideia de homo sacer, pena do Direito Romano que tem repercussão – de forma comparada – até a atualidade, como Carvalho demonstra:
A institucionalização de um regime de emergência permanente, no qual o Estado atua sem limites, ressuscita o espectro do Homo Sacer, ao qual a vida humana aparece nua, submetida ao arbítrio do poder soberano que decide discricionariamente o momento pelo qual a vida deixa de ser politicamente relevante. O Homo Sacer, no direito romano, representava um homem julgado pelo povo por um delito, mas que, embora não sendo lícito sacrificá-lo, quem o mata não seria jamais condenado por homicídio.
Não há como discordamos da relação feita entre o inimigo (homo sacer), com o tratamento dado a certos agentes sociais, que sejam os mais desfavorecidos, concentrando o mecanismo repressor nos pobres e negros. O Estado em nenhum momento, efetivamente, se preocupa com a vida desses indivíduos, pelo contrário, não lhes faz diferença. Vide a atual condição do sistema público de saúde brasileiro, sem mencionar a estrutura de educação, que cada vez mais traz vergonha a toda sociedade.
A vida desses indivíduos não é preservada, haja vista não ter fundamento para que o mecanismo do poder se importe com a “insignificante” existência dos mesmos. Essa é a conclusão real, e, portanto, a relação feita com os dois institutos. Proteção máxima pra quem é “cidadão”, e indiferença para quem não é.