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Dos institutos garantidores de pagamento e a origem e evolução dos títulos de crédito

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O presente artigo atenta-se para o cerne da teoria dos títulos de crédito e, ademais, tem como enfoque prático alguns dos institutos garantidores de pagamento, tais como o protesto e as ações cambiais, com o intuito de se analisar sua real efetividade.

Sumário: 1. Intróito. 2. O Crédito. 3. Os Títulos de Crédito. 4. Origem e Evolução dos Títulos de Crédito. 4.1 Letra de câmbio. 4.2 Nota promissória. 4.3 Cheque. 4.4 Duplicata. 5. Protesto 5.1 Efeitos 5.2 Forma 5.3 Prazos 5.4 Dispensa 6. Da prescrição. 7. Modos de execução. 8. Considerações derradeiras. 9. Referências bibliográficas.


Intróito

Muito se discute atualmente sobre os títulos de crédito numa perspectiva histórica, haja vista sua crescente e atual desmaterialização. Nesse sentido, muito útil se faz o estudo da origem e evolução dos títulos de crédito para que compreendamos as alterações que eles sofreram diante da mudança das circunstâncias em que estavam inseridos. É assim que neste trabalho faremos uma análise primeiramente de aspectos da teoria geral dos títulos de crédito para depois nos atermos aos dados históricos propriamente ditos. Conceitos como crédito e títulos de crédito jamais podem ser deixados de lado pelo jurista na sua análise da legislação cambiária, já que é preciso certa generalização de elementos essenciais e aspectos comuns no estudo comprometido do direito cambiário.

Também não olvidamos a crescente busca por garantias de pagamento, haja vista a complexidade da sociedade e o temor de não ter seu crédito satisfeito. Desse modo, abordaremos considerações gerais sobre os institutos do protesto, da execução e da prescrição dos títulos de crédito, visto que é inegável a crescente importância econômica destas cártulas quando negociadas no mercado de valores. Por fim, focalizaremos aspectos ligados a desmaterialização do título de crédito no atual estágio de desenvolvimento tecnológico, transpassando por diversos momentos por novas perspectivas advindas da informatização do direito cambiário.


2. O Crédito

Na época de estruturação das tribos na Antiguidade, era comum a prática do escambo ou troca. Por meio desse mecanismo, trocava-se somente para se consumir, não havendo dependência de manifestação formas das vontades dos polos da relação, nem mesmo confiança mútua entre eles, já que a troca era realizada simultaneamente.

Com o desenvolvimento da civilização, o intercâmbio de produtos se intensifica e já não é mais possível a troca em imediato. Surge então a necessidade da confiança ou do crédito. O maior dinamismo comercial, portanto, incentivou a propagação da ideia de crédito como ato de fé de que a obrigação avençada será cumprida dentro de determinado prazo ou superveniência de uma data.

Com esse delineamento histórico já se pode perceber a ideia básica dos elementos que compõem o crédito. Primeiro, é preciso que haja confiança por parte do credor de que o devedor cumprirá com sua obrigação nos termos avençados. Daí a origem etimológica da palavra – creditum, credere. Segundo, é imprescindível que haja um lapso temporal entre as prestações do credor e do devedor, haja vista que se a troca das prestações for concomitante não há de se falar em confiança ou fé do credor em receber o que lhe é devido.

A partir desses elementos, pode-se traçar um conceito do que seja o crédito. Gide, citado por Rubens Requião (2003, p. 357), considera o crédito um alargamento da troca ao proferir o enunciado “A troca no tempo, em lugar de ser no espaço”. Também John Stuart Mill se pronuncia sobre o tema ao afirmar que “O crédito não é mais do que a permissão para usar do capital alheio”. Ascarelli (1943, p. 11), por sua vez, assevera que crédito é:

a possibilidade de dispor imediatamente de bens presentes, para poder realizar, nos produtos naturais, as transformações que os tornarão, de futuro, aptos a satisfazer as mais variadas necessidades, crédito para criar os instrumentos de produção (os bens instrumentais, como dizem os economistas), cuja importância cresce à medida que mais complexa se torna a obra de conquista e de transformação dos produtos naturais.

