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Inundação e perigo de inundação

01/10/2014 às 15:26
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O presente artigo estuda os dois crimes, de inundação e de perigo de inundação, fazendo abordagem em institutos como o da tentativa.

I – CRIME DE INUNDAÇÃO

No Código Imperial, o crime de inundação era desconhecido, somente o considerando como circunstância agravante.

Foi a inundação definida no artigo 142 do Código de 1890, quando se dizia: “Causar inundação da propriedade ou expô-la a esse ou outro perigo, abrindo comportas, rompendo represas, açudes, aquedutos ou destruindo qualquer obra de defesa comum”.

O Código de 1940, em seu artigo 254, define o crime de inundação:

Art. 254 - Causar inundação, expondo a perigo a vida, a integridade física ou o patrimônio de outrem:

Pena - reclusão, de três a seis anos, e multa, no caso de dolo, ou detenção, de seis meses a dois anos, no caso de culpa.

O núcleo do crime é causar inundação. No ensinamento de Magalhães Noronha(Direito penal, volume III, 10ª edição, pág. 377) deve, pois, o agente com sua conduta causar inundação, havendo a necessidade do nexo causal.

A conduta prevista é causar (provocar, motivar, produzir) inundação, entendendo-se ela como “o alagamento de um local de notável extensão, não destinado a receber águas”, como ensinou Nelson Hungria (Comentários ao código penal, volume IX, 1959, pág. 48) ou “o alagamento provocado pela saída das águas de seus limites naturais ou artificiais, em volume e extensão tais que ocasionem perigo comum”, como lecionou Heleno Cláudio Fragoso(Lições de direito penal, parte especial, volume III, 1965, pág. 791).

A inundação pode ser causada pelo desvio do curso de uma corrente e por outros meios, pelo aumento repentino do caudal que naturalmente corre pelo talvegue de um rio e arroio.

Na linha do ensinamento de Maggiore, exposta por Magalhães Noronha (Obra citada, pág. 378), “inundação é o extravasar, o alagar das águas, com a abundância e ímpeto, fora dos diques, defesas ou de outros limites de modo que constitui um perigo para as pessoas e para as coisas”. Será crime, como disse Manzini, “o alagamento devido à invasão de águas, impetuosa ou lenta, instantânea ou continuada, em lugar não destinado, de modo absoluto ou no tempo do fato, a recebê-las, e por uma extensão considerável ou em condições tais de constituir um perigo para toda a população do lugar ou para um número indeterminado de pessoas”. Em verdade, como disse Fabbrini Mirabete (Manual de direito penal, volume III, 22ª edição, pág. 74), exige-se que haja um extravasamento acentuado de águas de modo a causar perigo.

Assim requisitos para o crime de inundação serão: a quantidade de águas e o perigo por elas causado.

De toda sorte, causar inundação é conduta típica. Causar significa dar causa, promover, provocar, produzir, motivar, por qualquer meio, a invasão ou alagamento pelas águas de lugar não destinado a conte-las. Tal invasão ou alagamento, que é consequência da força natural da água, provocada pelo agente, pode ser violenta, como se vê no rompimento de dique, ou ainda lenta, como se dá com o represamento, instantânea ou continuada. Sendo assim caracteriza o crime provocar o aumento da inundação preexistente, como ensinou Heleno Cláudio Fragoso (Lições de direito penal, volume III, 1981, pág. 172).

O crime é de perigo concreto, sendo indispensável a comprovação do risco à incolumidade pública. Assim não será crime no caso de alagamento em que se afetou apenas o patrimônio de duas pessoas, não trazendo prejuízo nem ameaça de dano a um número indeterminado de pessoas (RT 175/122). Quando não ocorrer o perigo comum, pode haver, de forma residual, o crime de dano(artigo 163) ou ainda o de usurpação de águas (artigo 161, § 1º, do CP) que são crimes contra o patrimônio. Por sua vez, causar inundação em lugar sujeito a administração militar, expondo a perigo à vida, à integridade física ou o patrimônio de outrem é crime militar(artigo 272 do Código Penal Militar).

Agente do crime é qualquer pessoa capaz de provocar a inundação.

Não há o crime sem o dolo genérico, bastando a vontade de provocar a inundação.

Pode o crime ser causado por comissão ou omissão como o caso do agente abrir involuntariamente uma brecha de um dique e não reparar, quando possível, com o intuito de provocar a inundação, como revelou Magalhães Noronha(Obra citada, pág. 495).

O crime se dá como consumado com o perigo à vida, à integridade física ou patrimônio de outrem quando já está concretizada a inundação.

