Súmula vinculante: instrumento silencioso de reforma constitucional pelo STF

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04/10/2014 às 14:55
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3. A REFORMA CONSTITUCIONAL DISSIMULADA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL POR MEIO DAS SÚMULAS VINCULANTES

É inconteste o antagonismo entre o modelo jurídico do direito pátrio (civil law), com o instrumento súmula vinculante, que mais se aproxima do modelo common law (precedentes jurisprudenciais), visto que, no sistema codificado, atende-se ao pensamento abstrato e dedutivo, estabelecendo premissas e conclusões por meio de processos lógicos, visando estabelecer normas gerais organizadoras, enquanto o modelo proposto pela súmula vinculante centraliza-se, intensamente, com a primazia da decisão judicial, ao passo que aquele (direito codificado) está fundamentado essencialmente na norma-lei.

Outrossim, não há como negar que os precedentes jurisprudenciais do modelo da common law serviram como referência para a concepção, no direito pátrio, das súmulas vinculantes. Contudo, este instrumento constitucional fere de morte algumas premissas fundamentais, pois ocasionará, indubitavelmente, que as súmulas convertam-se em verdadeira reforma constitucional, reduzindo a Constituição Federal à mera fonte subsidiária para o jurisdicionado, pois, no topo da hierarquia das “leis” estará a “interpretação da interpretação” (leia-se súmula vinculante).

Ademais, cabe lembrar que toda interpretação deve ser dotada de duas características, ou seja, a imparcialidade e a impessoalidade. Frisa-se, contudo, que não há de se falar em neutralidade da interpretação, pois seria algo quase que impraticável que um ser humano fosse neutro, deixando de lado suas convicções pessoais quando da interpretação de um texto legal.

Entretanto, perfilha-se do entendimento de que a interpretação deve apresentar-se sempre de forma clara, uma vez que não trata-se de atividade matemática que possa apresentar uma fórmula exata do alcance do texto, sob o processo de hermenêutica.

Há de se distinguir ainda que inexistem expressões inteiramente precisas, que correspondam precisamente o que se pensou ou o que se quer dizer. Basta observar, v.g., o termo sinônimo, o qual significa “palavra que tem quase a mesma significação de outra”17; logo, conclui-se que as palavras não são unívocas, mas sim plurívocas.

Outrossim, mesmo que a linguagem se mostre clara, admitindo uma interpretação precisa, é necessário reconhecer que “toda lei tem seu espírito, e que este espírito há de ser explícito em alguns contornos e implícito noutros” 18. Portanto, retomando Montesquieu, devemos “encarar a letra da lei como fruto da obra humana, com toda a sua imperfeição”19.

Toda interpretação, produzida por um tribunal, de uma norma legal, por mais apropriada que seja, jamais poderá ter eficácia vinculante sobre os demais juízes de instâncias inferiores, que devem julgar com absoluta e total independência. Nesse sentido, Luiz Flávio Gomes afirma que “a inconstitucionalidade da súmula vinculante é evidente” 20.

Em síntese, o ingresso indevido das súmulas vinculantes traz para a sociedade jurídica um conjunto de “normas legais” emanadas de um poder não sujeito ao controle popular, como ocorre com o poder legislativo.

No mesmo sentido, Estevão Mallet, conclui que:

como prevalece o entendimento de que a sentença não cria direito novo, apenas interpreta direito já existente, acabará a jurisprudência obrigatória, forçosamente, por ser invocada mesmo de modo retroativo, para situações ocorridas antes até de sua consolidação, o que – não é difícil perceber – comprometendo, consideravelmente, a estabilidade das relações sociais e mesmo a segurança dos cidadãos21.

No mesmo sentido, Luiz Flávio Gomes, finaliza seu posicionamento acerca da súmula vinculante:

A súmula vinculante é instrumento do Direito do segundo milênio. Não serve para guiar a Justiça do terceiro milênio. Institutos da era analógica não são úteis para a Justiça da era digital. É um atraso e grave retrocesso. Faz parte de uma ética tendencialmente autoritária, de uma sociedade militarizada, hierarquizada. A justiça de cada caso concreto não se obtém com métodos de cima para baixo. O contrário é que é o verdadeiro. O saber sistemático (generalizador) está dando lugar para o saber problemático (cada caso é um caso). Por isso é que devemos nos posicionar contra ela22.


CONCLUSÃO

No chamado mundo pós-moderno, os dogmas positivistas cederam lugar ao pluralismo e à garantia das liberdades, e o juiz deixou de ser o mero aplicador da lei, para integrá-la socialmente, laborando de forma crítica em nome do poder judiciário.