O fato é que o crédito vai assumindo importância crescente na sociedade, tornando viável o estabelecimento de operações creditícias, a regulamentação das instituições financeiras e o arcabouço jurídico acerca das garantias oferecidas ao credor. Também é de se destacar a crescente expansão do crédito no direito bancário e na área de seguros, em detrimento da característica de crédito de consumo dos séculos passados.

“O crédito já não é hoje, geralmente, um crédito ao consumidor, mas um crédito ao produtor, para permitir-lhe criar culturas e melhorar a terra; erguer fábricas e abrir estabelecimentos; construir vias de comunicações e escavar minas” (ASCARELLI, 1943, p. 11).

Percebe-se, portanto, que o crédito tornou-se tema de extrema significância para o direito comercial, haja vista sua função de proporcionar maior circulação das riquezas, tornando os capitais mais úteis e produtivos do que se ficassem imobilizados nas mãos daqueles que não querem ou não sabem utilizá-lo.

Sobre a circulação dos títulos de crédito, assegura Cesare Vivante (1928, p. 108) que:

Podem ceder-se todos os créditos, quer certos e vencidos, quer ilíquidos e futuros, que tenham por objeto uma coisa individualmente determinada, ou uma quantidade de coisas, uma prestação de coisas ou de fatos, e que resultem de um contrato ou da lei. Esta faculdade não provém de consentimento do devedor, mas de uma regra imperativa do direito vigente, que reconhece a livre circulação dos créditos.


3. Os títulos de crédito

A definição mais clássica acerca dos títulos de crédito é de Vivante, quando afirma seu caráter de “documento necessário para o exercício do direito literal e autônomo nele mencionado”. Essa assertiva de Vivante surge como complemento à definição de “documento de um direito privado que não se pode exercitar, se não se dispõe do título” estabelecida por Brunner anteriormente, que por não abarcar os princípios elementares dos títulos de crédito era tida como insuficiente.

Uma pesquisa mais atenta, no entanto, leva-nos a diversas definições de títulos de crédito a depender do foco de quem os analisa. Asquini, por exemplo, citado por Paulo Roberto Colombo Arnoldi (1998, p.88) define título de crédito como “o documento de um direito literal destinado à circulação e idôneo para conferir, de modo autônomo, a titularidade do direito ao proprietário do documento, e necessário e suficiente para legitimar ao possuidor o exercício do direito nele contido”, dando ênfase às questões da circulação do documento, a titularidade e a legitimação. Yadarola, um dos maiores estudiosos do assunto na Argentina, por sua vez, baseando-se em Vivante os caracteriza como “documento de um direito literal e autônomo, cuja posse é necessária para o exercício desse direito” (ARNOLDI, 1998, p. 90).

De fato, percebe-se que a definição de Vivante é a mais concisa e clara dentre as já traçadas. Conseguiu o mestre italiano englobar os requisitos básicos para a caracterização dos títulos de crédito, que são a cartularidade, a autonomia e a literalidade, de modo a os distinguir de qualquer outro documento obrigacional. A definição de Vivante é a que está presente em nosso atual Código Civil, visto que o art. 887 preceitua que “o título de crédito documento necessário ao exercício do direito literal e autônomo nele contido, somente produz efeitos quando preencha os requisitos da lei”.

Posto isto, cumpre analisar os três requisitos básicos do título de crédito, quais sejam a literalidade, a autonomia e a cartularidade. Nada melhor do que nos recorrermos ao próprio autor do conceito para explicitar a abrangência desses termos. É assim que Vivante (1928, p. 111) assevera que:

O direito contido no título é um direito literal, porque o seu conteúdo e seus limites são determinados nos precisos termos do título; é um direito autônomo, porque todo o possuidor o pode exercer como se fosse um direito originário, nascido nele pela primeira vez, porque sobre esse direito não recaem as exceções, que diminuíram seu valor nas mãos dos possuidores precedentes.