Entende-se que pode ocorrer a tentativa.

Sabe-se que a tentativa situa-se no iter criminis a partir da prática de um ato de execução, desde que não haja consumação por circunstâncias alheias à vontade do agente. São elementos da tentativa: a conduta(ato de execução) e a não-consumação por circunstâncias independentes da vontade do agente. Assim iniciada a prática dos atos executórios, a execução do fato típico pode ser interrompida, seja pelo desejo do agente ou ainda por circunstâncias alheias à vontade do sujeito ativo. Na primeira hipótese, não há uma tentativa, havendo que se falar em desistência voluntária ou arrependimento eficaz (aliás, a impunidade da desistência e do arrependimento não pode ter outra significação que não a renúncia efetuada pelo direito em razão dos mesmos fazerem desaparecer o perigo que é criado pela tentativa). Na segunda, por interrupção externa, haverá tentativa, que pode ser perfeita (ou crime falho), quando a consumação não ocorre, apesar de ter o agente praticado os atos necessários à produção do evento ou imperfeita, quando o sujeito ativo não consegue praticar todos os atos necessários à consumação por interferência externa. Lembre-se que o elemento subjetivo da tentativa é o dolo do delito consumado, sustentando a doutrina a possibilidade de se falar em tentativa com dolo eventual. Adotam-se os ensinamentos de  Eugênio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangelli(Da tentativa, 1981, pág. 54). Dizem eles: “1) tentaram, primeiramente, identificar o “começo de execução”, com o inicio da ação típica(teoria objetiva-formal), o que, por reduzir demasiadamente o âmbito dos atos executórios, levou a que 2) outros tentassem incluir dentro deles, também os atos imediatamente anteriores ao inicio da ação típica(teoria objetivo-material), apelando, para tanto, ao critério de um terceiro observador, o qual se valeria da concepção natural “uso da linguagem”(variante de Frank), o que os tornava demasiadamente amplos, dando lugar a  que, 3) logo depois, se pensasse em combiná-los para atender ao plano concreto do autor(teoria objetivo-individual), que nos parece se aproximar da realidade, embora tenhamos, ainda, um longo caminho a percorrer”. Mas a tentativa é um delito imperfeito, consistindo na falta de uma parte da tipicidade objetiva, sem alterar a estrutura global do delito. Mas, afaste-se a tentativa da desistência voluntária(artigo 15) e do arrependimento eficaz. Na desistência voluntária, refere-se a lei aos casos de tentativa abandonada, que, por razões de política criminal, se estimula o agente ao não consumar o delito. Seja num caso como no outro há uma exclusão da tipicidade, não havendo tentativa típica. Na desistência voluntária, o agente, embora tenha iniciado a execução, não a leva adiante, desistindo da realização típica, devendo a desistência ser voluntária, de forma que o agente não tenha sido coagido, moral ou materialmente, à interrupção do iter criminis. Mas inocorre a desistência voluntária, se o agente, depois de já ter iniciado a execução do delito, percebe os riscos que assumirá caso prossiga em seu intento e, pressentindo a impossibilidade do êxito da empreitada criminosa, conclui que não há  outra alternativa senão fugir (RT 695/389). Por sua vez, no arrependimento eficaz, há  hipótese de inadequação típica da tentativa, pois após ter esgotado os meios de que dispunha para a prática do crime, o agente arrepende-se e evita que o resultado ocorra. Como tal o arrependimento deve ser voluntário(sem coação), embora não necessariamente espontâneo. A ação do agente, no arrependimento eficaz, deve ser coroada de êxito. Como na desistência voluntária, o agente responderá pelos atos já praticados, pelos resultados já ocorridos.

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Mas, registre-se, como ensina Heleno Cláudio Fragoso (Obra citada, pág. 172),  “a tentativa do crime de inundação pode corresponder materialmente ao crime de perigo de inundação consumado(como, por exemplo, na forma de destruição de diques ou barragens). A diferença entre um e outro caso reside no elemento subjetivo, pois no perigo de inundação o agente não quer o alagamento nem assume o risco de produzi-lo”.

Há formas qualificadas pelo resultado, quando ocorrer lesão corporal grave ou morte (artigo 258).

Há previsão de inundação culposa quando ocorrerem imprudência, imperícia ou negligência. Aliás, nessa modalidade, incide o instituto da transação, cuidando-se de pena máxima não superior a dois anos. A suspensão condicional do processo cabe na modalidade culposa desde que não resulte morte (CP, artigo 258 e ainda artigo 89 da Lei nº 9.099/95).