Assim, ao princípio constitucional da legalidade, compete o complexo trabalho de dar coerência, sistematicidade e unidade ao texto constitucional, haja vista o seu objeto jurídico, ou seja, estabelecer normas estáveis, que refletissem o anseio popular, e que fossem capazes de frear a intranqüilidade, a desconfiança e a suspeição, tão usuais onde o poder era absolutista ou tirano.

Cabe lembrar que do princípio da legalidade desdobra-se o princípio da reserva legal, sendo que a diferença entre estes consiste em considerar que, enquanto o primeiro envolve uma questão de cominação legal e infralegal (v.g., decretos, medidas provisórias, leis delegadas), o segundo envolve uma questão de competências.

Neste sentido, aliás, foi verificado que a expressão “em virtude de lei” não pode ser conjugada isoladamente, devendo ser compatibilizada com todo o sistema constitucional vigente, mormente em função das regras de distinção de competência entre os órgãos do poder, de onde decorre que o princípio da legalidade estabelece a previsão de competência geral do poder legislativo para legislar sobre matérias genericamente indicadas, de sorte que a idéia inicial está em que só este poder tem a legitimidade para instituir regras que contenham, originariamente, novidade modificativa da ordem jurídico-formal.

Ressalte-se que a classificação dada pelo direito pátrio às leis, como fonte imediatas (primária), deve-se, essencialmente, ao modelo jurídico adotado pelo direito pátrio (romano-germânico), que privilegia a codificação escrita das normas sociais, editadas pelos legitimados representantes do povo, seja por meio do poder constituinte originário seja por meio do decorrente.

Foram percebidas a importância e a interligação do princípio constitucional da legalidade com os princípios fundamentais, na formação de uma unidade sistemática do texto constitucional. Assim, significante foi a leitura de outros, para se formar o entendimento sobre a incompatibilidade das súmulas vinculantes com aquele.

No que se refere ao princípio da dignidade da pessoa humana, constatou-se a sua conexão com os princípios do direito a vida e da legalidade, pois o constituinte de 1988 não concebeu a idéia de direito a vida humana sem dignidade (saúde, trabalho, moradia, educação, prestação jurisdicional e etc), e dignidade humana pressupõe regras postas por legítimos representantes eleitos pelo povo (poder legislativo). Assim, não há como negar que as súmulas vinculantes, devido a sua carga impositiva, a exemplo das leis, implicam grave desvio do objeto estabelecido no princípio da dignidade da pessoa humana e, por conseguinte, do princípio da legalidade em sentido estrito.

De igual modo, percebeu-se que as súmulas vinculantes, por causa do efeito vinculante, vão de encontro ao princípio da separação dos poderes e, ao sistema de freios e contrapesos, pois estas “súmulas” concederiam ao poder judiciário atribuição legiferante, o que é exclusivo do poder legislativo e, excepcionalmente do poder executivo.

Assim, pode-se afirmar que o princípio da legalidade tem na legitimação dada ao poder legislativo (artigo 59, da CF/88) a atribuição exclusiva da edição de normas vinculantes.

Foi verificado ainda no modelo jurídico da civil law, no qual se situa o direito brasileiro, a sua fonte primária (imediata): a lei; e na common law, o precedente judiciário ocupa tal destaque, ou seja, enquanto no primeiro o juiz está adstrito à lei, no segundo ele faz a lei (precedente judicial).

Assim, foi possível verificar que na civil law, a lei é o ponto de partida para a compreensão do direito, ao passo que a jurisprudência, a súmula e a súmula vinculante possuem função subsidiária na aplicação do direito, sendo invocadas para auxiliar na interpretação da lei ou em casos de lacuna desta.

Percebeu-se que tanto as súmulas vinculantes quanto as súmulas impeditivas de recurso trazem ao jurisdicionado problemas de ordem pragmática e hermenêutica, quando de sua aplicação, haja vista que aceitar que “a interpretação de texto normativo” (súmula vinculante) tenha eficácia geral, abstrata e vinculante, é conceder, indevidamente, ao poder judiciário (leia-se STF), atribuição legiferante, usurpando, destarte, competência funcional exclusiva do legislativo.

Compreendeu-se que o exercício do poder legislativo difere-se do cumprindo pelo poder judicial, sendo que o primeiro interpreta os anseios sociais e cria as normas jurídicas, ao passo que o segundo, diante do anseio de uma demanda posta, interpreta e aplica a lei genérica ao caso concreto, estabelecendo direito, por meio de uma decisão judicial. É aí que reside a “função criadora” destes poderes.

Não houve como negar também que a imperatividade e a coercibilidade concedidas à súmula vinculante violam a tipicidade constitucional das leis (artigo 59, da CF/88), que pressupõe um processo legislativo, abalizado na democracia, ou seja, na vontade popular manifestada por meio do sufrágio universal.