Entende-se, portanto, pelo princípio da literalidade, que o título de crédito se enuncia pelo que está escrito nele; somente o que está nele inserido se leva em consideração. Dessa forma, sua existência, extensão, conteúdo, modalidade e exigibilidade seguem estritamente o teor escrito do documento, tendo este relevância decisiva para determinar o que consiste e até onde vai o direito.

A autonomia, por sua vez, representa a desvinculação entre o novo adquirente do título e o endossante, haja vista que cada novo adquirente do título recebe um direito que lhe é próprio, sem qualquer vínculo com o direito que tinha aquele que o transmitiu. Fala Fábio Ulhoa Coelho (2005, p. 235) em dois subprincípios da autonomia: o primeiro deles seria o da abstração, que se atenta ao vínculo entre o título de crédito e a relação, ato ou fato jurídicos que deram origem à obrigação por ele representada, e o segundo, o da inoponibilidade de exceções pessoais aos terceiros de boa-fé, vez que estes não podem ter seu direito restringido ou destruído em virtude das relações existentes entre os anteriores possuidores e o devedor.

Por fim, a cartularidade significa que é indispensável a posse do documento, também chamado de cártula, para que o credor exerça os direitos por ele representados. Daí Vivante caracterizar o título de crédito como documento necessário ao exercício do direito nele mencionado. Na prática, isso se manifesta na impossibilidade de se promover a execução judicial – instituto garantidor do pagamento que será analisado mais à frente – do crédito representado, vez que esta só poderia ser proposta se acompanhada da própria cártula, como garantia de que o exequente é o credor e de que ele não negociou o seu crédito.

Ultimamente, o direito tem criado algumas exceções ao princípio da cartularidade, em vista da informalidade que caracteriza os negócios comerciais. Assim, a Lei das Duplicatas admite a execução judicial de crédito representado por este tipo de título, sem a sua apresentação pelo credor (LD, art. 15, §2º) (...) Outro importante fato que tem interferido com a atualidade desse princípio é o desenvolvimento da informática no campo da documentação de obrigações comerciais, com a criação de títulos de crédito não-cartularizados (COELHO, 2005, p. 234).

Pode-se falar ainda em outras características dos títulos de crédito, embora não estejam presentes na célebre definição de Vivante. A primeira dessas características é a circulabilidade, vez que as cártulas, por natureza, são destinadas a circulação. Quando o documento não pode circular, ele não pode ser considerado título de crédito, o que não significa dizer que não se possa limitar ou proibir sua circulação.

Outra característica de muitos títulos de crédito é a independência, que denota a não integração da cártula ao ato originário de onde provieram. Ressalve-se, porém, que a independência não é característica geral dos títulos de crédito, pois existem muitos deles que se referem a contratos que lhes deram origem.

Fala-se ainda na causa como uma característica dos títulos de crédito. Yadarola, citado por Colombo Arnoldi (1998, p. 111), caracteriza a obrigação causal como “aquela cuja existência e validade dependem de que exista uma causa válida e que seja mencionada no título; se a obrigação carece de causa ou esta é ilícita ou nula, não existe obrigação”. Ressalva o autor brasileiro posteriormente, porém, que todo negócio jurídico pressupõe uma causa, que pode ser uma compra e venda, um mútuo, etc., que não se confunde com a causa de emissão ou criação do título de crédito, que lhe é conexa.

Por fim, fala-se na legalidade ou tipicidade do título de crédito e no seu formalismo. A legalidade pressupõe a previsão legal daquele título de crédito em seu arcabouço jurídico, como forma de se dar mais certeza e segurança do recebimento do crédito em tão intensa circulação nas atividades comerciais. Ademais, também para segurança jurídica não deixa a lei a critério das partes interessadas a possibilidade de formalização do documento; deve-se obedecer às formalidades previstas em lei.

