Abolicionismo animal: quebra de paradigmas.

Proposta de mudança hermenêutica evolutiva constitucional face aos direitos dos animais

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01/10/2014 às 22:18
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3 RECOSTRUINDO O CONCEITO DE SUJEITOS DE DIREITOS

A seguir, serão discutidas as propostas de Peter Singer e Thomas Regan como formas de se estender o princípio da dignidade da pessoa humana aos animais, analisando-se a perspectiva de serem considerados sujeitos de direitos, abordando-se a possibilidade jurídica de sua presença em Juízo bem como os limites do direito dos animais.

3.1 Propostas de extensão do principio da dignidade humana para os animais

Para Kant apenas homem possui a faculdade de agir. Neste sentido, é exclusivo para o homem possuir o atributo dignidade e, consequentemente sujeitos de direitos. Foi esta idéia que levou o filósofo a sustentar que todos os nossos deveres relativos aos animais são meramente indiretos

[...] o homem, e em geral todo ser racional, existe como fim em si, não apenas como meio, do qual esta ou aquela vontade possa dispor a seu talento; mas, em todos os seus atos, tanto nos que se referem a ele próprio, como nos que se referem a outros seres racionais, ele deve sempre ser considerado ao mesmo tempo como fim [...].

Para ele os animais não têm consciência de si e existem apenas como meio para o fim. Esse fim é o homem.

[...] Os seres, cuja existência não depende precisamente de nossa vontade, mas da natureza, quando são seres desprovidos de razão, só possuem valor relativo, valor de meios e por isso se chamam coisas. Ao invés, os seres racionais são chamados pessoas, porque a natureza deles os designa já como  fins em si mesmos, isto é, como alguma coisa que não pode ser usada unicamente como  meio, alguma coisa que, conseqüentemente, põe um limite, em certo sentido, a todo livre arbítrio (e que é objeto de respeito). Portanto, os seres racionais  não são fins simplesmente subjetivos, cuja existência, como efeito de nossa atividade, tem valor para nós; são fins objetivos, isto é, coisas cuja existência é um fim em si mesma, e justamente um fim tal que não pode ser substituído por nenhum outro, e ao serviço do qual os fins subjetivos deveriam pôr-se  simplesmente como meios, visto como sem ele nada se pode encontrar dotado de valor absoluto.

Neste contexto, o Humano, sendo ser racional (pessoa humana), possui valor absoluto em si mesmo, sendo assim, possuidor de direitos subjetivos e assegurados pelo Estado. Esta concepção coloca o homem como ser supremo e digno de qualquer direito e exclui os animais de qualquer proteção.

Rene Descartes influenciou de forma veemente este pensamento de excluir o animal das preocupações morais humanas. O filósofo considera plausível a exploração dos animais, já que os mesmo são destituídos de sentimentos e incapazes, comparando-os a meras maquinas, não possuindo razão e, portanto, valor intrínseco.

Essa concepção corroborou com as diversas formas de crueldade e exploração contra os animais, uma vez que ignorou o seu aparente sofrimento em benefício do homem.

No entanto, vem ganhando força a corrente que afirma um antropocentrismo excessivo, já que restringe a dignidade somente aos seres humanos.

Essa doutrina defende a concepção de sujeitos de direitos todos os seres que possui valor em sua existência. Nesse diapasão, ampliar-se-á o conceito Kantiano da pessoa para conceber dignidade para além o ser humano. Desta forma, a dignidade não seria atributo exclusivo do homem, mas sim de todas as espécies.

3.1.1 Proposta de Peter Singer

Inicialmente, a preocupação que se constata com o direito dos animais, limita-se em assegura-lhes tratamento humanitário, a fim de evitar sofrimentos “desnecessários”.

Somente, após a década de setenta eis que surge uma nova filosofia reivindicando uma posição mais avançada em relação aos animais.

Peter Singer foi o precursor desse movimento quando lançou o livro “Libertação Animal”. Neste livro ele denuncia os abusos em que os animais são submetidos em suas diferentes formas, além de demonstrar que essas atividades violam o princípio fundamental de justiça, haja vista sua teoria de igual consideração de interesses[31].

Singer defende a extensão do princípio da igualdade a animais não humanos. Em sua obra, ele inicia comparando o direito dos animais com o tão conquistado direito das igualdades das mulheres.