Assim, concordando com CAPPELLETTI, quer seja na civil law, quer seja na common law, “o juiz será sempre um mero intérprete: intérprete dos textos vigentes nas leis e nos códigos, ou intérpretes dos precedentes, intérpretes dos valores vigentes na sociedade” 23, em suma, o juiz não é um legislador.

De mais a mais, foi percebido que as súmulas vinculantes tratam de forma dissimulada de reforma constitucional (“interpretação da interpretação”), o que, inclusive, foi constatado com a análise das três primeiras súmulas aprovadas pelo Supremo Tribunal Federal, em 30 de maio de 2007.

Em síntese, conclui-se que pelo modelo jurídico adotado pelo direito pátrio (civil law), em que resta estabelecida como premissa fundamental a exclusiva submissão à lei (stricto sensu) e pelo princípio constitucional da legalidade (que estabelece a normatização das condutas sociais por meio de leis, que obedeçam o devido processo legislativo), não há que se reconhecer às súmulas vinculantes (fonte mediata do direito) o status de norma legal, mas sim de mera fonte de interpretação.


REFERÊNCIAS

BRITTO, Carlos Ayres. As Cláusulas Pétreas e sua função de revelar e garantir a identidade da Constituição. In: Perspectivas do Direito Público. Belo Horizonte: Del Rey, 1995.

CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? Tradução por Carlos Alberto Álvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1993.

CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2003.

CUNHA, Sérgio Sérvulo da. O efeito vinculante e os poderes do juiz. São Paulo: Saraiva, 1999.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário aurélio da língua portuguesa. 2. ed. Ver. e ampl. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.

GRAU, Eros Roberto. Sobre a produção legislativa e a normativa do direito oficial: o chamado efeito vinculante. Revista da Escola Paulista de Magistratura, ano 1, n.º 3, mai./out. 1997.

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GOMES, Luiz Flávio. A dimensão da magistratura no Estado de Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.

____________. Súmulas vinculantes e independência judicial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.

MALLET, Estevão. Algumas linhas sobre o tema das súmulas vinculantes. São Paulo: Revista Consulex, nº 11, 1997.

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000.

RUIZ, Urbano. Reforma do judiciário e súmulas vinculantes. Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, 2004.


Notas

2 GRACIE, Ellen. Discurso de posse da presidência do STF. Disponível em: <https://www.stf.gov.br/noticias/imprensa/palavra_dos_ministros>. Acesso em: 25 jun. 2007.

3 BRITTO, Carlos Ayres. As Cláusulas Pétreas e sua função de revelar e garantir a identidade da Constituição. In: Perspectivas do Direito Público. Belo Horizonte: Del Rey, 1995. p. 175.

4GOMES, Luiz Flávio. Súmulas vinculantes e independência judicial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 202-203.

5 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 60.

6 RUIZ, Urbano. Reforma do judiciário e súmulas vinculantes. Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, 2004. p. 21.

7 CUNHA, Sérgio Sérvulo da. O efeito vinculante e os poderes do juiz. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 206.

8 GOMES, Luiz Flávio. Súmulas vinculantes e independência judicial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 202.

9 SILVA, José Anchieta da. A súmula de efeito vinculantes amplo no direito brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 1998. p. 28.

10 GOMES, Luiz Flávio. A dimensão da magistratura no estado de direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 71.

11 GRAU, Eros Roberto. Sobre a produção legislativa e a normativa do direito oficial: o chamado efeito vinculante. Revista da Escola Paulista de Magistratura, ano 1, n.º 3, mai./out. 1997. p. 78.

12 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 82.

13 Ibid., p. 67.

14 GOMES, op. cit. p. 73, nota 10.

15 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 33.

16 Ibid., p. 35.

17 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário aurélio da língua portuguesa. 2. ed. Ver. e ampl. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993. p. 1586.

18 MAXIMILIANO, op. cit., p. 11, nota 5.

19 Ibid., p. 11.

20 GOMES, Luiz Flávio. A dimensão da magistratura no Estado de Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 202.

21 MALLET, Estevão. Algumas linhas sobre o tema das súmulas vinculantes. São Paulo: Revista Consulex, nº 11, 1997. p. 23.

22 Gomes, op. cit., p. 204, nota 10.

23 CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? Tradução por Carlos Alberto Álvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1993. p. 13.

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Sobre o autor
Andreotte Norbim Lanes

Mestre em Direito Constitucional; Pós graduado em Processo Civil. Advogado militante na área do Direito Empresarial e Trabalhista, na cidade de Vitória-ES. Professor universitário da Faculdade São Geraldo e, da Universidade de Vila Velha, ambas no Estado do Espírito Santo.

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