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4. Origem e evolução dos títulos de crédito           

4.1. Letra de câmbio

Antes de passarmos à análise direta da evolução da letra de câmbio, faz-se mister ter uma noção básica do conceito deste título de crédito para que a compreensão seja mais profícua. Nesse sentido, destacamos a definição clássica de Vivante de que seria “um título de crédito essencialmente endossável, formal e completo, contendo a obrigação de pagar ou fazer pagar sem prestação recíproca uma determinada quantia na época do vencimento e no local nela mencionados” (1928, p. 117) e a definição mais moderna de Rubens Requião (2003, p. 387), para quem “A letra de câmbio é uma ordem de pagamento, à vista ou a prazo. Sendo uma ordem de pagamento que alguém dirige a outrem para pagar a terceiro, importa numa relação entre pessoas que ocupam três posições no título: a de sacador, a de sacado e a de beneficiário da ordem”.

A vulgarização do uso da letra de câmbio ocorreu de fato na Idade Média, mas podem-se apontar alguns precedentes ainda na Antiguidade, nos casos da China, Índia, Grécia e Roma, locais onde teriam surgido títulos ancestrais à letra de câmbio. O fato é que as raízes históricas da letra de câmbio encontram-se na Idade Média, sendo tal contexto, por isso, o nosso objeto de estudo, partindo-se da divisão didática proposta por Kuntze.

Período Italiano: período compreendido desde o início dos burgos independentes da baixa idade média até meados do século XVII; foi durante esse lapso temporal que se assistiu o surgimento do documento cambio per literas, que posteriormente viria a ser chamado de letra de pagamento de câmbio e, por síncope, reduzido apenas à letra de câmbio.

O aparecimento desse documento se deu diante do seguinte contexto: cada cidade italiana cunhava suas próprias moedas, acarretando intensos problemas ao intercâmbio comercial. Já era feito o câmbio local, mas com a transferência de valores por praças diferentes surgiu o problema de transportar consigo grandes somas por grandes distâncias, devido ao peso e volume das moedas. Também constituíam problemas os fatos de os viajantes serem frequentemente assaltados durante o trajeto e o difícil curso da moeda de outra praça no local onde se pretendia usá-la. O câmbio se caracteriza a partir de então pela distantia loci, passando o cambista a trocar a moeda presente pela promessa de moeda ausente naquela praça, mas que lhe seria entregue na praça de destino daquele que negocia com o cambista. Todo esse mecanismo era reduzido a escrito por um notário, de forma que contivesse a promessa de pagar e o reconhecimento expresso de um débito por parte do cambista ou banqueiro. Esse escrito era o que se convencionou chamar de cambium per literas ou cautio discreta. Com o passar do tempo, esse documento foi simplificado, contendo uma delegação de pagamento, entregue ao tomador com uma carta de apresentação ao correspondente. Figurava-se a letra de pagamento de câmbio. Destaca Arnoldi (1998, p. 61) que para a emissão desse documento havia a necessidade de preencher três requisitos básicos, quais sejam: a) distancia loci (praças diferentes), b) permutatio pecunia (as moedas das respectivas praças também precisavam ser diferentes) e c) provisão do pagamento (existência de igual valor ao da letra de câmbio nas mãos do sacado, para que este pudesse efetuar o pagamento).  

Existiam, assim, nesse período primitivo, quatro posições pessoais em relação à letra de câmbio: a) a pessoa que recebia o dinheiro e entregava a promessa (sacador); b) a que dava o dinheiro e recebia a letra (tomador); c) o encarregado de pagar (sacado), mandatário que era do primeiro; d) o encarregado de receber, mandatário do segundo (tomador). Com o aperfeiçoamento do título, mais tarde, o sacado (c) se tornou pessoa estranha à pessoa do sacador (a), desaparecendo o mandato que os vinculava (...). Então se tornou necessário o aceite por parte do sacado (c), que passava ser então aceitante e principal obrigado (REQUIÃO, 2003, p. 380).

Questionamento importante surge nesse período acerca do caso de não pagamento pelo sacado. Entendeu-se que nesses casos o apresentante do título deveria levá-lo ao notário para atestar a mora perante testemunha. Era o instituto da protestatio, que muito se relaciona com o protesto atualmente tido como meio garantidor de pagamento dos títulos de crédito.