São inegáveis as diferenças entre homem e mulher e isso ocasiona direitos distintos. Por exemplo: muitas feministas apoiam o direito ao aborto, mas não há que se atribuir o mesmo direito ao homem, uma vez que não há como praticá-lo. Dessa mesma forma, como cães não podem votar, não há sentido em se afirmar sobre o direito de eles votarem. O Autor alerta que direito à igualdade não deve se limitar a questões absurdas como essas.

O princípio sustentáculo da igualdade não exige tratamento igual, senão igual consideração.

 Na Constituição brasileira diz que todos os seres humanos, sem distinção de etnia, credo, ou sexo, são iguais. Mas, afinal o que se está afirmando? Sabe-se que não há possibilidade de todos os serem humanos serem iguais: cada um tem feitios, interesses, capacidades dentre outras características que se distinguem. Sendo assim, não se pode basear a igualdade efetiva com a exigência de igualdade real. Embora seja possível dizer que seres humanos são diferentes como indivíduos, mas na há diferença entre etnias e sexos como tais. Partindo do mero fato de uma pessoa ser negra ou mulher, nada se pode inferir sua capacidade intelectual ou moral. E, por esse motivo, pode-se argumentar que o racismo e o sexismo são errados.

Peter Singer baseia sua argumentação de defesa dos animais no Princípio da Igual Consideração de Interesses, no qual se fundamenta a igualdade de todos os seres humanos. Este princípio inclui todos os seres numa moralidade universal, que por sua vez, não se baseia em característica como raça, sexo ou grau de inteligência dos envolvidos. (SINGER, 2002, p. 65).

Neste compasso, todos os seres, a propósito deste trabalho, receberiam o atributo igualdade, e conseqüentemente se efetivariam como sujeitos de direitos.

Mas nota-se, utilizar esse princípio em prol dos animais não significa que animais e seres humanos devam ser considerados iguais e, por isso, merecem tratamento igual. Até porque, os próprios seres humanos não são iguais.

Significa, sim, comparar seus interesses. O artefato basilar desse princípio é levar em conta os interesses de cada ser, sejam quais forem, os quais devem receber o mesmo peso dos interesses iguais de qualquer outro ser, e os interesses de seres humanos e animais igualam-se na aversão que ambos têm ao sofrimento.

Muitos já encararam que o princípio da igual consideração de interesses como preceitos moral fundamental; porém, poucos reconhecerem a extensão deste princípio. No livro Libertação Animal, Singer cita Jeremy  Betham (1748-1832) e diz que ele foi um dos poucos que compreendeu isso e escrevera:

Talvez chegue o dia em que o restante da criação animal venha a adquirir os direitos que jamais poderiam ter-lhe sido negados, a não ser pela mão da tirania. Os franceses já descobriram que o escuro da pele não é motivo para que um ser humano seja irremediavelmente abandonado aos  caprichos de um torturador. É possível que algum dia se reconheça que o número de pernas, a vilosidade da pele ou a terminação do osso sacro são razões igualmente insuficientes para se abandonar um ser senciente ao mesmo destino. O que mais deveria traçar a linha intransponível? A faculdade da razão, ou, talvez, a capacidade da linguagem? Mas um cavalo ou um cão adultos são incomparavelmente mais racionais e comunicativos do que um bebê de um dia, uma semana, ou até mesmo um mês. Supondo, porém, que as coisas não fossem assim, que importância teria tal fato? A questão não é ‘Eles são capazes de raciocinar?’, nem ‘São capazes de falar?’, mas, sim: ‘Eles são capazes de sofrer?’                                

Neste diapasão, a capacidade de sofrimento e de sentir prazer seria a característica vital de conferir a um ser o direito à igual consideração.

Enquanto seres sencientes, humanos e animais são iguais e, portanto, igualmente capazes de sofrer. Sendo assim, sofrimentos congruentes devem receber igual consideração. Esse é o critério vital que confere a um ser o direito à igual consideração.

Segundo Singer (2010, p. 13), trata-se de uma condição prévia para se ter quaisquer interesses.

Se existe um sofrimento causado no ser, não há justificativa moral para não levar seu sofrimento em consideração. Ao contrário, inexistindo sofrimento, alegria ou felicidade não se pode levar em consideração o interesse.

Ressalta-se que o sofrimento está ligado, não apenas a dor física, mas também, a dores psicológicas (medo, angústia, estresse, privação das mais variadas formas etc.).