II – CRIME DE PERIGO DE INUNDAÇÃO

Como ensinou Magalhães Noronha(obra citada, pág. 179), o crime do artigo 255 do Código Penal é dispositivo que, aperfeiçoado, corresponde à segunda parte do artigo 142 da Consolidação das Leis Penais com correspondente no artigo 427 do Código Italiano.

Qualquer pessoa poderá provocar o crime, podendo ser o proprietário do imóvel onde se efetiva a ação causal de perigo, aliás, diz o artigo 254 do CP, o que significa que tal pessoa não o possa ser. Mas o que tem a lei em conta é o perigo coletivo. Diz-se no artigo 255 do CP:

Remover, destruir ou inutilizar, em prédio próprio ou alheio, expondo a perigo a vida, a integridade física ou o patrimônio de outrem, obstáculo natural ou obra destinada a impedir inundação:

Pena - reclusão, de um a três anos, e multa.

Cabe para esse crime o instituto da suspensão condicional do processo previsto no artigo 89 da Lei nº 9.099/95.

Trata-se de crime de perigo concreto que pode ocorrer através da ação física que pode dar-se por mais de um modo: remover, destruir ou inutilizar. Remover é transferir, deslocar, afastar etc. Com ele, o agente muda de lugar o obstáculo ou obra: remove-o. Destruir é ação que recai sobre a coisa de modo que a faça perder a essência ou forma primitivas, atentando-se contra a existência, de forma que a coisa deixa de existir. Inutilizar é tornar vão, improfícuo e estéril, continuando o objeto a existir, porém não mais possui serventia, como alertou Magalhães Noronha(Obra citada, pág. 380).

Há crime militar se praticado o fato em lugar sujeito à administração militar(artigo 273 do CPM).

Mas qualquer dessas ações deve recair sobre obstáculo natural  ou obra destinada a impedir inundação. Assim, com o obstáculo , a norma penal se refere à defesa da proteção criada pela própria natureza, por exemplo, as margens de um rio, que, escavadas e rebaixadas, fazem-no transbordar e correr, fora de seu álveo , pondo em risco a incolumidade pública. Mas há obra destinada a impedir a inundação que é a agenciada pelo homem, como diques, barragens, comportas etc com o objetivo de evitar a invasão de águas.

O crime se consuma com a criação de um perigo, quando surge ou se instala a situação perigosa, que pode não ser concomitante às ações previstas na lei. Acentua Magalhães Noronha(Obra citada, pág. 380) que  “o momento da ruptura pode não coincidir com o do perigo manifesto, como no caso de perfuração do dique de um rio, com vistas à cheia iminente, ou na hipótese de simples enfraquecimento de uma barragem, visando-se ao desmoronamento pela pressão das água ou pela ação das chuvas”,

Exige-se o dolo genérico, vontade livre de efetuar uma das ações previstas.

Magalhães Noronha(Obra citada, pág. 380) não crê possível a tentativa no crime estudado. No crime de inundação o agente quer a inundação sabendo do perigo comum que ela acarretará; ao passo que no crime de perigo de inundação, ele não quer a inundação; o elemento volitivo se dirige apenas a uma das ações mencionadas no artigo e como disse Magalhães Noronha, “não é fácil admitir-se que alguém tente o que não quer de forma a ser inadmissível a tentativa de perigo de inundação. Não se pode falar em tentativa, com dolo eventual e, em consequência, em tentativa de inundação e sim do delito em discussão”. Para tanto, disse Mirabete(Obra citada, pág. 72) que “é de convir, porém, que o agente pode iniciar a remoção do obstáculo, por exemplo, ciente de que pode ocorrer perigo comum, sem querê-lo, ocasião em que é impedido de continuar”. Da mesma forma, Celso Delmanto, Roberto Delmanto e outros(Código penal comentado, 6ª edição, pág. 529) entendem que o instituto aqui é inadmissível.

Nelson Hungria(Comentários ao Código Penal, volume IX, pág. 48) afirmou que se imputarão ao agente, em concurso formal, os delitos de perigo de inundação e de inundação culposa. Tal posição, apoiada por Magalhães Noronha(Obra citada, pág. 380), é refutada por Mirabete(Obra citada, pág. 76) para quem  “há na hipótese apenas um resultado que é o perigo comum haja ou não a inundação e não há que se falar em concurso formal com apenas esse resultado”.

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. Inundação e perigo de inundação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4109, 1 out. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/32482. Acesso em: 22 nov. 2024.

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