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Aspectos inconstitucionais da Lei de Improbidade Administrativa

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09/04/2015 às 12:34
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 5- A OFENSA O PRINCÍPIO DA INDIVIDUALIZAÇÃO DAS PENAS

Pelo princípio da individualização das penas a pena não pode passar da pessoa do infrator. Trata-se de princípio previsto nos incisos XLV e XLVI do art. 5º da Constituição Federal que dispõem:

XLV- Nenhuma pena passará da pessoa do condenado,podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido;

XLVI- a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes:

a)    privação ou restrição da liberdade;

b)    perda de bens;

c)    multa;

d)    prestação social alternativa;

e)    suspensão ou interdição de direitos;

...

É importante notar que os ilícitos administrativos e criminais, bem como as respectivas sanções são ontologicamente idênticos. Os termos pena e condenado são termos utilizados pelo direito punitivo em geral. É possível e corrente dizer que um servidor foi condenado e recebeu uma pena administrativa, ou que um contribuinte foi condenado em um processo administrativo fiscal e recebeu a pena de multa. A pena de perdimento de bens, por sua vez, pode também ser aplicada administrativamente como ocorre nos casos de bens provenientes de contrabando, descaminho, bens apreendidos pela vigilância sanitária em desconformidade com as regras de consumo, etc. Verifica-se, pois, tratar-se de princípio geral de direito punitivo. Esse também é o entendimento de Régis Fernandes de Oliveira:

É princípio do direito brasileiro a individualização da pena (art. 5º, XLVI, da C. F.). Não se pode afirmar que tal dispositivo apenas se aplica ao criminoso. Isso porque a Constituição não necessita descer a detalhes, nem disciplinar casos concretos. Dá limites ao legislador, impondo-lhe restrições. A interpretação restrita de tal dispositivo poderia levar à conclusão de que apenas está outorgando garantia ao réu de processo-crime, mas não pode ser esta a interpretação jurídica. É que a individualização da pena alcança toda e qualquer infração. É decorrência da interpretação lógica do todo sistemático do direito.

A constatação de que o princípio aplica-se ao direito punitivo em geral é relevante, pois o art. 12 prevê a aplicação de penalidade de “proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário”. Ao assim prever, a lei ofende o referido princípio, pois em virtude da conduta de um sócio pune uma sociedade que, conforme as regras de direito privado, não se confunde com a pessoa do sócio e ao fazer isso pune também os demais sócios que não participaram do ato ilícito. É importante perceber que uma mesma pessoa pode ser sócia de diferentes sociedades e com objetos diversos. A expressão sócio majoritário, por sua vez, não se identifica com o controlador, mas refere-se apenas ao detentor da maioria das quotas.

Ocorre que, conforme leciona Fábio Medina Osório 

a pena administrativa somente pode atingir a pessoa sancionada, o agente efetivamente punido, não podendo ultrapassar de sua pessoa.

Pessoalidade da sanção administrativa veda, por certo, a chamada responsabilidade solidária, ainda que estabelecida por lei, porque a lei não pode violentar um princípio constitucional regente do Direito Administrativo Sancionador.

O ensinamento transcrito acerca de sanções administrativas é plenamente aplicável à lei de improbidade, sendo por essa razão o dispositivo em comento inconstitucional nesse particular.


 6- A INCONSTITUCIONALIDADE DAS PENAS DE PAGAMENTO DE MULTA CIVIL, PROIBIÇÃO DE CONTRATAR CONTRA O PODER PÚBLICO  E DE PROIBIÇÃO DE RECEBER INCENTIVOS FISCAIS OU CREDITÍCIOS

As penas de pagamento de multa civil, proibição de contratar com o poder público, proibição de receber incentivos fiscais ou creditícios são inconstitucionais por não estarem expressamente previstas no § 4º do art. 37 da Constituição Federal.

De fato, a lei de improbidade ao normatizar o § 4º do art. 37 da Constituição Federal foi além do permitido pela Constituição Federal. Esta prevê somente quatro espécies de sanção: a) suspensão dos direitos políticos; b) perda da função pública; c) indisponibilidade dos bens; d) ressarcimento ao erário.

Além dessas penalidades a lei de improbidade estabeleceu as seguintes: anulação do ato, perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, pagamento de multa civil, proibição de contratar com o poder público, proibição de receber incentivos fiscais ou creditícios.

