A Constituição Federal, no primeiro capítulo do título que trata da Tributação e do Orçamento, disciplina as regras do Sistema Tributário Nacional. Nisso, além dos princípios gerais norteadores do Direito Tributário, e das limitações atribuídas aos entes da federação no exercício de suas prerrogativas legiferantes, administrativas e operacionais nessa esfera, elenca também a competência constitucionalmente deferida a cada uma das pessoas políticas no que pertine ao exercício do poder de tributar.[1]
Ainda que conceitualmente não se confundam, competência tributária e poder de tributar concatenam-se no sentido de que o exercício do poder de tributar abarca as prerrogativas da competência tributária de cada um dos entes da federação, sendo esta decorrência daquele. Com isso, tem-se que a determinação constitucional atinente à competência de cada uma das pessoas políticas quanto a sua legitimidade de instituir tributos está também atrelada ao poder de império do Estado, atributo de sua soberania, a saber:
A soberania, que exprime o mais alto poder do Estado, a qualidade de poder supremo (suprema potestas), apresenta duas faces distintas: a interna e a externa.A soberania interna significa o imperium que o Estado tem sobre o território e a população, bem como a superioridade do poder político frente aos demais poderes sociais, que lhe ficam sujeitos, de forma mediata ou imediata. A soberania externa é a manifestação independente do poder do Estado perante outros Estados.[2] (Grifos meus).
Nessa lógica, enquanto a competência tributária encampa a prerrogativa do Estado no sentido de gerar receita derivada aos cofres públicos por meio da instituição legal de tributos, a capacidade contributiva ativa é, por seu turno, todo o elenco de repercussões daí advindas, em que o Estado, ao figurar no pólo ativo da relação tributária que se estabelece entre o contribuinte e o fisco, pode/deve[3] lançar, arrecadar, recolher, fiscalizar e, quando for o caso, cobrar judicialmente os tributos legalmente previstos.
Se fôssemos sugerir um escalonamento envolvendo os conceitos até agora mencionados, poderíamos dizer que do poder de império do Estado deriva o poder de tributar; o poder de tributar, por sua vez, confere aos entes políticos a) competência legiferante em matéria tributária e, b) capacidade contributiva ativa. Quanto a isso, note-se a relevância do poder de império em todo esse sistema.
É evidente que, sob a ótica do Direito Tributário, o exercício do poder de império do Estado associa-se à soberania interna (ressalvados os acordos e tratados internacionais de ordem tributária), que Celso Ribeiro Bastos, ao conceituar e classificar soberania, denomina como supremacia, nestes termos:
Soberania significa um poder que não reconhece outro a ele superior, seja no plano interestatal (independência), seja no plano interno (supremacia). [...] evidentemente, não no plano do Direito, mas, sim, no da realidade, tal soberania pressupõe uma superioridade de força.[4] (Grifo meu).
De fato, poder de império e soberania interna dialogam de tal modo a ponto de praticamente poderem ser considerados faces da mesma moeda – e, quanto a isso, diga-se, só é possível falar soberania interna (supremacia) porque ao Estado é atribuído o exercício do poder de império, e vice-versa.[5]
Soberania é a qualidade que cerca o poder do Estado. [...] indica o poder de mando em última instância, numa sociedade política. [...] a soberania se constitui na supremacia do poder dentro da ordem interna e no fato de, perante a ordem externa, só encontrar Estados de igual poder. Esta situação é a consagração, na ordem interna, do princípio da subordinação, com o Estado no ápice da pirâmide, e, na ordem internacional, do princípio da coordenação. Ter, portanto, a soberania como fundamento do Estado brasileiro significa que dentro do nosso território não se admitirá força outra que não a dos poderes juridicamente constituídos, não podendo qualquer agente estranho à Nação intervir nos seus negócios.[6] (Grifos meus).
