A questão da ultra - atividade das normas coletivas não é nova nos pretórios trabalhistas. A despeito de tal constatação, me veio a lembrança de uma frase lapidar do professor Rodrigues Pinto, quando em curso preparatório para a magistratura do trabalho, pontificou, no alto de sua experiência acadêmica: " o Direito é uma ciência ruminante".
Deveras, como é inerente às ciências sociais, a correta compreensão do sentido e da finalidade de uma norma, dentro das complexas relações intersubjetivas, não pode ser, na maioria das vezes, compreendidas numa primeira análise e estudo dos fenômenos jurídicos.
É imprescindível que operador do direito tenha esta consciência, para que, sem vaidade, possa sempre, se enxergar como eterno estudante, e assim, fazer uso da curiosidade inerente das primeiras descobertas, que nos levam aos questionamentos, de modo a possibilitar uma continuada auto-indagação, porque o saber somente se concretiza, verdadeiramente, no estudo diário e permanente.
Motivada por tal empolgação, é que me ponho a refletir acerca do instigante tema relativo à ultra-atividade das normas coletivas e suas conseqüências nas relações de emprego.
2. Os tipos de cláusulas existentes nos instrumentos de auto composição e a limitação da ultra-atividade às cláusulas normativas
A questão da ultra-atividade das normas coletivas jamais pode ser examinada, sem que se proceda à necessária separação entre as espécies de preceitos existentes no bojo de uma convenção coletiva ou de um acordo coletivo do trabalho. Isto porque os produtos do processo de auto composição geram dois tipos de cláusulas, cuja especificidade do conteúdo acarretará conseqüências distintas, em face do fenômeno temporal que estamos a examinar.
Sérgio Pinto Martins [1], em rápidas cores, pinçou a diferenciação acima referida, nos seguintes termos:
"As cláusulas das normas coletivas podem ser divididas em: a) obrigacionais; b) normativas.
O conteúdo obrigacional é constituído das cláusulas que tratam de matérias que envolvem os sindicatos pactuantes. Versa o conteúdo normativo sobre matéria que atinge os representados, pelos sindicatos e que irá ter reflexos em seus contratos de trabalho.
Conforme Hueck e Nipperdey ( 1963:301-302)
‘a parte normativa é a soma das regras que determinam e afetam diretamente, de acordo com a vontade dos convenentes, o conteúdo, celebração e extinção de relações privadas de trabalho dependente, assim como regulam questões de empresa, de sua organização social, questões que têm por objeto instituições conjuntas das partes do convênio".
Constituem parcelas obrigacionais do convênio coletivo as disposições criadoras de direitos e deveres laborais entre as partes. A regulação das relações jurídicas normativas só pode resultar em estatuir deveres e direitos correspondentes aos estipulantes do convênio coletivo, (Hueck e Nipperdey ( 1963: 315).
Uma cláusula prevendo multa para o sindicato que descumprir a convenção tem caráter obrigacional, pois possui a característica de uma obrigação assumida pelo sindicato como pessoa jurídica. Já uma cláusula que assegura aumento salarial para toda a categoria tem natureza normativa. Não há criação de uma obrigação para o sindicato como pessoa jurídica, mas para os empregadores do setor, e um benefício correlato para os empregados."
Nesta linha doutrinária se insere a abalizada lição do consagrado mestre Pinho Pedreira [2], que, com invulgar maestria, pontifica:
"Cláusulas obrigacionais são as que criam deveres para as próprias partes (p. e. os sindicatos, na convenção), como as sanções por seu inadimplemento, a criação de comissões paritárias para dirimirem divergências quanto à sua interpretação, as que impõem o dever de paz ou de influência junto aos membros da categoria no sentido da observância das obrigações que lhes imponha o acordo ou a sentença, a instituição de processos de recurso e de mecanismos de conciliação e arbitragem a criação de obras sociais, como colônias de férias e creches. É indubitável que as cláusulas dessa natureza não gozam de ultratividade. A sua vigência cessa com a do instrumento normativo que as encerre.
Muito diferente é o que se passa com as cláusulas normativas, aquelas que predeterminam o conteúdo dos contratos individuais de trabalho, salvo quando estes estipulam condições mais favoráveis do que as nelas consignadas."
Esta capital dicotomia, como deixa patente o ensinamento do consagrado jurista Pinho Pedreira, tem influência direta na exegese que se deve fazer em torno do art. 614,§3º da CLT, in verbis:
" Não será permitido estipular duração de Convenção ou Acordo superior a 2 ( dois) anos".
