Nós, os juízes e a busca da sabedoria

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O direito de amar

Julgar com sabedoria, como vimos até agora, exige de nós engenho e arte, haja vista que, como nos diz Guimarães Rosa, pela boca do seu personagem Riobaldo:

Uma coisa é pôr ideias arranjadas, outra é lidar com um país de pessoas, de carne e sangue, de mil-e-tantas misérias... Tanta gente — dá susto de saber — e nenhum se sossega: todos nascendo, crescendo, se casando, querendo colocação de emprego, comida, saúde, riqueza, ser importante, querendo chuva e bons negócios... (1985, p. 14-15).

Pois é exatamente com esse país de pessoas, de mil-e-tantas misérias, que nós juízes temos que lidar diariamente. Portanto, os anais da Justiça não devem ser lidos com a indiferença de quem vê nos autos um mundo apartado da vida.

Um episódio que nos ajuda a ilustrar esse entendimento ocorreu no Estado de Santa Catarina, história que poderia perfeitamente intitular-se o direito de amar. Uma jovem, numa ação ajuizada perante a 4ª Vara Trabalhista de Florianópolis, exigia, entre outras coisas, uma indenização por danos morais do seu ex-empregador. Motivo: a política do banco em que trabalhara, segundo ela, era no sentido de impedir sistematicamente o trabalho de mulheres casadas. No caso da autora, esta nem casada era ainda, mas fora punida com a dispensa do emprego, simplesmente por ter externado o desejo de unir-se em matrimônio e exercer plenamente o seu direito de amar e ser amada. O resultado é que o Tribunal catarinense não somente acolheu a indenização pleiteada, mas também mostrou-se indignado com a prática discriminatória, como se percebe pela leitura de trechos do voto do Exmo. Juiz Relator, Antonio Carlos Facioli Chedid:

Os fatos vividos e sofridos, em longos anos de magistratura, não podem ser apagados da mente do juiz, sob a vã alegação de que o que não está no autos não existe no mundo jurídico, de sorte que realidade é mais pujante do que a ficção do legislador.

(...)

A despedida fundada no fato de que a autora iria contrair matrimônio, como de fato ocorreu, violenta um dois direitos fundamentais do homem e da mulher, que consiste em unir-se legalmente para a formação da célula social. Nem os bárbaros mantinham tratamento tão odioso e repudiável.

(...)

Como — e não posso me quedar inerte a perguntar — é possível destruir ou tentar evitar um dos maiores sentimentos do homem, que é o amor e seu desejo de união, pela via indireta da prática de atos obstativos desse direito natural e religioso de amar? Será que a lei, dita tuitiva, notadamente da mulher, pode ser interpretada de maneira a desfavorecer quem ela visa a proteger? A evidência e a lógica do razoável ensinam que não. O empregador não detém tamanho e tão odioso poder.20


A arte do timoneiro

Wright Mills, citado por Rubem Alves, que o tem na conta de um sociólogo sábio, comparou nossa civilização a uma galera a singrar os mares. Os remadores, nos porões, remam com precisão cada vez maior. Dispõem, dia após dia, de remos novos e mais sofisticados, e aprendem tudo sobre a ciência de remar. Tudo isso contribui para uma considerável aceleração do ritmo das remadas e, por conseguinte, da velocidade da embarcação. Todavia, quando indagados sobre o destino para onde navegam, os remadores respondem: “O porto não nos importa. O que importa é a velocidade com que navegamos.” (apud ALVES, 1999, p. 75).

Esta alegoria me traz à mente o tal do rito sumaríssimo. Nós, os juízes, os remadores. Alguns já exaustos de tanto remar. Lembro, agora, ter ouvido de uma colega, que sua filha pequena tinha raiva dos processos em que a mãe se esfalfava de tanto trabalhar, o que era perfeitamente compreensível, visto que eram eles os responsáveis por roubar-lhe o aconchego materno. E por isso a menina queria matar os autos a pauladas. Mas, como eu ia dizendo, apesar de já assoberbados de trabalho e dispondo da mesma estrutura operacional anteriormente oferecida, aos juízes foi imposto um novo ritmo para as remadas, mas, notem bem, apenas para as da fase de conhecimento. Aos remadores não sobrou outra alternativa senão obedecer à cadência determinada pelo comandante da galera: mais depressa, mais depressa!

Mas não estamos aqui para tratar do rito sumaríssimo, e sim da busca da sabedoria. Como se percebe pela metáfora do sociólogo Wright Mills, a sabedoria não deriva do aperfeiçoamento técnico ou científico. Daí por que o sábio não é quem se dispõe a executar o ofício do remador, mas, como esclarece, logo em seu prólogo, o Livro dos Provérbios, é aquele que procura aprender a arte do timoneiro.21

Decerto é para aprendermos um pouco mais dessa arte que estamos aqui, reunidos num evento que, sabiamente, foi batizado de encontro. Para tanto trouxemos família e convidamos amigos ilustres para partilharem conosco seu saber. É interessante que para conseguirmos nos encontrar tivemos até que, temporariamente, largar de mão nossa Província para tomarmos parte neste autêntico retiro, junto a este cenário paradisíaco, e isto também pode ser tomado como sinal de sapiência, pois o caminho da sabedoria não deixa de ser o da busca do paraíso.