Conforme referido, a soberania é um dos fundamentos constitucionais, um dos pilares-mestres do Estado Democrático brasileiro.[7] E, nessa tônica, retoma-se o fato de que, se por um lado a competência tributária vincula-se ao poder de tributar, este, por sua vez, é uma das decorrências concretas e diretas do exercício ius imperii do Estado que, ao valer-se de sua soberania interna (supremacia), pode impor a cobrança de tributos que sejam legalmente previstos.
Ressalte-se, também, que à competência tributária atrela-se a capacidade contributiva ativa, em que são previstas diversas prerrogativas/atribuições em matéria tributária, previstas tanto pela Constituição quanto pela legislação infra-constitucional[8], a cada um dos entes da federação.
Frise-se, mais uma vez, a importância do poder de império na seara tributária, conquanto é ele que alicerça o Estado na prerrogativa do poder de tributar, por meio das determiniações legais que lhes são atribuídas, e que abrangem todas as esferas da federação. Nesse contexto, a cogência da atuação do Estado é também um aspecto de suma importância, que dialoga e operacionaliza tudo o que até agora se analisou.
Sobre o poder de império, destacamos a sabedoria de Kiyoshi Harada:
O Estado, em virtude de seu poder de autoridade, pode retirar de seus súditos parcelas de suas riquezas para a consecução de seus fins, visando ao bem-estar geral. É o jus imperii do Estado que lhe faculta impor sobre as relações econômicas praticadas pelos particulares, assim como sobre seus bens, o tributo que, na atualidade, se constitui em principal fonte de receita.[9] (Grifos meus).
A máxima de Montesquieu, ao afirmar que só o poder limita o poder[10], bem como o conceito (do mesmo autor) do sistema de freios e contrapesos[11] busca relativizar a atuação do Estado no exercício do poder de império – ainda mais se considerarmos os regimes democráticos, em que há, com autonomia e nitidez, a separação dos poderes exercidos pelo Estado.
E, se por um lado a democracia representativa confere ao povo a gerência da res publica[12], temos também que, de outra banda, é justamente no diálogo que existe entre essa representatividade e o poder conferido ao Estado como ente soberano que irá nortear e delimitar a atuação que nesse sentido haverá.
Ou seja: o Estado, por meio da representatividade que lhe é conferida, valendo-se de suas prerrogativas, e respeitando as limitações que lhes são atribuídas, gere, através de sua estrutura, a coisa pública – valendo-se, para tanto, claro, do seu poder de império. Ainda assim, a cogência adstrita ao exercício desse poder de império não é (nem pode ser) ilimitada ou deliberada, sob pena de, assim, caracterizar um regime totalitário. Em contraponto, o exercício do ius imperii não se caracteriza, tampouco, enquanto liberalidade do Estado: a lei é o limite do exercício do Poder Público. O particular pode fazer tudo o que a lei não proíbe; o Estado, por seu turno, só pode fazer o que a lei autoriza.[13]
A gestão da coisa pública rege-se e respeita a lógica que a própria Constituição Federal determina. Todavia, em termos práticos, isso se dará, invariavelmente, de acordo com a tendência/ideologia/corrente política que norteará a atuação do Estado durante um determinado lapso de tempo. E tanto é desse modo que a Lei do Plano Plurianual, por exemplo, cujo projeto compete ao Poder Executivo, é encaminhada ao Legislativo a cada troca de governo.
Em termos tributários, o respeito à Constituição Federal e às demais leis que delineiam o Sistema Tributário Nacional é o que dá legitimidade ao poder de tributar, à competência tributária e à capacidade contributiva ativa, impondo regramento (e limites) a essa atuação. Com isso, temos que o poder de império do Estado não é nem pode ser deliberado, ainda mais em um Estado Democrático de Direito.
Kiyoshi Harada assim conceitua Direito Tributário:
Direito Tributário é, [...], o direito que disciplina o processo de retirada compulsória, pelo Estado, da parcela de riquezas de seus súditos, mediante a observância dos princípios reveladores do Estado de Direito. É a disciplina jurídica que estuda as relações entre o fisco e o contribuinte.[14] (Grifos meus).
