A internet é uma importante fonte de notícias, textos científicos, receitas de pratos, fotos de todos os tipos e lugares, filmes antigos, propaganda, amenidades, pornografia e de cenas de violência. Abaixo 5 exemplos de vídeos violentos que podem ser e são facilmente acessados e compartilhados na internet:
http://tvig.ig.com.br/noticias/mundo/flagrante-indiano-e-morto-a-facadas-em-plena-luz-do-dia-542b1cb8d8c8cd2d1800020a.html
https://www.facebook.com/video.php?v=10204644843221239
https://www.youtube.com/watch?v=w8EhY7gRUnQ
https://www.youtube.com/watch?v=ZVne2nWKmLM
https://www.youtube.com/watch?v=-7lvbqiSqok
Não gosto de ver vídeos como os acima indicados. Resigno-me a discutir o assunto por causa do evidente prazer mórbido que eles despertam. A popularização da internet faz com que a violência se torne cotidiana, um produto regularmente consumido por uma quantidade cada vez mais de pessoas. Os seres humanos parecem ter uma fixação neurótica por violência. Isto explica porque os veículos de comunicação on line não se recusam a divulgar vídeos de assassinatos a sangue frio. A brutalidade captura a atenção do internauta levando-o a consumir a propaganda onerosa exibida pelos portais de internet.
Cada vez que vejo um destes vídeos na página de abertura de um portal de notícias, lembro-me da inscrição no Portal do Inferno de Dante Alighieri:
“Per me si va ne la città dolente,
per me si va ne l’etterno dolore,
per me si va tra la perduta gente”
“Por mim se vai das dores à morada,
Por mim se vai ao padecer eterno,
Por mim se vai à gente condenada.”
O inferno e seu portal, segundo Dante Alighieri, foram criados pelo amor, justiça e sabedoria do altíssimo.
“Giustizia mosse il mio alto fattore;
fecemi la divina podestate,
la somma sapïenza e ’l primo amore.”
“Moveu Justiça o Autor meu sempiterno,
Formado fui por divinal potencia,
Sabedoria suma e amor supremo.”
Quem criou a internet e os portais de notícias que compartilham vídeos violentos foram os seres humanos. Tudo aquilo que é produzido pelo homem está sujeito à entropia, à destruição e ao esquecimento. Portanto, não podemos dizer dos portais de internet aquilo que Dante disse do portal do inferno:
“Dinanzi a me non fuor cose create
se non etterne, e io etterno duro.
Lasciate ogne speranza, voi ch’intrate’.”
“No existir, ser nenhum a mim se avança,
Não sendo eterno, e eu eternal perduro:
Deixai, ó vós que entrais, toda a esperança!”
O magnífico poema épico de Dante Alighieri pode ser facilmente encontrado na internet em diversas línguas. Duvido muito, todavia, que os fanáticos por vídeos violentos apreciem a obra do poeta florentino. No espaço de tempo que se leva para ler um Canto do Inferno dezenas de vídeos de assassinatos podem ser vistos.
Uma consulta ao Google feita em 01/10/2014 revela que existem 520 mil verbetes em toda web para a expressão “Divina Comédia”. A palavra “assassinato” permite ao interessado consultar 2.9 milhões de vídeos. Alguma dúvida sobre a preferência dos internautas?
A violência está na moda. Tanto isto é verdade que os filmes que contem cenas de ultra-violência tem mais probabilidade de fazer sucesso do que dramas bem construídos e encenados que sejam desprovidos de agressões e assassinatos. Nem mesmo os filmes religiosos foram poupados pela escalada da violência cinematográfica. Não há qualquer paralelo que se possa fazer entre a violência encenada do filme The King of Kings, de Cecil B. DeMille (1927) e a violência escancarada do filme The Passion of the Christ, de Mel Gibson (2004). Não sou religioso, mesmo assim fiquei chocado com o realismo da violência durante a cena em que o protagonista é chicoteado pelos romanos.
A internet vicia e este vício já tem sido discutido fartamente na própria internet http://www.brasilescola.com/informatica/ciberviciado.htm . É curiosa e contraditória a discussão on line deste assunto. Se por um lado o viciado em internet não procuraria ler sobre seu vício em outro suporte, por outro ao pesquisar o assunto na internet ele apenas reforça sua própria dependência da mesma ao tentar combater o vício. De qualquer maneira, o exagerado número de vídeos sobre assassinatos na web (2,9 milhões conforme foi dito) sugere que existem pessoas viciadas em ver os mesmos.
No Inferno de Dante Alighiere uma tropa de diabos organizada de forma mais ou menos militar (Cagnazzo, Graffiacanne, Fargarello, Draghignazzo, etc..) tange os condenados pelo Maleborge a chicotadas. Suponho que um impulso psicológico irresistível (um chicote infernal segundo os crédulos eleitores de Marina Silva) impele o viciado em violência a pular de um vídeo de assassinato para outro vídeo de assassinato. Nem pausa, nem poesia são capazes de romper os grilhões do vício.
