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A desnecessidade de autenticação das cópias das peças que obrigatoriamente instruem o recurso de agravo de instrumento.

Uma crítica à visão formalista do processo

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01/10/2002 às 00:00
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4. A correta exegese do art. 525, inciso I do Código de Processo Civil: Desnecessidade de autenticação das cópias das peças que obrigatoriamente integram o recurso de agravo de instrumento.

A singela interpretação literal do multicitado art. 525, inciso I do Estatuto dos Ritos, induz a idéia da ausência de obrigação de serem autenticadas as cópias das peças processuais que enumera. Todavia, não nos prenderemos somente a esta modalidade hermenêutica para sustentar a inexigibilidade de tal formalidade, eis que comungamos do pensamento do tributarista Hugo de Brito Machado [34], quando assevera que "o elemento literal é de pobreza franciscana, e utilizado isoladamente pode levar a verdadeiros absurdos, de sorte que o hermeneuta pode e deve utilizar todos os elementos da interpretação, especialmente o elemento sistemático, absolutamente indispensável em qualquer trabalho sério de interpretação, e ainda o elemento teleológico, de notável valia na determinação do significado das normas".

Existem razões outras, superiores à hermenêutica literal, para se considerar desnecessária a autenticação das cópias das peças processuais relacionadas no art. 525, inciso I do Código de Processo Civil. Explicaremos nas linhas vindouras.

Diante da superação do formalismo processual e advento da visão instrumentalista do processo, o cientista do direito viu-se diante de novas concepções, as quais passaram, com efeito, a moldar seu pensamento, adequando-o a uma nova realidade, de sorte que o conceito formalista que tinha a respeito de determinados institutos restou suplantado. Noutro dizer, a perspectiva instrumentalista teve influência marcante na consciência do jurista moderno, instigando-o a rever o seu posicionamento, anteriormente intangível, diante de muitas situações ocorrentes no âmbito do processo. Tal mudança de pensamento foi sabiamente compreendida pelos processualistas Antonio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinarmarco [35] quando afirmaram que: "Tudo que já se fez e se pretende fazer nesse sentido visa, como se compreende, à efetividade do processo como meio de acesso à justiça. E a concretização desse desiderato é algo que depende menos das reformas legislativas (importantes embora), do que da postura mental dos operadores do sistema (juízes, advogados, promotores de justiça). É indispensável a consciência de que o processo não é mero instrumento técnico a serviço da ordem jurídica, mas acima disso, um poderoso instrumento ético destinado a servir à sociedade e ao Estado."

Assim sendo, a interpretação, considerada a atividade intelectual de "determinação do sentido da norma, o correto entendimento do significado dos seus textos e intenções, tendo em vista a decidibilidade de conflitos..." [36], foi também afetada por essa onda instrumentalista do processo. A atividade hermenêutica, que como o direito não é estanque, estático, qualificativo este pertencente ao mundo do ser e não do deve-ser, sofreu ideologicamente uma evolução, pois racionalmente é impossível dissociar o processo exegético do arcabouço ético e ideológico que envolve contextualmente o intérprete. Nessa evolução interpretativa, as formas processuais foram relativizadas, as exigências repensadas, e o produto final desse evolver foi uma concepção mais pragmática e dinâmica do processo.

As formas passaram ser interpretadas restritivamente, necessitando, para efeito de serem aceitas no âmago do moderno processo civil, virem especificadas, ou seja, serem certas e determinadas, e uma vez não estando presente tal especificação, tem lugar a liberdade das formas, podendo o ato processual se revestir de qualquer das roupagens permitidas pelo Direito, desde que sejam hábeis a colmatar a sua finalidade.

Desta sorte, não se encontrando referência no art 525, inciso I do Código de Processo Civil a respeito da necessidade das cópias das procurações dos advogados do agravante e do agravado, bem como da decisão agravada serem devidamente autenticadas. Percebe-se que o legislador processual optou aqui pela liberdade das formas, admitindo a prática do ato processual – exibição das peças sobreditas, sem que seja revestido de uma formalidade essencial, como a conferência por oficial portador de fé pública.

Com propriedade Antonio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinarmarco [37] desvendam, dentro desse prisma instrumentalista do processo, a funcionalidade das formas: "A experiência secular demonstrou que as exigências legais quanto à forma devem atender critérios racionais, lembrada sempre a finalidade com que são impostas e evitando-se o culto das formas como se elas fossem um fim em si mesmas. Esse pensamento é a manifestação do princípio da instrumentalidade das formas (...)"

Em igual sentido aduz Carlos Alberto A. de Oliveira [38]: "Repelida a forma pela forma, forma oca e vazia, a sua persistência ocorre apenas na medida de sua utilidade ou como fator de segurança, portanto apenas e enquanto ligada a algum conteúdo, a algum valor considerado importante".

No caso do art. 525, inciso I do Código de Processo Civil, indaga-se: qual seria a finalidade, o valor, ou quem sabe o critério racional, que visaria atingir a obrigatoriedade de autenticação das cópias das peças arrolados neste dispositivo de lei?