Tal dispositivo consolidado é citado, pelos adeptos da teoria contrária ao efeito ultra-ativo dos acordos coletivos e convenções coletivas de trabalho, como obstáculo ao benefício temporal perseguido pelo trabalhador. Ocorre que a determinação aí contida se dirige, exclusivamente, às cláusulas obrigacionais dos pactos coletivos, deixando, portanto, de abrigar as cláusulas normativas. Estas últimas se encontram submetidas a outro imperativo categórico, de nível constitucional, qual seja o art. 114, § 2º da atual Carta Política.
Esta regra cogente, em sua parte final, dispõe, inflexível e limpidamente, que o poder normativo da Justiça do Trabalho deve respeitar as "...disposições convencionais e legais mínimas de proteção ao trabalho".
Tais disposições convencionais são exatamente aquelas que foram pactuadas pelas vontades convergentes dos organismos sindicais
Desse modo, as cláusulas normativas a que me refiro, uma vez incrustadas ao contrato individual de trabalho, somente podem ser suprimidas, minoradas ou alteradas, por nova disposição edificada em novos frutos decorrentes do processo coletivo de auto-composição, não tendo o poder normativo da Justiça do Trabalho a faculdade de alterar o que já tenha sido atraído para o núcleo do patrimônio jurídico do empregado, como resultado da negociação coletiva.
Este é, inclusive, o pensamento do eminente e respeitável juiz Roberto Pessoa [3], que nesta direção já se manifestou, quando do desempenho de seu ofício judicante:
"...a controvérsia que ainda grassa no campo do direito laboral sobre a ultra-atividade das cláusulas constantes dos instrumentos normativos tem provocado sérias polêmicas e, num esforço de estudante da matéria tenho, a cada lição, aderido à corrente majoritária da doutrina e jurisprudência que, como destaca o mestre Pinho Pedreira, a primeira "maciçamente sufraga a tese do DIREITO CONTRATUAL ADQUIRIDO, como denomina SUSSEKIND a da incorporação." (in Principiologia do Direito do Trabalho, pág. 137, ano 1996).
Assim sendo, a polêmica reinante sobre o tema e as divergências de interpretação existentes não chegam a estremecer as nossas convicções e o convencimento em seu derredor, quanto ao direito a incorporação, nos contratos individuais de trabalho, das cláusulas insertas nos acordos ou convenções coletivas.
Atente-se que, na hipótese dos autos, inobstante a Recorrente sustente que foi celebrado acordo, em sede de Dissídio Coletivo, o qual teria sido homologado pelo Egrégio Regional, não fez qualquer prova da existência da homologação, que transformaria a natureza da convenção em sentença normativa, cuja vigência estaria restrita ao período para o qual foi fixada.
Desta forma não há como afastar-se a aplicação das cláusulas constantes dos acordos coletivos invocados, porquanto as mesmas não foram substituídas, tampouco alteradas por ajuste posterior, devendo prevalecer, diante de sua incorporação ao contrato de trabalho..."
3. O Princípio da Proteção do Hipossuficiente e a questão da ultra-atividade
Respaldados por tais ensinamentos, alguns juristas defendem a posição, segundo a qual a ultra-atividade das cláusulas normativas, previstas em instrumentos coletivos de autocomposição, se daria irrestritamente, vale dizer em relação à qualquer cláusula normativa, inserta em acordo coletivo de trabalho ou convenção coletiva, independentemente do seu conteúdo ser benéfico ou não ao trabalhador, o que bem demonstraria o caráter bilateral do mencionado efeito ultratemporal.
Esta premissa leva à conclusão, segundo a qual a cláusula pactuada se incrustaria ao contrato de trabalho do empregado ainda que lhe fosse prejudicial, de modo que apenas por nova negociação coletiva poderia ser alterada.
Data venia, dos que defendem tal posicionamento, creio que o entendimento, assim advogado, resultou de uma visão estrábica da questão, desgarrada do primado básico que informa as normas jurídicas relativas ao tema ora em comento, o que, por certo, resultou num desvio de perspectiva.
Uma das primeiras leituras que se faz nos cursos de graduação, refere-se aos princípios informativos das ciências jurídicas, sejam aqueles gerais, que migram do tronco comum do Direito para os seus ramos específicos, sejam os peculiares, que conferem identidade e autonomia a cada um dos referidos ramos do direito.