O crescimento exponencial dos vídeos de assassinato compartilhados on line reforça a dependência. Um viciado que resolvesse ver todos os vídeos disponíveis e ficasse em média 3 minutos em cada um dos 2,9 milhões de vídeos compartilhados levaria 145 mil horas (aproximadamente 6 mil dias ou 16 anos) para ver todos os vídeos de assassinatos que estão disponíveis hoje na internet. Quantos novos vídeos semelhantes serão compartilhados neste longo período de 16 anos?
No Brasil a internet começou a decolar em 1995 e se popularizou em meados de 2000. Se considerarmos como marco inicial o ano de 1995, podemos afirmar que foram postados em média 152 mil vídeos de assassinatos na internet por ano. Se esta média for mantida, quando nosso suposto viciado acabasse de ver os 2,9 milhões de vídeos de assassinatos que estão na internet outros 2,43 milhões de novos vídeos com assassinatos teriam sido postados.
Os personagens que Dante Alighieri colocou no Inferno foram condenados a sofrer eternamente. Uns são perseguidos e devorados por cadelas ferozes, outros são atormentados por turbilhões inesgotáveis de vento, outros ainda ficam atolados em lama suja sob uma chuva de granizo. Há os que foram condenados a arrastar o peso da riqueza metalífera que não quiseram em vida dividir, os que ficam sob uma cachoeira de água e sangue borbulhante e os que estão parcialmente sepultados em covas fumegantes. Há condenados que ficam expostos a chuvas de fogo, atolados em lagos de piche, enterrados parcialmente num mar de gelo, etc... Cada qual é obrigado a assistir seu próprio sofrimento e a ver o sofrimento igual daqueles que cometeram o mesmo pecado.
Os viciados em vídeos de assassinato não foram condenados a inferno. Alguns talvez nunca tenham sofrido algum tipo de violência. Outros talvez sejam apenas prisioneiros do clima de medo que a imprensa datenizada espalha diariamente no país. Mesmo assim eles ficam vendo o sofrimento alheio como os personagens dantescos. Alguns fazem isto por compulsão. Outros provavelmente sentem prazer em ficar vidiando* violência na internet. Os sádicos podem ser poeticamente considerados estagiários de Cagnazzo e Graffiacanne.
Dante Alighieri povoou seu Inferno com personagens históricos. Alguns deles foram contemporâneos e adversários políticos do próprio Dante. A fim de justificar as torturas que são impostas aos seus personagens, Dante resumiu a existência daquelas pessoas ao pecado que lhes foi imputado. Mesmo assim há algo de profundamente humano nos glutões, avarentos, coléricos, infanticidas, etc.. que sofrem no Inferno construído com métrica e rima pelo poeta florentino. Esta humanidade não pode ser vista na internet.
O mais assustador sobre a profusão de violência vidiada** é que ela esconde o drama humano que existe por traz de cada ato violento registrado em vídeo e compartilhado na internet. As pessoas assassinadas tinham vidas e histórias pessoais, mas raramente estas coisas interessam aos viciados em vídeos violentos. Cada assassino tem que lidar pessoalmente com o sentimento de culpa e com a condenação judicial que sofreu, mas a eventual reabilitação daqueles que foram filmados cometendo homicídio (fundamento do moderno Direito Penal) não despertará qualquer empatia social enquanto o vídeo do crime seguir sendo compartilhado e visto à exaustão. Opera-se assim uma perigosa desumanização tanto da vítima quanto do culpado.
A desumanização sempre conduz à uma inversão social dos valores. Fartos da violência que consomem tanto na internet quanto na televisão, alguns brasileiros já começaram a combater a violência através de atos violentos. Alguns linchamentos resultaram em morte, outros não. Os próprios linchamentos acabam sendo filmados e postados na internet realimentando uma espiral de violência tanto virtual quanto real.
Impossível dizer como Dante Alighieri veria este inferno que estamos criando. Nenhum poeta brasileiro ousou escrever sobre o assunto. Morte e Vida Severina é o último arremedo de poema épico escrito por um brasileiro. A sexagenária obra de João Cabral de Melo Neto, porém, vai envelhecendo à medida que os programas governamentais começam a desenvolver o nordeste e a fixar o sertanejo no campo enquanto a seca se muda para São Paulo. As autoridades estaduais e judiciárias se resignam a ver embasbacadas o crescimento da barbárie nas ruas, quer porque desprezam ou temem a censura (que, aliás, é proibida pela CF/88), quer porque estão preocupadas com coisas mais triviais (como as viagens que farão, os cargos que disputarão, os amigos que nomearão, etc…).
vidiando*, vidiada** - derivados do verbo vidiar, popularizado pelo filme Laranja Mecânica de Stanley Kubrick.