Período Francês: o período francês compreende o intervalo entre 1650 e 1848, de modo que as principais inovações surgiram com a Ordenança de 1673. Primeiramente, criou-se a cláusula à ordem, por meio da qual o tomador poderia transferir o título a qualquer pessoa mesmo sem o consentimento do sacador; a pessoa que recebia essa letra de câmbio adquiria todos os poderes de seu antecessor. Essa alteração permitiu maior circulação da letra de cambio por meio do instituto do endosso. Além disso, com o aceite da dívida, é preciso que haja um avalista a fim de se garantir o pagamento desta. Como destaca Arnoldi (1998, p. 64), também é característica do período francês a possibilidade de protesto.

Período Alemão: o período alemão compreende o intervalo de 1848 a 1930. Foi nesse lapso temporal que se processou a unificação do Direito Cambiário, com a origem da famosa Ordenança Geral Cambiária Alemã, influenciada pela teoria de Einnert. Fundamentam a teoria alemã a ideia de que para exercer a ação cambial não precisa o credor de dados que não constem na própria cambial e a ideia de a promessa não se dirige a credor determinado, pois é feita de forma geral ao público.

De teoria vitoriosa de Einnert, consagrada no direito positivo, decorrem, entre outros, os seguintes efeitos para a cambia: a) desaparecem os requisitos de distancia loci e do valor recebido; b) a endossabilidade se torna elemento natural, implícito, desaparecendo a necessidade de cláusula “à ordem”; c) pode ser apresentada ao aceitante, e o portador exerce o direito de regresso contra o sacador, desde que não seja aceita ou paga; d) a assinatura posta no título é autônoma, independente das demais; e) é credor quem possui o título por uma série não interrompida de endossos; f) ao credor não podem ser opostas as exceções fundadas no direito pessoal (REQUIÃO, 2003, p. 382).

Fase da Unificação: corresponde ao período dos anos 30 até os dias atuais. O marco histórico para o delineamento desse período foi a Convenção de Genebra de 1930, por meio da qual se concretizou a unificação universal das leis cambiais. Depois de longo período de discussão sobre o tema e de algumas tentativas não concretizadas, em 7 de junho de 1930, foram assinadas três convenções sobre os títulos de crédito, assim enumeradas: a) convenção de uma lei uniforme para a letra de câmbio e a nota promissória; b) convenção para regular os conflitos de leis sobre a letra de câmbio, nota promissória e protocolos; c) convenção no direito de selo de letras de câmbio e notas promissórias. O Brasil apenas em 1942 adere formalmente às três convenções, sendo que só foram aprovadas pelo Congresso Nacional em 1964, tendo o Presidente da República em 1966 determinado que fossem executadas e cumpridas. Há que se mencionar, no entanto, que o Brasil fez algumas reservas às convenções, não incorporando ao Direito Brasileiro os preceitos atingidos pela “reserva”, hipótese em que se aplica o Decreto nº 2.044 de 1908 aos casos concretos pertinentes.

4.2. Nota promissória

A nota promissória é “um título de crédito que marca uma relação bipolar, na qual o subscritor (devedor principal) declara que pagará uma quantia determinada a um beneficiário” (MAMEDE, 2010, p. 366). Trata-se de uma promessa de pagamento que difere da letra de câmbio por se estabelecer apenas entre duas pessoas (o emitente e o beneficiário) e por não ter a figura do aceite, vez que a simples assinatura do emitente obriga o pagamento. Segue, porém, a mesma disciplina legal e doutrinária da letra de câmbio.

Também a história da nota promissória se reporta à Idade Média, apesar de seus precedentes na Antiguidade. Representava de início o preço devido pelo adquirente da letra de câmbio, dela se destacando e tornando-se um título cambiário com o transcorrer do tempo. Na modernidade, com a efervescência dos negócios bancários tornou-se útil e prático instrumento de crédito, vez que incorpora a dívida com a promessa de pagamento em certo prazo em documento escrito e atendendo as formalidades legais de natureza cambiária. Como diz Rubens Requião (2003, p. 466) “passou a ser, por excelência, o documento sobre o qual se funda a operação de crédito, efetuada pelos estabelecimentos bancários”.