Os princípios são vistos pela doutrina, como a viga mestra de um sistema, o seu mandamento nuclear, sendo na escorreita visão do juslaboralista José Augusto Rodrigues Pinto: [4]"...idéias estruturais do Direito, capazes de sustentá-lo, enquanto sistema, do mesmo modo que as fundações suportam o peso do edifício. Por isso, sua presença é indispensável na realização diuturna da ciência jurídica, nem sempre de maneira ostensiva, mas sempre, como as fundações das grandes estruturas, em nível subjacente de apoio discreto do conjunto. Aí está uma boa razão para dificultar-lhes uma clara identificação e o interesse em habilitar-se o estudioso a distingui-los da própria estrutura que sustentam..."
Portanto, em todo dispositivo legal que o operador do direito vise empregar, o princípio ali estará, a dar-lhe o necessário apoio lógico-jurídico. De modo que, a interpretação a ser extraída da norma em exame jamais poderá ir de encontro a este substrato invisível, mas que, inegavelmente, preenche o espírito, o conteúdo e o alcance de qualquer norma de direito.
Na seara Laboral, é lugar comum a singularidade da Proteção do Hipossuficiente Econômico, encarada como verdadeira essência da estrutura do Direito material, presente em diversos dispositivos legais existentes no diploma consolidado.
Para análise da questão posta ao debate, urge destacar o artigo 468 da CLT, segundo o qual:
"Nos contratos individuais de trabalho só é lícita a alteração das respectivas condições, por mútuo consentimento, e, ainda assim, desde que não resultem, direta ou indiretamente, prejuízos ao empregado, sob pena de nulidade da cláusula infringente desta garantia".
Pois bem, este artigo da Consolidação consubstancia um dos fundamentos de apoio da corrente favorável ao efeito ultra-ativo das normas coletivas(Convenção Coletiva de Trabalho e Acordo Coletivo de Trabalho).
Agregado a este dispositivo legal comparece o art. 114, § 2º da CF/88, a que me reportei linhas atrás, capaz de refutar a hesitação dos que se posicionam contrariamente ao efeito ultra-ativo.
Destacados os dois dispositivos, é possível afirmar que, em ambos, as modificações no conteúdo mínimo do contrato de trabalho, seja no que tange ao acordo direto entre empregador e empregado, seja mediante o poder normativo da Justiça do Trabalho, sempre procuram resguardar um dos sujeitos do pacto laboral: o trabalhador.
Inegavelmente, os artigos 114,§2º da Carta Magna atual e 468 da Consolidação das Leis do Trabalho cobrem, com seu manto protetor, o patrimônio jurídico do obreiro, de modo que as conquistas favoráveis que lhe foram outorgadas, expressa ou tacitamente, terão se aderido ao seu contrato.
Este é a filosofia do Direto Material do Trabalho, informado pelo supra aludido Princípio da Proteção do Hipossuficiente Econômico. E como tal, outra não pode ser a conclusão, senão a de que a ultra-atividade decorrente dos instrumentos coletivos de autocomposição somente é possível cogitar-se no tocante às cláusulas normativas benéficas ao trabalhador.
Tanto isto é verdade que as disposições convencionais e legais, referidas pelo art. 114 da Constituição Federal dizem respeito à "proteção ao trabalho", sendo o empregado o receptor nato desta garantia.
4.Conclusão
Diante destas premissas, é plenamente possível sustentar que as cláusulas normativas, contidas no bojo de um instrumento resultante da negociação coletiva, que não venham representar vantagem para o empregado ( como por exemplo uma redução salarial ditada por circunstâncias ocasionais da crise econômica ou de recuo do mercado em face de eventual queda de consumo), apenas vigoram no prazo de vigência da referida norma coletiva.
O que significa dizer, por outras palavras, que apenas através de nova convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho poderá a supra mencionada cláusula normativa sobreviver por mais um período de até 2 anos.
Notas
1. PINTO MARTINS, Sérgio. Direito do Trabalho. Editora Atlas. 8 ª edição. Pág.702;
2. PEDREIRA, Luiz de Pinho. Principiologia do Direito do Trabalho. Ano 1996. Pág. 134
3. Ac. 4636/00 – RO 01.02.98.0943-50- Rel. Juiz Roberto Pessoa
4. RODRIGUES PINTO, José Augusto. Processo Trabalhista de Conhecimento. LTr. 6ª edição. Pág. 42