A resposta parece-nos ser fácil e singela: o princípio da segurança jurídica, consubstanciado na garantia da não ocorrência de falsificação de peças constantes nos autos do processo. Ora, como já decidiu o 2º Tribunal de Alçada Cível do Estado de São Paulo: "as peças que compõe o instrumento são reprodução de documentos processuais, ou seja, comuns às partes" [39], de maneira que a parte agravada, na oportunidade em que lhe faculta o art. 527, inciso III do Estatuto dos Ritos, de apresentar sua resposta ao recurso de agravo de instrumento, poderá, se for o caso, impugnar, com esteio no parágrafo único do art. 383 do Código de Processo Civil [40], as cópias das referidas peças processuais, não se causando, portanto, prejuízo algum à finalidade protetiva de se evitar falsificação de documentos a ausência de autenticação. Neste sentido, aliás, é o magistério de Theotônio Negrão [41]: "Com devida vênia, entendemos que não é essencial a autenticação dessas peças, uma vez que à parte contrária cabe o ônus de fiscalizar sua autenticidade (...)". Este raciocínio é construído mediante apego ao método hermenêutico teleológico, o qual como bem lembra Tércio Sampaio Ferraz Jr [42]: "ativa a participação do intérprete na configuração do sentido. (...) É como se o intérprete tentasse fazer com que o legislador fosse capaz de mover suas próprias previsões, pois as decisões dos conflitos parecem basear-se nas previsões de suas próprias conseqüências. Assim se entende que, não importa a norma, ele há de ter, para o hermeneuta, sempre um objetivo que serve para controlar até as conseqüências da previsão legal (...)".

A nova redação do parágrafo primeiro do art. 544 do Código de Processo Civil [43], introduzida pela Lei n.º 10.352/2001, ao reverso do que se pode imaginar a primeira vista, somente veio a corroborar a tese ora sustentada, visto que ao se atribuir a faculdade de autenticar as reproduções fotográficas das peças processuais arroladas naquele dispositivo ao advogado, estar-se, de forma implícita e antagônica, proclamando a integral desnecessidade de autenticação. Esmiuçando melhor essa idéia: conforme é ressabido, a obrigação de instrução do recurso de agravo de instrumento pertencente à parte recorrente, através do mister de seu causídico, de molde que este, ao colacionar cópia de documento processual desprovida de conferência oficial, assume, indubitavelmente, a responsabilidade por sua autenticidade, a qual poderá ser, como visto, impugnada pela parte adversa. Assim sendo, indaga-se qual a diferença substancial, nessa situação, entre a ausência completa de autenticação e a apositura pelo advogado de um carimbo ou a apresentação de uma declaração expressa sua de autenticidade? Facilmente, percebe-se que inexiste diferença capital entre tais procedimentos [44], constituindo, portanto, requinte de formalismo injustificável pretender-se que o advogado responsabilize-se expressamente pela autenticidade das mencionadas cópias, quando se sabe que o ordenamento jurídico já lhe teria incondicionalmente imposto este encargo. Infere-se, ainda, que o desiderato do legislador foi prestigiar o princípio da boa-fé processual do advogado, de forma que a modificação conferida ao art. 544 do Estatuto dos Ritos deve ser compreendida como um reforço ao entendimento da desnecessidade completa de autenticação das cópias das peças processuais que refere. Esta é, alias, a interpretação que melhor se coaduna com a perspectiva instrumentalista do processo.

Nesse passo, cumpre frisar que a interpretação sistemática do Código de Processo Civil igualmente explicita a desnecessidade de autenticação das cópias das peças aludidas no seu art. 525, inciso I, visto que, quando o legislador processual entendeu indispensável a autenticação das reproduções fotográficas de peças processuais, expressamente fez referência a tal necessidade, conforme se observa da letra do art. 541, parágrafo único, é dizer: "Quando o recurso fundar-se em dissídio jurisprudencial, o recorrente fará prova da divergência mediante certidão, cópia autenticada ou pela citação do repositório de jurisprudência, oficial ou credenciado, em que tiver sido publicada a decisão divergente, mencionando as circunstâncias que identificam ou assemelham os casos confrontados". [45] Desse modo, nas hipóteses em que inexiste alusão explícita à realização de autenticação de reprodução fotográfica – como é o caso do art. 525, inciso I –, percebe-se, com evidencia solar, que o legislador ponderou pela desnecessidade de tal formalidade.

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Nunca é demais lembrar que o relator possui a faculdade, na hipótese de assim entender necessário, de determinar, no momento em que exerce o juízo de admissibilidade do recurso de agravo de instrumento, que o agravante proceda a autenticação das reproduções das invocadas peças processuais, sob pena de não seguimento do recurso [46].

O Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo tem como desnecessária a autenticação das reproduções das peças processuais referidas no art. 525, inciso I do Código de Processo Civil, conforme preconiza o seu art. 796, parágrafo segundo [47].

Pontes de Miranda [48], com toda a sua sabedoria, foi assente com o entendimento ora sufragado, quando proclamou que: "A autenticação não se faz necessária, já que nenhuma norma relativa ao agravo a exige, não se podendo cogitar da aplicação do art. 365, que não incide porque relativo à força probante dos documentos trazidos para o processo, enquanto as peças de que se trata já se encontram nele. (...)"