4.3. Cheque

O cheque é uma ordem de pagamento à vista, sacada em um banco com base na provisão de fundos do emitente. Mesmo sendo uma relação jurídica triangular, não admite o cheque a figura do aceite, haja vista que a ordem de pagar é incondicional; basta a apresentação do título ao caixa ou à compensação para que a ordem seja cumprida, havendo fundos. Por ser ordem de pagamento à vista, não encontra respaldo jurídico a figura da pós-datação, visto que qualquer cláusula inserida no cheque com o objetivo de alterar essa sua natural característica é ineficaz (art. 32 da Lei 7.357, de 1985 – Lei do Cheque). Também cumpre destacar que cheque não se confunde com letra de câmbio, haja vista diferenciações básicas: a) a letra é sacada contra comerciantes e não comerciantes, enquanto o cheque somente é utilizável tendo como sacado uma instituição financeira; b) a letra não requer provisão de fundos, enquanto para o cheque isso é indispensável; c) a letra de câmbio pode ser ordem de pagamento à vista ou a prazo, enquanto o cheque só admite a primeira opção.

O cheque, assim como a letra de câmbio e a nota promissória, tem suas raízes histórias na Idade Média, embora haja menção às ordens de pagamento chamadas singraphos na Grécia e mandata em Roma. O fato é que na Idade Média o número de bancos cresceu significativamente, de modo que era natural que a qualquer momento fossem mobilizados por ordens de pagamento de seus depositantes. Na Inglaterra, processou-se o impulso à figura do cheque, mas estava naquele país ligado ainda à letra de câmbio. Foi na França que ocorreu o destacamento dos dois títulos de crédito; a Lei de 14 de junho de 1865 o definiu como “o escrito que, sob a forma de um mandato de pagamento, serve ao sacador para efetuar a retirada, em seu proveito ou em proveito de um terceiro, de todos ou parte dos fundos disponíveis, levados a crédito de sua conta pelo sacado”.

No Brasil, o primeiro diploma sobre o cheque foi a Lei 1.088 de 1860, seguido pelo Decreto nº 177-A, de 15 de setembro de 1893. No entanto, o termo “cheque” somente foi aparecer na Lei nº 149-B de 1890 e lei especial somente nasceu em 7 de agosto de 1912 com a Lei nº 2.591. Com a insuficiência dos dispositivos desse diploma e com os abusos verificados com a emissão de cheque sem fundos, fez-se necessária uma reforma, que veio, de certo modo, com o Decreto nº 57.595 de 1966, que promulgou as convenções para adoção de uma lei uniforme em matéria de cheques, adotadas em Genebra, como anteriormente explicado. A reforma, no entanto, somente foi se concretizar com a promulgação da Lei nº 7.357 de 1985, respeitando em suas normas, de modo geral, a Lei Uniforme de Genebra sobre cheques.

4.4. Duplicata        

A duplicata é um título causal, emitido pelo próprio credor, declarando existir, a seu favor um crédito de determinado valor em moeda corrente, fruto – obrigatoriamente – de um negócio empresarial subjacente de compra e venda de mercadorias ou de prestação de serviços, cujo pagamento é devido em determinada data (termo). O emitente poderá usar a duplicata para exigir o pagamento extrajudicial ou judicial (execução) de seu crédito, assim como pode negociá-la com terceiros, endossando-a (MAMEDE, 2010, p. 390).

Primeiro Período: A figura da duplicata surgiu no Brasil com o Código Comercial de 1850, quando no art. 219 prescreveu-se que “Nas vendas em grosso ou por atacado entre comerciantes, o vendedor é obrigado a apresentar ao comprador por duplicado, no ato da entrega das mercadorias, a fatura ou conta dos gêneros vendidos, as quais serão por ambos assinadas, uma para ficar na mão do vendedor e outra na do comprador. Não se declarando na fatura o prazo do pagamento, presume-se que a compra foi à vista (art. 137). As faturas sobreditas, não sendo reclamadas pelo vendedor ou comprador, dentro de dez dias subsequentes à entrega e recebimento (art. 135) presumem-se contas líquidas”. Também dispunha o Código que serviria de regra às contas líquidas tudo o que se dispunha acerca das letras de câmbio, tanto quanto pudesse ser aplicável. Essa proposição podia ser inferida da leitura do art. 427, que em 1908 foi revogado pelo Decreto nº 2.044.