Toda via, podem existir conflitos quando comparados interesses de seres de espécies diferentes, já que em certas ocasiões ocorreram sofrimentos maiores de um ser para outro Nesse caso, o Princípio da Igual Consideração de Interesses ainda é aplicado, e terá como paramento a prioridade ao alívio de um sofrimento maior.

Aliás, para Singer, o campo no qual mais se observa o especismo é o da experimentação animal, já que, enquanto os benefícios para seres humanos são inexistentes ou muito incertos, as perdas para membros de outras espécies são concretas e inequívocas. Dessa forma, tais experiências indicam uma falha na atribuição de igual consideração aos interesses de todos os seres, a despeito da espécie à qual pertençam (SINGER, 2003, p. 77).

Enfim, não se pode ter como mensurável a dor e sofrimento de uma espécie, tampouco afirmar que devido algumas capacidades existente nos seres humanos não o fazem sofrer mais do que animais.

Não obstante, cada espécie merece ser respeitada com igual consideração de interesses, conforme experiências de dor e sofrimento capazes de vivenciarem. Ainda que existam enormes diferenças entre o homem e o Animal, há capacidades similares: dor e sofrimento, pois independe da raça, do sexo ou da espécie do ser que sofre e, por isso, deve ser evitado ou mitigado.

Para o filósofo, a capacidade de sofrimento é a única característica capaz de conferir a um indivíduo o direito de igual consideração de interesses, independente se ele é capaz de raciocinar ou de se comunicar.

Inclusive, Singer lembra que a inclusão dos animais não humanos, trata-se de uma continuidade histórica, tendo em vista que seus fundamentos são idênticos aos utilizados por outros movimentos em busca de direitos, tais como: lutas dos negros e mulheres.

E ainda que utilizasse o pré-requisito da consciência, faz-se necessária a extensão deste status moral aos animais macacos, golfinhos, baleias, pois, já restou comprovado que esses animais possuem racionalidade e autoconsciente semelhante aos de uma criança de dois anos de idade.

Na verdade, Singer considera a morte de um animal menos importante do que a morte de homem, isso porque a existência humana é mais valiosa do que a dos animais. Para ele, a morte de um animal pode ser justificada, desde que seja respeitado seu interesse de não sentir dor. Desta forma, não há nada de errado em matar os animais.

Destarte, Singer segue a teoria utilitarista, que admite a experiência com animais desde que seja a única alternativa para salvar milhares de pessoas. Todavia, atualmente, já existem milhares de alternativas, até mesmo muito mais eficazes, que substituem o animal para experimentação. Data venia, não há justificação plausível para essa exploração.

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3.1.2 Proposta de Tomas Regan

Tomas Regan traz nova concepção do homem integrado à natureza. A dignidade estaria fundada no reconhecimento entre pessoas e demais seres.  A dignidade apresentaria uma relação estreita com o respeito entre as espécies. Com efeito, essa relação seria síntese dos direitos fundamentais (à vida, à integridade física e à liberdade) pensada também para incluir os animais.

O filósofo esclarece que como se tem direitos iguais, enquanto sujeitos-de-uma-vida[32], e pelo fato de alguns animais serem como o ser humano, já que são igualmente sujeitos-de-uma vida, deve-se concluir que esses animais, também, têm direitos, incluindo o direito a serem tratados com respeito.

Aqueles que se enquadram nestes critérios estabelecidos, possuem valor próprio, o que não permite utilizá-los como recurso para outros seres. Por essa razão, não podem excluí-los da esfera moral e, consequentemente, de sujeitos de direitos.

O reconhecimento destes direitos, no caso dos animais, implica no reconhecimento, por parte da comunidade moral, de deveres diretos para com eles e isso só é possível se essa comunidade afirma direitos morais básicos aos seres humanos que, pelo princípio da coerência, possam ser expandidos a esses animais.

Portanto, a declaração de direito, no decorrer dos séculos tem-se aprimorado nas relações entre seres humanos em condições desfavorecidas do ponto de vista fatual (biológico), levando em conta a consideração moral, o que indica que se pode fazer o mesmo para avalizar respeito aos animais.

Os direitos humanos seria a melhor saída, pois são mais básicos ou fundamentais do que quaisquer outros direitos, na verdade deles se derivam vários outros direitos, e tais direitos não são atribuíveis aos humanos em decorrência de uma habilidade qualquer, não são devidos porque estes fazem ou deixam de fazer alguma coisa ao longo de suas vidas.