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, perlustrando a trilha da instrumentalidade do processo e das formas, igualmente considera desnecessária a autenticação das cópias dos documentos mencionados no art. 525, inciso I do Código de Processo Civil, conforme se infere da seguinte decisão: "AGRAVO DE INSTRUMENTO. AUTENTICAÇÃO DE PEÇAS. DESNECESSIDADE. - O art. 525 do CPC não impõe, como pressuposto de admissibilidade do agravo, a autenticação das peças trasladadas. Hipótese em que, ademais, não se deu oportunidade à parte adversa de impugnar a autenticidade e veracidade das cópias apresentadas.Recurso especial conhecido e provido". [49] Outrossim: "PROCESSO CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. AUTENTICAÇÃO DE PEÇAS.DESNECESSIDADE. PRECEDENTES DA SEGUNDA SEÇÃO. RECURSO PROVIDO. - A necessidade de autenticação das peças, como requisito de admissibilidade do agravo, não encontra respaldo na legislação processual, nem se ajusta ao escopo do processo como instrumento de atuação da função jurisdicional do Estado, atritando, inclusive, com os princípios da economia e celeridade". [50] E ainda: "PROCESSO CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. AUTENTICAÇÃO DE PEÇAS. DESNECESSIDADE. O artigo 525 do Código de Processo Civil, que dispõe sobre o modo como o agravo de instrumento deve ser instruído, não exige a autenticação das respectivas peças. Recurso especial conhecido e provido". [51]

Por outro lado, corrobora a exegese em comento do art. 525, inciso I do Código de Processo Civil, a aplicação do "princípio da economia processual, o qual preconiza o máximo resultado na atuação do direito com o mínimo emprego possível de atividades processuais". [52] Ora, se a mercê de tal princípio a relação processual deve ser conduzida de modo a gerar o mínimo de dispêndio econômico possível, seja para a máquina estatal judiciária, seja para as partes envolvidas, observa-se que, com razão, constitui prática obsoleta e gravosa exigir que o recorrente, em sede agravo de instrumento, proceda à autenticação das cópias das peças que obrigatoriamente acompanham a petição deste recurso, visto que, além de demandar divisas financeiras necessárias à remuneração do serviço cartorário responsável pela conferência, haveria, ainda, o desperdício de tempo com a realização de tal ato. [53]


6. Conclusão.

O processo, influenciado diretamente por concepções políticas e ideológicas, sofreu clarividente mutação nos últimos tempos, tendo sido, em conseqüência, abandonadas concepções adjetivistas e introspectivas, que impunham um formalismo extremo e desmotivado. A forma inútil e solene, desprovida de uma finalidade relevante foi renegada. O princípio da segurança jurídica, principal alicerce do formalismo processual, foi relativizado pelo princípio da justiça, surgindo, diante desse novo quadro, uma visão teleológica ou instrumentalista do processo, onde este passa a constituir um mecanismo hábil a propiciar a realização da justiça no seio social.

Nesse passo, a interpretação das normas jurídicas que compõe o direito processual civil, mormente o Código de Processo Civil, foi intensamente atingida, de maneira que o operador do direito passou a ter sempre como norte, na sua atividade hermenêutica, a instrumentalidade do processo, eis que "... o levantamento das condições atuais deve levar o intérprete a verificar as funções do comportamento e das instituições sociais no contexto existencial em que ocorrem" [54]. A idéia teleológica, como ensina Cândido Rangel Dinamarco [55], destina-se a colmatação de escopos, entre os quais, insere-se o propósito social de pacificar o convívio humano por meio da soberana justiça. Em conseqüência dessa moderna visão processual, ocorreu o fortalecimento do princípio da instrumentalidade das formas, positivado entre nós no art. 244 do Estatuto dos Ritos, o qual pugna pelo máximo aproveitamento dos atos processuais, apesar de desvestidos da forma procedimental cominada, desde que seja alcançada a sua finalidade.

A correta exegese do art. 525, inciso I do Código de Processo Civil deve, portanto, alinhar-se a tal conjuntura, repudiando as exigências formais de autenticação das cópias das peças processuais ali mencionadas, pois com apego aos métodos sistemático e teleológico, e ao princípio da economia processual, o operador do direito arremata, de molde inconteste, a não aceitação da imposição de uma formalidade – conferência oficial de documentos – que não atenda a um critério racional, e não se traduza numa otimização temporal e econômica da atividade jurisdicional.

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Sobre o autor
Marcos Valério Melo Castro

advogado do escritório Motta & Soares – Advocacia & Consultoria S/C, em Maceió (AL), pós-graduando em Direito Privado pelo Bureau Jurídico em convênio com a Fundação Jayme de Altavila - Fejal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CASTRO, Marcos Valério Melo. A desnecessidade de autenticação das cópias das peças que obrigatoriamente instruem o recurso de agravo de instrumento.: Uma crítica à visão formalista do processo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 59, 1 out. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3270. Acesso em: 23 abr. 2024.

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