Hugo Brito Machado preconiza que o Direito Tributário é
[...] o ramo do Direito que se ocupa das relações entre o fisco e as pessoas sujeitas às imposições tributárias de qualquer espécie, limitando o poder de tributar e protegendo o cidadão contra os abusos desse poder.[15] (Grifos meus).
Na ótica de Vittorio Cassone, temos a seguinte definição:
O Direito Tributário é parte do Direito Financeiro que estuda as relações jurídicas entre o Estado (Fisco) e os particulares (contribuintes), no que concerne à instituição, arrecadação, fiscalização e extinção do tributo. É direito autônomo, pois se rege por princípios e normas próprias.[16]
Tanto os conceitos trazidos, como quaisquer outros referentes à matéria que se queira analisar, não fogem do cunho cogente, coercitivo, compulsório adstrito ao poder de tributar – atributo esse que, aliás, decorre, justamente, do já analisado ius imperii do Estado.
Nisso, o Direito Tributário (e toda sua sistemática) basilado por nossa Carta Magna, inevitavelmente encampa tanto o poder de tributar quanto a competência tributária e a capacidade contributiva ativa. E justamente por conta desse fato é que, ao se apresentar um conceito abrangente e, em certa medida genérico, acabamos por englobar todo uma série de meandros (e conceitos) que a ele se concatenam; senão, vejamos:
Harada, no conceito apresentado, usa os termos retirada compulsória e súditos – denotando, assim, quase uma espécie de subserviência por parte daqueles que, tecnicamente, são classificados como sujeitos passivos da relação jurídico-tributária. Aqui, a referência à associação que existe entre poder de império, poder de tributar e, consequentemente, competência tributária e a capacidade contributiva ativa é evidente, e enaltece o aspecto impositivo que norteia a relação que, na prática, se estabelece na órbita tributária.
O conceito trazido por Machado, por seu turno, vale-se da expressão imposições tributárias, o que também evidencia a carga de exigência feita pelo Estado ao particular; nisso, contudo, é sempre conveniente ressaltar as limitações e restrições que a própria legislação traz acerca da matéria. O exercício do poder de tributar não se opera ao alvedrio dos gestores e/ou das pessoas políticas que integram a federação. A imposição que é feita em matéria tributária não contraria o Direito – e, aliás, não pode contrariá-lo. Ao contrário disso, é o próprio ordenamento jurídico que prevê e autoriza a atuação estatal em matéria tributária. Quanto a isso, estamos, evidentemente, diante de imposição lícita, legitima, e que respeita princípios e limites que a própria Constituição Federal atribui à dinâmica e operacionalização do Sistema Tributário Nacional.
Já o conceito de Cassone, ao referir a instituição, arrecadação, fiscalização e extinção do tributo, também preconiza, ainda que de modo mais sutil, a cogência adstrita ao exercício do poder de tributar, posto que ao Estado é que cabe todas essas incumbências/prerrogativas relacionadas pelo autor, ainda que o elenco por ele apresentado aborde mais especificamente os conceitos de competência tributária e capacidade contributiva ativa. Todavia, em assim fazendo, o autor acaba por contemplar também o poder de tributar e, como decorrência, o poder de império do Estado – endossando a inevitável correlação de todos esses conceitos.
Ora, qualquer conceito de Direito Tributário que se venha a analisar invariavelmente remeter-nos-á tanto ao conceito do poder de tributar quanto aos de competência tributária e de capacitada contributiva ativa, já que o Direito Tributário cuida, justamente, do regramento da prerrogativa atribuída ao Poder Público de realizar impositivamente cobrança pecuniária (exigível e autorizada por lei) ante o particular, desde que verificada a ocorrência do seu fato gerador.