Sua tática é mostrar que se todos os seres humanos são amparados do mesmo modo, direitos morais básicos (direito à vida, à integridade corporal e à liberdade), e não se apresenta justificativa qualquer para defender este atributo, e se a nenhum desses direitos faz-se corresponder uma habilidade qualquer quando se trata de seres humanos, então, não se pode, a fim de que seja mantida a coerência ética, exigir-se dos animais performances que eles não podem demonstrar para que possuam tais direitos. Se isto ocorrer, muitos seres humanos que também não apresentam a performance considerada necessária para merecê-los, deverão ser deixados de fora da comunidade moral.

Deste modo, segundo Regan os direitos humanos e direito dos animais, têm fundamentos em comum, uma vez que os direitos humanos são atribuídos em nome de um valor moral existente em cada sujeito de uma vida humana (valor inerente), conseguintes os sujeitos de uma vida não humana, também possui valor próprio, sendo assim, também devem ser respeitados em razão desse mesmo valor.

E, ainda que estes direitos morais básicos não sejam ampliados para todos os seres. Não se pode causar dor, danos, sofrimentos e morte a nenhum ser que possa experimentar tais experiências, a menos que o causador aceite que o mesmo é permitido contra ele. Entre seres humanos, não se admite que um ser cause dor e sofrimento a outro para se beneficiar. No mesmo sentido, vidas de espécies distintas da humana não existem para servir aos propósitos da vida desta espécie, mas para realizar-se em sua forma específica de viver.

Regan defende a abolição de toda e qualquer forma de exploração institucionalizada dos animais, tendo como ponto de partida a ideia que os animais possuem um valor inerente, pois não há como atribuir direito aos animais caso não se imponha aos humanos o abandono de hábitos arraigados de exploração animal

3.3 Vertentes do protecionismo Animal

Tanto o discurso do princípio da igualdade e do dever de respeito a seres dotados de interesses de Peter Singer, quanto o discurso da obrigação de respeito aos direitos morais dos seres dotados de valor inerente de Tomas Regan têm sua força argumentativa assentada no princípio da coerência moral do sujeito.          

Mas, Singer peca quando defende apenas o bem estar animal em razão do princípio da igual consideração de interesses, que está fundamentalmente apoiada no respeito, bem estar, no valor intrínseco, na compaixão, na sensibilidade ao sofrimento. Ou seja: trata-se mais de uma questão ética que de Direito.

Nesta linha de raciocínio, defende-se o bem estar dos Animais, o que não impede totalmente sua exploração, vez que são considerados meios para se chegar aos fins humanos. Assim, continuam sendo considerados objetos e apropriados pelo homem o que permite sua exploração para experimentos científicos, na medida em que certas precauções fossem a eles relacionadas.

Mister indagar se a pretensão de Peter Singer não seria suficiente para legitimar os direitos dos Animais não humanos junto ao sistema jurídico,  mas a pesquisadora reconhece sua influência e benefício para os Animais.

Por outro lado, a teoria abolicionista, um tanto radical, adotada por Tomas Regan e defendida, também, por esta pesquisadora, propõe a libertação dos animais não humanos por meio de considerações de seus direitos subjetivos. Nesta, os animais possuem o mesmo direito à experiência de viver, já que são sujeitos de uma vida.

Heron de Santana Gordilho (2004, p. 106) define bem a dificuldade no aceite do status dos não-humanos como sujeitos de direito quando diz que “o problema não consiste em saber se os animais podem ou não ser sujeitos de direito ou ter capacidade de exercício, mas de conceder ou não direitos fundamentais básicos, como a vida, a igualdade, a liberdade a até mesmo de propriedade”

Ainda, neste sentido, Katz (2004, p. 241, apud RODRIGUES, 2011, p. 207) define:

Abolicionistas, defensores do voto e das crianças utilizaram a linguagem para ajudar a por fim na exploração de nossos irmãos humanos escravizados. Hoje, defensores dos animais estão utilizando o mesmo método para desafiar a crença de se seja apropriado às pessoas possuírem, explorar e abusar dos animais. Ver um outro ser vivo como propriedade, humanos ou outros animais- sugere que nós justificadamente subordinamos seus interesses à nossa propriedade. Animais merecem proteção, não exploração e utilização.

