5-ESTADO DE DIREITO COMO INSTRUMENTO DE DOMINAÇÃO
O Estado de Direito e mais, o Estado de Direito Constitucional Democrático é apontado em geral, tanto no campo jurídico como nos campos filosófico, sociológico e político, pela esmagadora maioria dos autores, como uma conquista inalienável da civilização.
Zizek apresenta um outro ângulo de visão através do qual o Estado de Direito é exposto como um exercício legitimado de poder que integra “a lógica interna da sociedade capitalista moderna”. Desse modo, o Estado de Direito não passaria de um instrumento para garantia de uma dada “ordem” necessária às empreitadas capitalistas. No seio do Estado de Direito estaria abrigada uma “repressão institucionalizada” que impediria qualquer projeto de “emancipação radical do homem”. Tudo isso em nome da “ordem” que se legitima por meio da chamada “segurança jurídica”, extremamente necessária para a sobrevivência do modelo capitalista. [33]
Grillo apresenta um exemplo emblemático de Alysson Leandro Mascaro, o qual faz referência a dois sistemas alternativos criados no âmbito do Direito Civil: a Arbitragem e os Juizados Especiais Civis. Para Mascaro, embora não haja nas legislações nada que explicite a divisão de classes para o direcionamento das causas, essa divisão ocorre de fato. As chamadas “pequenas causas” são enviadas a uma instância informal com poucas garantias, enquanto as grandes empresas e corporações têm a oportunidade de deixar o Poder Judiciário de lado, ganhando em celeridade, sem perder toda segurança jurídica e ainda podendo, se necessário, recorrer ao próprio Judiciário em caso de algum prejuízo. [34]
Nesse quadro a universalidade do Direito seria um engodo. Todo o sistema jurídico seria construído mediante a divisão em subsistemas embasados numa implícita relação com a separação das classes sociais. O Estado de Direito e a aclamada segurança jurídica, na verdade, inexistiriam, pois todo o sistema seria uma colcha de retalhos excludente informada pelos interesses do capital.
Zizek afirma categoricamente que “o anarquismo já está no poder, ele usa a máscara da Lei e Ordem – nossa Justiça é uma caricatura da Justiça, o espetáculo da Lei e Ordem é um carnaval obsceno”. [35]
O ponto de vista chocante de Zizek é muito relevante para um despertar de uma letargia ou mesmo de um estado de ufanismo e encanto com o nosso chamado Estado Constitucional Democrático de Direito. Um choque de realidade que nos mostra o quanto ainda é preciso progredir, o quanto nosso Estado Constitucional Democrático de Direito apresenta realmente fragilidades.
Afora os exemplos bem postos por Mascaro, conforme acima delineado, pode-se mencionar a tendência sempre presente de propiciar uma “Justiça pobre para os pobres”. A deficiência das Defensorias Públicas e a própria resistência em ofertar a esses servidores as mesmas vantagens de Promotores e Juízes é um sintoma clássico dessa enfermidade que acomete nosso sistema. Outra questão diz respeito às inúmeras “leis de papel” que vigem sem ter eficácia alguma. Elas realmente não “saem do papel” para entrar na vida real (v.g. Lei de Execuções Penais, Estatuto da Criança e do Adolescente, Estatuto do Idoso, Lei de Proteção às Pessoas Portadoras de Deficiência Mental etc.). E um fato que demonstra a atuação performática ilusória do sistema é a constante referência à alteração dessas legislações, sem que em nenhum momento tenham sido realmente aplicadas. Trata-se de um recurso de engodo que realmente usa o Estado de Direito e sua legislação como um mero efeito simbólico.
Não obstante, há um ponto culminante em que a crítica zizekiana extrapola o razoável. Esse ponto reside na implícita repulsa ao Estado de Direito e sua equiparação genérica a uma anarquia. Como alternativa ao modelo do Estado de Direito se buscaria uma “emancipação radical do homem” (sic), expressão aberta e totalmente equívoca, sujeita às mais variadas interpretações, inclusive, certamente para o horror de Zizek, utilizável para a defesa de um libertarianismo [36] exacerbado, onde o sistema Capitalista e o livre mercado atingiriam seu ápice, enquanto o Estado praticamente se reduziria a pó frente ao indivíduo e sua vontade.