Segundo Período: Por volta de 1912, o governo tenta fazer ressurgir a conta assinada ou fatura, tornando-a obrigatória como documento para a incidência do imposto do selo. Os juristas, no entanto, reagiram rapidamente, alegando que seria um retrocesso para o direito comercial. Diante de tal posicionamento, o governo se viu sem outra saída, que não recuar.

Terceiro Período: Em 1922, a situação muda e diante da possibilidade de cobrança do imposto de renda, os comerciantes sugerem a criação do título, através de projeto de lei, que pretendia dar nova feição “à cobrança do imposto de lucros do comércio e da indústria pelo selo proporcional sobre o selo do valor de vendas”, na tentativa de se desviarem da cobrança do imposto de renda, já que incidiria sobre eles o imposto sobre o valor das vendas. O governo acatou a sugestão, mas não por isso deixou de exigir também o imposto de renda das classes empresariais.

Percebe-se, portanto, que a implantação da duplicata se deu devido ao interesse tributário da União. Posteriormente, a arrecadação do imposto sobre vendas e consignações passou a ser competência tributária dos Estados, permanecendo, todavia, a duplicata como título de emissão obrigatória, pois ela era o meio de arrecadação e fiscalização do imposto.

A duplicata de fatura só veio a se libertar dos interesses do fisco com a reforma da legislação nos anos 60. De fato, em 1968, promulgou-se a Lei das Duplicatas (Lei nº 5.474), que foi modificada pelo Decreto-Lei nº 436 em 1969. O imposto sobre venda e consignações foi substituído pelo Imposto de Circulação de Mercadorias, que não mais se servia da duplicata para sua cobrança e fiscalização.

“Libertada do incômodo cordão umbilical que a ligava aos interesses do fisco, a duplicata de fatura tornou-se, por fim, um título de crédito eminentemente comercial, a serviço do desenvolvimento do crédito do comércio e da indústria” (REQUIÃO, 2003, p. 546).

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Sobre os autores
Rhasmye El Rafih

Advogada. Concluiu o bacharelado em Direito na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho/Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (UNESP, campus de Franca). Possui ênfase de estudos nas seguintes áreas: Biodireito, Direito Empresarial, Direito Penal, Direito Internacional Público e Direitos Humanos. Integrante dos grupos de pesquisa: Os novos parâmetros da responsabilidade civil e as relações sociais, As novas vertentes dos direitos da personalidade, Núcleo de Estudos da Tutela Penal e Educação em Direitos Humanos, Sistema Penal Integral e Estado Democrático de Direito, todos do Diretório de grupos de pesquisa da CNPq. Foi Estagiária credenciada da Procuradoria Geral Federal (matrícula 1.930.160) e do Ministério Público do Estado de São Paulo. Também foi Conciliadora do Juizado Especial Cível Anexo Unesp em Franca-SP. Ademais, atuou como bolsista e colaboradora do projeto de pesquisa e extensão do Núcleo de Ensino da Unesp-Franca denominado Fundamentos da Cidadania e Educação em Direitos Humanos para Alunos do Ensino Fundamental. Recentemente foi bolsista do grupo Santander Universidades na Universidade de Coimbra/Portugal e, posteriormente, da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Atualmente cursa pós-graduação `lato sensu` em Direito Econômico na Universidade de São Paulo, campus de Ribeirão Preto.

José Vinicius Cabrioli

Bacharelando do 5º ano de Direito da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, membro do Núcleo de Estudos da Tutela Penal e Educação em Direitos Humanos (NETPDH – UNESP) e estagiário do Ministério Público Federal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RAFIH, Rhasmye El ; CABRIOLI, José Vinicius. Dos institutos garantidores de pagamento e a origem e evolução dos títulos de crédito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4277, 18 mar. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/32014. Acesso em: 25 abr. 2024.

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