Falando em paraíso, e como a nossa proposta foi uma reflexão a partir dos ensinamentos bíblicos, creio que a paisagem que nos circunda pode nos ensinar mais de sabedoria do que qualquer palavra que possamos falar. Contemplá-la é entoar com o Salmista:

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Os céus narram a glória de Deus, o firmamento proclama a obra de suas mãos. O dia transmite a mensagem ao dia, e a noite a faz conhecer à noite. Não é um discurso, não há palavras, não se lhes ouve a voz. [Apesar disso] Sua harmonia se estende sobre toda a terra, e sua linguagem, até as extremidades do mundo.22 (Salmo 19, 2-5).

E para quem pensa que essa atitude contemplativa de busca da sabedoria é exclusividade dos anacoretas, invoco, como arremate de tudo o que foi dito até o momento, as sábias palavras de Carnelutti. Este, indagando a si próprio como pode fazer o juiz ser melhor daquilo que é, chega à seguinte conclusão:

A única via que lhe é aberta a tal fim é aquela de sentir a sua miséria; precisa sentirem-se pequenos para serem grandes. Precisa forjar-se uma alma de criança para poder entrar no reino dos céus. Precisa a cada dia mais recuperar o dom da maravilha. Precisa, cada manhã, assistir com a mais profunda emoção ao surgir do sol e, cada tarde, ao seu ocaso. Precisa, cada noite, sentir-se humilhado ante a infinita beleza do céu estrelado. Precisa permanecer atônito ao perfume de um jasmim ou ao canto de um rouxinol. Precisa cair de joelhos frente a cada manifestação desse indecifrável prodígio, que é a vida. (1995, 34-35).


REFERÊNCIAS

A BÍBLIA. TEB, Tradução Ecumênica São Paulo: Edições Loyola & Paulinas, 1996.

A BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Sociedade Bíblica Católica Internacional e Paulus, 1995.

AGOSTINHO, Santo. Solilóquios e a vida feliz. São Paulo: Paulus, 1998.

ALVES, Rubem. Entre a ciência e a sapiência, o dilema da educação. São Paulo: Ed. Loyola, 1999.

BAUER, Johannes B. Dicionário Bíblico-teológico. São Paulo: Ed. Loyola, 2000.

CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por um advogado. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. Campinas - SP: Conan Editora, 1995.

GOLEMAN, Daniel. Inteligência Emocional. Rio de Janeiro: Objetiva, 1995.

LIMA, Carlos Henrique da Rocha; BARDADINHO NETO, Raimundo. Manual de redação. 3 ed. Rio de Janeiro: FENAME, 1982.

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1993.

MIAILLE, Michel. Introdução Crítica ao Direito. 2. ed. Lisboa, Editorial Estampa, 1994.

NALINI, José Renato. Ética geral e profissional. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1997.

O PODER DA SABEDORIA, Coleção O poder do poder. Martin Claret, S. Paulo, 1997.

ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 18 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

SANFORD, John A. Os Parceiros Invisíveis. São Paulo: Paulinas, 1986.

SANTO AGOSTINHO. Os Pensadores. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1980.

TÉVOÉDJRÈ, Albert. A pobreza, riqueza dos povos. São Paulo/Petrópolis: Cidade Nova/ Ed. Vozes, 1981


Notas

3 Art. 93, II, “c” da Constituição Federal.

4 V. art. 35. da Lei Complementar da LOMAN (Lei Complementar 35/79).

5 TRT 1ª Região MS 1.053/99 – Ac. SEDI 11.5.00. Red. Desig. Juiz Luiz Carlos Teixeira Bonfim, Revista LTr 64, outubro de 2000, p. 1316.

6 Ex 31, 2s e 35, 30s.

7 Jz 4, 5;

8 1Sm 25, 2s.

9 Pr 30, 18-19.

10 Pr 21, 9.

11 Pr 6, 6-11.

12 Pr 23, 29-35.

13 Pr 27, 22.

14 Pr 20, 12.

15 Pr 8, 22-31.

16 Pr 25, 11.

17 Pr 11, 2.

18 1 Rs 3, 5-9.

19 1Reis, 3, 16-27;

20 Ac. 12ª Reg. 1ª T 06637/96, 2.8.96 – Revista LTr 61-08, p. 1129-30.

21 Pr 1, 5.

22 Sl 19, 2-5.

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Sobre o autor
Antônio Cavalcante da Costa Neto

Juiz da Vara do Trabalho de Guarabira (PB). Professor da UEPB. Mestre em Direito pela UFPB (Universidade Federal da Paraíba). Autor dos livros "Direito, Mito e Metáfora: os lírios não nascem da lei" (Editora LTr), Bem-vindo ao direito do trabalho (Papel e Virtual) O sentido da vida (Publit Soluções Editoriais) e Lazer, direitos humanos e cidadania (Ed. Dialética).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Texto escrito para a abertura do I Encontro dos Juízes do Trabalho da Décima Terceira Região, realizado de 03 a 05 de novembro de 2001, no hotel Gavôa, na Praia de Maria Farinha, Igarassu – PE.

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