Por fim, é de grande interesse transcrever a citação de Tomas Regan (2006, p. 12): “A verdade dos direitos dos animais requer jaulas vazias e, não, jaulas mais espaçosas”

Hodiernamente, o homem tende a diminuir a liberdade dos animais, ou mesmo usurpar a vida de outras espécies. É injustificável o sacrifício de um ser senciente em benefício do outro, mesmo que seja o sofrimento necessário. Os argumentos partidários do bem estar animal, ainda, estão arraigados de antropocentrismos, pois, apoiam-se nos fundamentos dos defensores dos direitos dos animais, apresentados como interesses inatingíveis e absolutos. Todavia, o direito ao não-sofrimento dos Animais não humanos pode também ser aprovado pelo princípio de igualdade de interesses.

Os animais possuem direito a vida e precisam ser respeitados. Precisa-se rever os conceitos até hoje adotados para igualdade, direito e sujeitos de direito e passar a dotar uma visão biocêntrica, incluindo os Animais nesta esfera. É necessário levar em conta, não mais a consciência de um ser, mas sim sua capacidade de sofrimento, independentemente do grau da dor ou a capacidade de manifestação. Afinal, causar dor aos animais não desculpa qualquer tese de domínio, sobretudo para fins econômicos.

A humanidade criou e vem criando ocorrências de catástrofes globais e é a autora principal desta pandemia, orientada por caprichos messiânicos, impiedosos interesses individuais vinculados à sobrevivência financeira.

Diante deste consumismo desenfreado, numa cultura hedonista, ressalta bem Enrique Rojas Montes (1996, p. 11)[33] “o homem moderno não tem referências, vive num grande vazio moral, não é feliz, embora tenha materialmente quase tudo, e isto é o mais grave” [34]. Viver bem a qualquer custo é um comportamento que rompe com os ideais e encontra o vazio e a ausência de sentidos. Como sequela, o mercado econômico dispensa qualquer tipo de consideração e instiga o homem a usufruir bens não necessários para sobrevivência.

Quando se fala em experimentos científicos, rodeios ou quaisquer formas de entretenimento humano utilizando animais, há de conceituar como comercialização animal. A proposta da pesquisa não é apaziguar o sofrimento dos não-humanos, mas, sobretudo, lutar pela extinção de práticas que a eles impõe sofrimento. O ordenamento jurídico brasileiro precisa mudar está interpretação explicita dos animais como objetos e começar a garantir verdadeiramente uma vida digna e justa.

Tem-se que pensar na mesma perspectiva de Regan: em um caráter absoluto do Direito dos Animais. A ordem pré-estabelecida sacraliza o antropocentrismo. A racionalidade humana deve alterar a crença de que tudo foi criado para servi-lo. É necessário repensar os valores morais, a fim de delinear novos fundamentos jurídicos para todos os terráqueos.

O Direito há de ser pensado sem ignorar o contexto social. Daniela Tettu Rodrigues cita Steven Wise (2011, p. 213) que expressa:

[...] há cerca de quatro mil anos, uma densa e impenetrável: muralha legal foi edificada pra separar humanos dos animais não humanos. De um lado, até mesmo os interesses mais triviais de uma espécie – a nossa – são cuidadosamente assegurados. Nos auto-proclamamos, dentre milhões de espécies animais, ‘sujeito de direito’. Do outro lado desta muralha encontra-se a indiferença legal para um reino inteiro, não somente chimpanzés e bonobos, mas gorilas, orangotangos, macacos, cães, elefantes, golfinhos entre outros seres vivos. Eles são meros ‘objetos de direito’. Os seus interesses básicos e fundamentais – são intencionalmente ignorados, frequentemente maliciosamente esmagados, e rotineiramente abusados. Antigos filósofos afirmaram que estes animais não humanos foram criados e colocados na terra para o único propósito de servir aos homens. Juristas de outrora, por sua vez, declararam que as leis foram criadas unicamente para os seres humanos. Muito embora a filosofia e a ciência há muito tenham abandonado essa concepção, o mesmo não se pode dizer do direito

Mais uma vez frisa-se: não se tem a pretensão do reconhecimento dos Direitos dos Animais não humanos como sendo os mesmos ou equivalentes aos dos humanos. Até porque, nem todos os direitos aplicados aos humanos serão necessários para os animais não humanos.[35]

É momento de se consagrar indiferenças substanciais entre os seres humanos e os não humanos e qualquer discussão no âmbito jurídico que diminua o valor intrínseco e dos direitos legais dos animais deve ser abolida e deve-se enquadrá-los no status de sujeitos que possuem direitos relevantes

3.4 Animais como sujeitos de direitos

Mas antes de adentrarmos o tema “animais não humanos como sujeitos de direitos”, mister se faz tecer comentários sobre esta terminologia.