Nisso, ao cabo e ao fim, o escopo essencial da arrecadação tributária (fundamentalmente quanto aos tributos não vinculados) é o de gerar receita para o Estado – viabilizando, com isso, não só execução de programas, prioridades e metas do governo em termos de políticas públicas, como também o custeio da máquina estatal de seu adequado funcionamento.
Vale ressaltar que, dentre as inúmeras classificações técnicas que a receita pública tem, a receita corrente tributária é a responsável pela arrecadação mais representativa feita pelo Estado em termos de numerário.
Conceituar Direito Tributário não é tarefa simples, ainda mais considerando suas várias nuanças e aspectos. Ainda assim, podemos afirmar que se trata de disciplina autônoma[17], que integra o Direito Financeiro[18], e que tem por escopo reger a atribuição/prerrogativa do Estado, face ao particular, quanto à possibilidade de exigir o pagamento de certa soma em dinheiro[19] (estipulada de acordo com princípios e critérios legalmente previstos) decorrente, também em virtude de lei, da verificação de determinada circunstância fática (fato gerador), abarcando as repercussões jurídicas, processuais e administrativas que daí advenham ou possam advir.
[1] Constituição Federal, artigos 145 e seguintes.
[2] BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2000.
[3] Nesse quesito, destaque para o artigo 11, da Lei Complementar nº 101/2000, ipisis literis:
Art. 11. Constituem requisitos essenciais da responsabilidade na gestão fiscal a instituição, previsão e efetiva arrecadação de todos os tributos da competência constitucional do ente da Federação.
Parágrafo único. É vedada a realização de transferências voluntárias para o ente que não observe o disposto no caput, no que se refere aos impostos
[4] BASTOS, Celso Ribeiro In: MATINS, Ives Gandra (Coord.). O Estado do Futuro. São Paulo: Pioneira, 1998.
[5] Face ao escopo do presente texto, a relação que aqui se trava entre o poder de império e a soberania está orientada por seu viés interno (supremacia), ainda que muito do que se diga tenha também se aplique ao seu aspecto externo (independência).
[6] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves In: MATINS, Ives Gandra (Coord.). O Estado do Futuro. São Paulo: Pioneira, 1998.
[7] Constituição Federal, art. 1º, I.
[8] Ver, por exemplo, o próprio CTN (Lei nº 5.712/196), a Lei nº 6.830/1980, a Lei Complementar nº 101/2000, o Decreto-lei nº. 1.735, de 20/12/1979 (que altera a Lei nº 4.320/1964 no tocante aos créditos da Fazenda Pública), a Lei nº 9.492/1997, Lei nº 9.430/1996, entre outras.
[9] HARADA, Kiyoshi. Direito Financeiro e Tributário. 22. ed. São Paulo: Atlas, 2013.
[10] MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O Espírito das Leis. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
[11] Idem. Op. Cit.
[12] O parágrafo primeiro, do artigo 1º da Constituição Federal assim prescreve: . Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. (Grifos meus).
[13] Nesse tocante, ao Direito Tributário, destaca-se o artigo 11, da Lei Complementar 101/2000 ao mencionar que: “constituem requisitos essenciais da responsabilidade na gestão fiscal a instituição, previsão e efetiva arrecadação de todos os tributos da competência constitucional do ente da Federação”.
[14] Idem. Op. Cit.
[15] MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2007.
[16] CASSONE, Vittorio, Direito Tributário. 23. ed. São Paulo: Atlas, 2012.
[17] Ainda que seja ramo do Direito Financeiro, a autonomia do Direito Tributário é indiscutível – seja pela existência constitucional do chamado Sistema Tributário Nacional, seja porque ele (o Direito Tributário) respeita um elenco de princípios basilares, também são previstos em nossa Carta Magna.
[18] Ver o conceito de Cassone, anteriormente apresentado.
[19] O artigo 2º do CTN refere “em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir”.