A anulação do ato ilícito não é propriamente uma penalidade, mas sim um pressuposto necessário para que surja o dever de indenizar. A perda dos valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, por sua vez, não pode ser considerada como penalidade efetiva, mas sim como expressão da regra geral de vedação ao enriquecimento sem causa que permeia todo o ordenamento jurídico. As demais penalidades, no entanto, não poderiam ter sido cominadas pela lei de improbidade administrativa. Não há óbice ao fato de serem aplicadas administrativa ou criminalmente se a lei assim estabelecer. Tornam-se inconstitucionais, no entanto, quando estabelecidas para a punição de atos de improbidade.

Isso ocorre porque a redação do parágrafo é imperativa ao dispor que os atos de improbidade administrativa “importarão” e permite apenas que a aplicação dessas quatro penalidades se dê na forma e gradação previstas em lei. A linha interpretativa ora proposta ganha corpo quando se verifica que o dispositivo que ora se comenta excepcionou expressamente as penalidades criminais ao dizer em sua parte final “sem prejuízo da ação penal cabível”. Verifica-se que a Constituição Federal estabelece claramente quatro penalidades para os atos de improbidade e que a única exceção admitida dá-se quando uma mesma conduta além de ímproba for tipificada criminalmente. Devem, portanto, ser consideradas inconstitucionais por ofensa ao § 4º do art 37 da Constituição Federal as penas de pagamento de multa civil, proibição de contratar com o poder público, proibição de receber incentivos fiscais ou creditícios.


7- A LIMITAÇÃO À LIBERDADE DO LEGISLADOR AO TIPIFICAR CONDUTAS E ESTABELECER PENALIDADES 

Afirma Fernando Capez que:

Além da necessidade de estar previamente definida em lei, a conduta delituosa necessita ter conteúdo de crime, já que o Estado Democrático de Direito não pode admitir que alguém seja punido por ter praticado uma conduta inofensiva. Não se pode admitir descompasso entre a vontade imperiosa do Estado e o sentimento social de justiça.

O raciocínio feito pelo autor em relação ao direito criminal é também aplicável à improbidade administrativa. O art. 10 da lei de improbidade administrativa afronta esse aspecto, pois prevê em abstrato as mesmas penas para condutas praticadas com dolo ou culpa.

Há que se atentar também para o princípio da proporcionalidade da pena. Por intermédio desse princípio exige-se que casos mais graves sejam apenados de maneira mais severa. Fernando Capez leciona a esse respeito que a resposta punitiva estatal ao crime deve guardar proporção com o mal infligido ao corpo social. Deve ser proporcional à extensão do dano, não se admitindo penas idênticas para crimes de lesividades distintas, ou para infrações dolosas e culposas.

Havendo penalidades idênticas para as modalidades dolosa e culposa de um mesmo crime, segundo o autor, haveria inconstitucionalidade por ofensa ao princípio do Estado de Direito previsto no caput do art. 1º da Constituição Federal e também ao princípio da dignidade da pessoa humana previsto no inciso III do caput do mesmo artigo. É que em um Estado de Direito não se pode conceber que crime seja tão somente aquilo que o legislador deseja, sem que se possa efetuar qualquer controle sobre o conteúdo da norma. O fato típico depende da forma e do conteúdo. Não se pode pretender que o constituinte, ao conferir ao legislador a possibilidade de incriminar condutas, tenha a ele atribuído a possibilidade de criar penas desarrazoadas ou sem qualquer relação com a gravidade do ilícito praticado. Trata-se, portanto, o princípio da proporcionalidade da pena de decorrência lógica do princípio da legalidade, da reserva legal, do devido processo legal em sua faceta substantiva e da individualização das penas.


8- A INCONSTITUCIONAL PREVISÃO EM LEI FEDERAL DE REQUISITOS PARA EXERCER CARGOS PÚBLICOS NOS DEMAIS ENTES FEDERADOS.

A lei de improbidade prevê em uma lei federal requisito para a posse, exercício de cargos públicos e demissão em todos os órgãos da Administração Pública de todos os entes federados. O caput do art. 13 da lei que ora se comenta que exige a apresentação de declaração de bens e valores e o § 3º do mesmo artigo pune com demissão a recusa em apresentá-la. Ambos os dispositivos demandam uma interpretação conforme, pois requisitos como esses somente podem ser estabelecidos por lei de cada um dos entes federados. Somente podem ser aplicados à União Federal.