Fábio Ulhoa Coelho (2003, p. 138) explica que

sujeito de direito é o centro de imputações de direitos e obrigações referidos em normas jurídicas com a finalidade de orientar a superação de conflitos de interesses que envolvem, direta ou indiretamente, homens e mulheres. Nem todo sujeito de direito é pessoa e nem todas as pessoas, para o direito, são seres humanos

A ordem jurídica brasileira admite duas espécies de pessoa: pessoa física que é o ser humano; que se inicia com o nascimento e termina com o óbito, além de possuir capacidade de direitos e obrigações. No entanto nem todo sujeito de direito é pessoa física; é o que se constata quando se depara com agregados patrimoniais, como espólio, massa falida e pessoas com personalidade jurídica. Estes últimos são entes formados por mais de uma pessoa para determinado objetivo como as sociedades, associações, fundações que, mesmo não sendo pessoas naturais, constituem deveres e obrigações.

Ressalta-se que o conceito de sujeito de direito é mais amplo que o de personalidade jurídica.

Para Cândido Dinamarco, o direito confere uma personalidade exclusivamente para fins processuais. Já Favre expande a ideia de que deve conceder aos animais um status jurídico que se assemelhe ao dos escravos do início do século XIX, nos EUA, que mesmo não sendo titulares de direitos subjetivos, recebiam uma proteção jurídica especial. (SANTANA, 2009, p. 121 apud FAVRE, 1983, p.2). O autor cria a autopropriedade equitativa. Nessa concepção, o proprietário mantém o seu direito sobre o animal, mas não um direito absoluto, pois o papel deste proprietário é apenas o de administrar no melhor interesse do beneficiário, mas não pode considerar a propriedade como sua. No entanto, Gary Francione frisa que este método pode criar problemas, pois nem sempre o guardião agirá em benefício do animal.

Destarte, para Laurende Tribe (SANTANA, 2009, p. 123 apud TRIBE, 2001, p. 3), nada impede que o objeto e sujeito de direito seja o mesmo ente, tendo em vista que as sociedades comerciais são titulares de deveres e obrigações, podem ser objeto de negócios jurídicos por integrarem o patrimônio de seus sócios.

Sob ótica do direito animal, merece destaque o comentário de Edna Cardozo Dias (2007, p. 187):

O animal como sujeito de direitos já é concebido por grande parte de doutrinadores jurídicos de todo o mundo. Um dos argumentos mais comuns para a defesa desta concepção é o de que, assim como as pessoas jurídicas ou morais possuem direitos de personalidade reconhecidos desde o momento em que registram seus atos constitutivos em órgão competente, e podem comparecer em Juízo para pleitear esses direitos, também os animais tornam-se sujeitos de direitos subjetivos por força das leis que os protegem. Embora não tenham capacidade de comparecer em Juízo para pleiteá-los, o Poder Público e a coletividade receberam a incumbência constitucional de sua proteção. O Ministério Público recebeu a competência legal expressa para representá-los em Juízo, quando as leis que os protegem forem violadas. Daí, pode-se concluir com clareza que os animais são sujeitos de direitos, embora esses tenham que ser pleiteados por representatividade, da mesma forma que ocorre com os seres relativamente incapazes ou os incapazes, que, entretanto, são reconhecidos como pessoas.

Neste sentido, apesar do homem ser capaz de assumir deveres em relação aos animais, não pode servir de teoria que os animais não são sujeitos de direito. É o fato de os animais serem objetos de nossos deveres que os caracterizam como sujeitos de direitos, tutelados pelos humanos.

3.4.1 O Direito animal em juízo           

Para se propor ação é necessário que o autor preencha as condições da ação. O Direito brasileiro adotou a teoria eclética da ação criada por Enrico Túlio Liebman, segundo o qual “é o direito a um pronunciamento estatal que solucione o litígio, fazendo desaparecer a incerteza ou a insegurança gerada pelo conflito de interesses, pouco importando qual seja a solução a ser dada pelo juiz" (Teodoro JUNIOR, 1992, p.52). Essa teoria tem natureza abstrata, pois não condiciona a existência do processo ao direito material, uma vez que só poderá reconhecer o direito material ao final do processo e é concreta por exigir algo ligado ao mérito da causa.