É verdade que o Estado de Direito nunca se concretizou plenamente, mas também é verdade que somente em seu seio foram possíveis muitas e muitas conquistas de direitos. Ademais, é somente em seu seio que é possível sua própria crítica. As opções que derivam de doutrinas que inspiram autores como Zizek não se permitem críticas. Zizek somente pode falar e escrever livremente porque vive num mundo onde a liberdade de expressão, consciência, crença e pensamento foram conquistadas a duras penas e concretizadas através do Estado de Direito. Experimentasse o autor, em sua própria terra natal, na época do Comunismo, empreender alguma crítica. Certamente nem sequer estaria aqui para seguir seus estudos e escritos. Ele mesmo confessa isso narrando que sequer conseguia um emprego acadêmico na “fase final de florescimento do comunismo de linha dura” porque era “praticamente impossível encontrar emprego no magistério – sem ser marxista”. [37] Zizek conta que seu “interesse pelo pensamento francês era visto como uma ameaça”. Em suas palavras:
“Lembro-me de que, quando terminei minha tese de mestrado, tive que escrever um complemento especial, porque a primeira versão foi rejeitada, por não ser suficientemente marxista! E assim fiquei desempregado por quatro anos...”. [38]
Com defeitos e mazelas a serem reparadas a verdade é que o Estado Constitucional Democrático de Direito ainda é a melhor opção. Não é uma conquista que se possa simplesmente jogar fora. Como bem aduz José María Aznar em prólogo à obra monumental de Johnson:
“Una verdad tan válida hoy como en la primera edición: no todo es relativo, no todo da igual, no todo vale lo mismo. No. Hay unos princípios que la voluntad humana no puede cambiar sin dejar de ser humana. Unos princípios que hacen posible el cambio y la reforma, y más allá de los cuales se extiende el despotismo de lo arbitrário y el voluntarismo que desemjbocaron el pasado siglo en genocídios raciales e ideológicos”. [39]
Em suma, é possível e desejável proceder à crítica do Estado Constitucional Democrático de Direito, visando seu aperfeiçoamento contínuo, mas jamais é admissível seu descarte em prol de uma expressão equívoca como a “emancipação radical do homem” (sic) que pode até ser muito bonita e útil no campo psicanalítico, mas na política e no direito é altamente perigosa, pois que tendente a um voluntarismo que conduz ao anarquismo, à barbárie e também, por paradoxal que pareça, ao totalitarismo onde essa “emancipação radical” se converte em uma “dominação radical”.
6-UTOPIAS JURÍDICAS CAPITALISTAS: UMA MÁSCARA QUE CAI
Para Zizek a “tríade cidadania, democracia e Direito” está em estreita dependência ou mais propriamente a serviço do Capitalismo, vez que “seus males decorrem da imanência com o sistema de produção”. Nessa situação o Direito no bojo do sistema capitalista não tem o poder de buscar a “Justiça”, já que é totalmente dependente e guiado pelo sistema econômico. Esse pensamento zizekiano está totalmente em consonância com a tese marxista da sobreposição da economia em todas as relações e instituições sociais. [40]
Nessa medida, o fracasso do chamado “Welfare State” ou “Estado do Bem Estar Social” nas sociedades capitalistas seria um claro sintoma da utopia jurídica promovida pelas normas inseridas no contexto Capitalista. Uma espécie de nuvem de fumaça para a ocultação da real finalidade de todo o sistema jurídico que nada mais seria do que uma superestrutura a sustentar a infraestrutura econômica do Capitalismo.
Por isso:
“Quando hoje a esquerda bombardeia o sistema do capital com exigências que este evidentemente não consegue atender (Pleno emprego! Manter o Estado assistencialista! Todos os direitos aos imigrantes!), ela está fazendo um jogo de provocação histérica, dirigindo aos Mestres uma exigência que lhes será impossível satisfazer, expondo assim a sua impotência”. [41]
Nesse passo, o Direito submetido às razões do capital não dá conta de satisfazer as demandas que ele mesmo cria e alimenta ilusoriamente. O pleno emprego, por exemplo, contrasta com a automação da produção e o aumento das margens de lucro. Em suma, “é como se o Direito fosse refém das problemáticas ligadas ao próprio desenvolvimento do capitalismo enquanto sistema econômico”. [42]
São pertinentes as críticas de Zizek. O problema neste caso é que o autor, em sua orientação bastante influenciada por uma visão marxista, apresenta como opção para uma utopia jurídica capitalista outra utopia marxista. O que é pior é que essa segunda utopia é ainda mais inexequível como já foi historicamente demonstrado, inclusive sob o ponto de vista econômico em que se pretende sustentar. Doutra banda, essa utopia tem o caráter totalitário a não permitir uma revisão de seus próprios conteúdos quando instalada.
7-A DEMOCRACIA PASSADA A LIMPO
Zizek nega a hegemonia da Democracia como modelo político, especificamente a Democracia Liberal. Isso porque, segundo sua visão, esse modelo estaria diretamente ligado ao Capitalismo como sistema econômico. Seu alvo mais certeiro é a existência funcional de “incluídos e excluídos” no modelo de Democracia Liberal ligado ao Capitalismo na seara econômica. Equivale a dizer que a coexistência de duas espécies de indivíduos no sistema político – econômico impede o reconhecimento de uma verdadeira Democracia. [43]
Efetivamente a existência de “incluídos e excluídos” é novamente uma crítica válida de Zizek com relação a um suposto modelo realmente democrático. Mas, o que não é compreensível é sua alusão a uma figura como Lênin em forma de portador do legado de “uma política da verdade” (sic). Em suas palavras:
“Consequentemente, o legado de Lênin, a ser reinventado hoje, é a política da verdade. Tanto a democracia político – liberal como o ‘totalitarismo’ impediram uma política da verdade”. [44]
Ora Lênin só pode ser assim considerado se o que se quer dizer é que ele deixa um legado de contra – exemplo de uma “política da verdade”, enquanto arquiteto laborioso de uma terrível e cruel “política da mentira”. Realmente o totalitarismo somente pode impedir uma “política da verdade”, assim como uma Democracia Liberal meramente publicitária e simbólica, mas daí a erigir Lênin em modelo, vai uma longa e tortuosa distância.