9- A INCONSTITUCIONALIDADE DE EXIGIR DECLARAÇÃO DE BENS DE TERCEIROS COMO CONDIÇÃO PARA O EXERCÍCIO DE CARGOS PÚBLICOS

O § 1º do art. 13 da lei de improbidade impõe que a declaração de bens, “quando for o caso”, abranja “bens e valores patrimoniais do cônjuge ou companheiro, dos filhos e de outras pessoas que vivam sob a dependência econômica do declarante”. Trata-se de dispositivo inconstitucional

Exigir declaração que abranja o patrimônio de terceiros é inconstitucional por afronta ao inciso X do art. 5º da Constituição Federal. É lícito exigir daquele que pretende exercer algum tipo de função pública que preencha certos requisitos. Trata-se de um ônus daquele que almeja esse tipo de posição. O mesmo não pode ser dito em relação aos terceiros. Estes podem até mesmo recusar-se a fornecer dados ao agente público, eis que têm a intimidade e a privacidade constitucionalmente protegidas.


10- CONCLUSÃO 

Diante de todo o exposto, verifica-se claramente a inconstitucionalidade da lei de improbidade administrativa.

A inconstitucionalidade decorre, em primeiro lugar, da elaboração de uma lei federal sobre um tema que é da competência de cada um dos entes federativos. Em segundo lugar surge pela instituição de uma modalidade dolosa de ilícito de improbidade administrativa no art. 10 da lei n° 8.429/92. Em terceiro lugar, o caput do art. 11 ofende o princípio da tipicidade, pois elencou a ofensa a princípios da Administração Pública como modalidade de improbidade. Esses princípios, no entanto, possuem um conteúdo extremamente aberto e não satisfazem o requisito da tipicidade para a instituição de ilícitos.

A ofensa à tipicidade também decorre da incerteza das sanções previstas no art. 12 da lei n° 8.429/92. Conforme se demonstrou o inciso I tem mais de 120.000.000.000.000.000 de combinações de penas possíveis. O inciso II tem mais de 52.900.000.000.000.000.000 combinações de penas possíveis. O inciso III, por fim, tem mais de 54.700.000.000.000.000 combinações de penas possíveis.

A quarta ofensa também é feita pelos incisos do art. 12 da lei n° 8.429/92 ao instituírem penas que vão além das pessoas dos réus em ofensa aos incisos XLV e XLVI do art. 5º da Constituição Federal.

A quinta ofensa é feita pelos incisos do art. 12 da lei n° 8.429/92 que extrapolaram as modalidades de penas previstas pelo § 4º do art. 37 da Constituição Federal, vindo, por isso, a ofendê-lo.

A sexta ofensa é feita pelo inciso II do art. 12 da lei n° 8.429/92, que prevê as mesmas modalidades de penas para as condutas culposa e dolosa, ofendendo assim o princípio da proporcionalidade das penas, eis que os únicos critérios a serem sopesados pelo juiz ao aplicar a pena, nos termos do parágrafo único do referido artigo, são a extensão do dano e o proveito patrimonial obtido pelo agente.

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A sétima ofensa consiste na previsão estabelecida no art. 13 da lei n° 8.429/92 de um requisito para a posse e exercício de cargos públicos nos demais entes federados, em afronta ao art. 18 da Constituição Federal.

A oitava ofensa é feita pelo § 1º do art. 13 da lei n° 8.429/92 que determina que a declaração de bens abranja bens e valores do cônjuge, companheiro ou filho que vivam sob a dependência econômica do declarante. Trata-se de dispositivo que ofende o inciso X do art. 5º da Constituição Federal.

Diante de todo o exposto, a inconstitucionalidade da lei de improbidade administrativa fica evidente. Trata-se de um diploma legal odioso que deve ser combatido por todos aqueles que acreditam no Estado de Direito.


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 Summary: The article analyzes the constitutionality of the law nº 8.429/93. Beginning in the constitution it shows that there is a lack of competence by the federal government to edict it. It also shows that many articles of that law are against the brazilian constitution.

Keywords: "Administrative Misconduct" / "Unconstitutional" / "Principle" / "Corruption" / "Morality"

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HARGER, Marcelo. Aspectos inconstitucionais da Lei de Improbidade Administrativa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4299, 9 abr. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/32391. Acesso em: 18 abr. 2024.

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