Assim sendo, o direito de ação não é apenas considerado direito concreto a uma sentença favorável, mas o direito de ver-se analisar o mérito.

Possibilidade jurídica do pedido é a primeira condição da ação e exige que o autor demonstre que, para o direito objetivo, seu pedido é plausível. Nesta situação, ocorrem dois pedidos: o pedido imediato ao Estado para que ofereça uma tutela jurisdicional; este pedido está ligado ao interesse de agir. E o pedido mediato contra o réu, relacionado ao direito material.

A segunda condição da ação é o interesse processual; ocorre quando o autor demonstra que pode sofrer algum prejuízo se ação não for proposta, seja porque o sujeito se recusa a executar a obrigação ou porque o direito só pode ser exercido mediante prévia declaração judicial.

E, por último, a legitimação ad causam, que se refere à titularidade do autor para ingressar em juízo; é a capacidade de ser parte; de exigir uma sentença em juízo.

Sabe-se que os animais são seres considerados incapazes; neste sentido, não preencheriam os requisitos das condições da ação; no entanto, isso não os exclui de serem sujeitos de direitos. O próprio instituto garante que há certa incapacidade do titular por falta de aptidão ao exercício. Porém, para sanar essa incapacidade, o legislador criou a representação dos incapazes em juízo ou perante terceiros conforme expressa o art. 8 do Código Civil.[36]

A representação delega poderes a terceiros em nome do titular do direito.

Então, mesmo que algumas pessoas sejam incapazes, são sujeitos de direitos. Nesse diapasão, os animais não humanos, mesmo não possuindo capacidade, podem ser sujeitos de direitos, isto porque podem ser tutelados por representantes.

Nos crimes de maus tratos a animais, estes são considerados como sujeitos tutelados pela ordem jurídica, o que significa um avanço para teoria biocêntrica.  De qualquer forma, o conceito de sujeito tem natureza artificial, uma vez que a pessoa jurídica se tornou um ente com personalidade por necessidade social cuja metodologia jurídica adequou sua configuração por meio da lei. A própria noção de dignidade, segundo a qual todos os indivíduos podem ser portadores dos mesmos direitos e deveres, não é inerente apenas aos humanos; mas é, sim, uma conquista histórica. Não obstante, no meio jurídico ninguém é pessoa por natureza ou nascimento. Ressalta bem Daniela Tettu Rodrigues (2011, p. 188) que, se assim fosse a escravidão não teria existido.

Percebe-se que o conceito de sujeito de direito é maior do que os conceitos de pessoas e de personalidade jurídica, pois ser sujeito de direito possui capacidade de adquirir direitos, mesmo quando o sujeito não pode exercê-lo. “Ser pessoa é uma obra de personificação que exclusivamente a ordem jurídica pode perpetrar. Tanto as pessoas naturais ou jurídicas são construções do Direito”. (RODRIGUES, 2011, p. 188).

Este fato bastaria para efetivar o conceito filosófico-jurídico de pessoa, o qual confirma que ser pessoa ou sujeito de direito é o mesmo em razão da consideração de ser fim-de-si-mesmo. Portanto, ser sujeito de direito ou pessoa é ser um “ser” ou “ente” considerado fim dele próprio pelo ordenamento jurídico.

Sob este aspecto, Antônio Junqueira de Azevedo (2004, p. 14) mostra-se favorável a este posicionamento, dizendo que: “a vida, genericamente considerada, consubstancia o valor de tudo o que existe na natureza. Este valor existe por si; ele independe do homem”.

Seja como for, é possível que, no atual sistema jurídico brasileiro, um animal seja admitido em juízo como ente jurídico despersonalizado, substituído processualmente por algum representante. Sendo assim, os animais não humanos são sujeitos de direitos.

3.4.2 Limites do direito animal

A teoria abolicionista tem como um de seus maiores problemas determinar quais dentre os animais estariam habilitados a serem sujeitos de direitos, pois, existirá um risco muito grande de essa teoria ser ridicularizada se formigas, mosquitos ou baratas forem partes numa relação processual.

Enquanto Steven Wise (2002, p. 236, apud SANTANA, 2009, p. 150) defende a outorga desses direitos apenas para os animais como papagaios, elefantes, cachorros, macacos e os grandes primatas. Na visão de Tomas Regan (2002, p. 236, apud SANTANA, 2009, p. 150), apenas as aves e os mamíferos devem ser titulares de direitos morais, uma vez que são sujeitos de uma vida.