Aliás, esse é um traço que incomoda muito em Zizek, qual seja, sua admiração por uma figura grotesca como Lênin, e pior, por sua conduta:
“Admiro pessoas que se dispõem a assumir o poder e a fazer o trabalho sujo, e talvez isso faça parte de meu fascínio por Lênin. (...). Tenho um respeito considerável pelas pessoas que não perdem o sangue – frio, pelas pessoas que sabem que não há saída para elas”. [45]
Johnson mostra perfeitamente onde esteve (ou melhor, não esteve) a tal “política da verdade” de Lênin:
“En la superfície estaban las disposiciones constitucionales y la legalidad formal. Ése era el espectáculo, destinado a satisfacer al público y al mundo exterior. En un nível más bajo estaban las estructuras profundas del poder real: la policia, el ejército, las comunicaciones, las armas. Esto era lo real. En el plano del espectáculo, Lênin afirmo que su gobierno era ‘provisional’ hasta que pudiera reunirse la Asamblea Constituyente”. [46]
A contradição encontrável na visão crítica exposta por Zizek está, portanto, em sua base marxista porque se a Liberdade, a Igualdade, os Direitos Humanos, o Estado de Direito e a Democracia podem ser criticados como cortinas de fumaça para o bom funcionamento de um sistema econômico capitalista. Se todos esses direitos e instituições são superestruturas para a dominação da infraestrutura capitalista, então o mesmo se pode aplicar à ideologia marxista que seria uma superestrutura para a implantação do regime socialista ou comunista totalitário. Tanto é fato que a “gloriosa ditadura provisória do proletariado” de provisória nada teve jamais, seja na Rússia, seja em Cuba ou onde for. Aliás, também as ditaduras de direita como a militar brasileira, que se disseram “provisórias” jamais o foram. Isso pelo óbvio motivo de que a expressão “ditadura provisória” é autocontraditória e autofágica.
Como acentua Grillo:
“Zizek, em relação ao totalitarismo, parece ser contraditório. Ao mesmo tempo em que coloca a possibilidade do líder revolucionário totalitário, de certa forma insiste no reconhecimento da democracia como manifestação política viável em uma espécie de posição idealista”. [47]
Mas, essa contradição logo se desvanece quando se percebe que o que ocorre com Zizek é o mesmo sintoma de todos aqueles que pensam que o marxismo nunca gerou as consequências que “deveria” gerar e que merece uma segunda (digo, sei lá quantas) chance. Por isso não há, na verdade, contradição no fato de que Zizek idealize uma libertação por um líder totalitário provisório, eis que sua aversão ao totalitarismo se limita àquele totalitarismo que já existiu na história real, mas não a um totalitarismo provisório e ideal que ainda há de se instalar e criar senão o “Paraíso na Terra”, ao menos “um mundo melhor”. [48]
É interessante perceber que Zizek não acredita numa “democracia honesta”, [49] mas acredita num “totalitarismo honesto e bem intencionado”!
O ser humano é realmente surpreendente, pois que um autor como Zizek, com sua capacidade intelectual, é capaz de um pensamento contraditório, ingênuo e pueril como o acima exposto, mas também é capaz de produzir críticas válidas a uma série de ideias consideradas por muitos como intocáveis.
Um exemplo excelente da sua agudeza intelectual está na abordagem das relações entre as demandas das chamadas minorias e o sistema capitalista democrático:
“O que mais marca as intervenções zizekianas, referentes às demandas de grupos minoritários e ao meio ambiente, é o fato de que, em ambas, os problemas e as soluções, apontados em geral pelos especialistas, não se relacionam a uma efetiva mudança radical e universal; antes, de uma maneira geral, há uma adaptação à roda do capitalismo. Tanto a luta pelo meio ambiente sadio quanto os reclamos dos grupos minoritários aparecem, para o capitalismo, como fatores de preocupação, mas que se limitam, na própria lucratividade do sistema econômico, não afirmando uma política de emancipação”. [50]
São exemplos clássicos a apropriação de temas ambientalistas por produtos em seu marketing, de criação de produtos voltados para minorias com poder aquisitivo (como pesquisas que apontam o elevado poder aquisitivo de casais gays), uso promocional de campanhas raciais, caritativas, de direitos humanos etc. por marcas e produtos, dentre outras manobras mais ou menos explícitas.