Steven Wise (2002, p. 236, apud SANTANA, 2009, p. 150) argumenta que alguns animais, quando chegam à fase adulta, adquirem uma autonomia prática, que no homem ocorre a partir dos quatro aos oito meses de idade.

Assim os animais são divididos em três categorias: a primeira seria a dos chimpanzés, orangotangos, bonobos e gorilas, que possuem autonomia suficiente para adquirir direitos básicos de liberdade; a segunda por papagaios, elefantes, cachorros; na terceira, enquadram-se as abelhas, que não se sabe ao certo se possuem autonomia suficiente; e, na quarta, os animais que são destituídos de qualquer autonomia que os capacite a adquirir direitos.

Gary Francione (2000, p. xxxiii, apud SANTANA, 2009, p. 150) é contra a ideia estabelecida por Singer, pois, mesmo que determinados animais sejam destituídos das capacidades exigidas para serem sujeitos de direitos, são seres sencientes.

Regan recebe críticas quanto aos limites estabelecidos ao conceito de sujeito de uma vida, pois, da mesma maneira que o jusnaturalismo kantiano excluía alguns seres do conceito de pessoa, o conceito de Singer sofre a mesma contradição. Pode ensejar que determinados seres humanos, como os portadores de deficiência mental grave sejam excluídos desse direito.

É um risco atribuir-se esses direitos com base em certas características mensuráveis como a autoconsciência ou a capacidade de elaborar representações mentais, pois, nesse caso, crianças e pessoas portadoras de Alzheimer não seriam detentoras de direitos.

Mas, Regan (1985, p. 203, apud SANTANA, 2009, p.150) esclarece que, mesmo não sendo sujeitos-de-uma-vida, não significa serem desprovidos de direitos morais.

As ecofeministas não concordam com a noção de sujeito-de-uma-vida, pois equiparam com o antigo critério de racionalidade, pelo qual as mulheres eram excluídas do conceito de igualdade sob o argumento de não possuírem consciência complexa. Do mesmo modo, consideram a proposta de Steven Wise antropomórfica por se limitar às espécies cuja racionalidade seja mais próxima dos seres humanos. (SANTANA, 2009, p. 150, apud KELCH, 1988, p. 575).

Ocorre que toda forma de critério para direito animal acaba sendo epicista, pois, para o ecofeminismo, o sistema jurídico deve assegurar o bem estar animal, levando em conta a vida emocional e seus relacionamentos com os seres humanos e não somente os níveis de autonomia.

Mas, essa divisão, por exemplo, não impede que o homem mate ou fira um animal, pois nenhum direito é absoluto. Ocorre que esse tipo de ato deva ser praticado, apenas, quando necessário. Parta-se do exemplo de um rato que entre na residência de alguém, colocando em risco a saúde de seus familiares. Ora, não é errado matar insetos, ratos, pois, eles picam e provocam doenças; mas, retirar as asas de um inseto, por simples prazer de vê-lo sofrer, é um ato de crueldade.

Porém, o que fazer quando um juiz precisar dirimir conflitos entre um homem e um animal? Para Heron de Santana Gordilho (2009, p. 153), devem-se aplicar os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade para determinar quando um interesse ou outro deve prevalecer. Estes princípios têm-se erigido em técnica de interpretação para aplicação do direito com o intuito de ocorrer o devido processo legal.

Estes princípios foram consagrados nas emendas 5ª e 14ª da Constituição Americana, e se tornaram importantes instrumentos em favor dos direitos individuais.

Já no Direito Constitucional brasileiro, em caso de conflito, além desses princípios norteadores, exigem-se mais dois requisitos qualificadores: a adequação e a proporcionalidade em sentido restrito. A primeira diz respeito a que o processo exige um meio adequado e menos oneroso para o cidadão; não basta que ela seja formalmente devida; a segunda refere-se que “quanto maior for o grau da não satisfação ou de afetação de um princípio, tanto maior deve ser a importância da satisfação do outro” (Alexy, 1997, p. 161).

Singer admite a tortura se esta for o único meio de se descobrir uma bomba nuclear programada para explodir no centro de uma cidade.

Desta forma, empregam-se tais princípios para se chegar a uma solução mais justa.

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