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Manifestações do direito penal do inimigo no ordenamento jurídico brasileiro

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07/05/2015 às 15:40
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Capítulo IV - Lei 9.614/98 – O abate de aeronaves suspeitas

Uma das infiltrações do Direito Penal do Inimigo no Ordenamento Jurídico Brasileiro pode ser observada na popularmente chamada “Lei do Abate” ou “Lei do Tiro de Destruição”. Trata-se de alterações feitas pela Lei nº 9.614, de 5 de março de 1998, no artigo 303 do Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei 7.565, de 19 de dezembro de 1986), regulamentado pelo Decreto nº 5.144, de 16 de julho de 2004, que possibilitou que aviões considerados hostis possam ser derrubados, após uma série de procedimentos ignorados pelo piloto de tal aeronave.

Essa modificação veio para ajudar o policiamento no espaço aéreo brasileiro, especialmente no tocante a viagens aéreas irregulares, onde há a suspeita de envolvimento com o tráfico de drogas e entorpecentes.

4.1. Tráfico de drogas: vetor da criminalidade

Hoje no Brasil o tráfico de drogas é o principal vetor da criminalidade, senão a principal fonte de renda das organizações criminosas. Isso se dá pelo fato de as drogas fazerem com que seus usuários fiquem rapidamente viciados, gerando a necessidade de serem ingeridas frequentemente pelo organismo e cada vez em maior quantidade.

Como o cultivo, fabricação e venda desses entorpecentes é proibida por lei, o custo para sua produção e transporte acaba sendo elevado, o que aumenta o preço final do produto. Com isso, sustentar o vício se torna cada vez mais dispendioso, o que repercute diretamente no aumento dos delitos de furto e roubo.

O crime acaba se tornando a fonte de renda para a manutenção do vício, pois o usuário de droga tem uma necessidade compulsiva de utilizar cada vez mais o entorpecente.

 O consumo de drogas acaba levando uma pessoa a se desprender de valores éticos, a se distanciar da família e da sociedade, o que aumenta potencialmente as chances desse viciado praticar crimes com violência.

O pior é que o tráfico de drogas se liga diretamente a venda de armas no mercado negro, já que possuir armamento é fator fundamental para a intimidação e o garantismo do monopólio de determinadas regiões por traficantes.

O uso de drogas também aumenta a prostituição, principalmente quando relacionado ao consumo por mulheres, que acabam vendendo seus corpos para conseguir dinheiro e sustentar o vício.

Segundo Alba Zaluar, (2004, p.53): “A conexão do tráfico de drogas ilícitas com outras modalidades criminosas é uma verdade atual”. Continua a antropóloga dizendo (p.59): “sendo que muitas das vezes esses criminosos encontram nos assaltos e demais crimes contra o patrimônio a saída para obtenção de dinheiro para pagar o dinheiro devido ao traficante”.

Segundo Eduardo Godinho Pereira[17]:

Ao examinarmos a relação das drogas ilícitas com os crimes violentos, obtivemos resultados inquietantes. Examinando-se as séries históricas, relativas aos últimos anos, constata-se que não apenas o número de crimes violentos praticados por pessoas sob o efeito das drogas ou envolvidos com estas tem aumentado, mas também o aspecto qualitativo de muitos desses crimes – a exemplo a crueldade acentuada no cometimento desses crimes.

Analisado o banco de dados da Polícia Militar de Minas Gerais, verificou-se que os crimes violentos contra a pessoa (homicídio) no ano de 2011, estavam diretamente ligados ao tráfico de drogas ilícito em mais de 80% dos casos registrados.

Já em 1987, na obra “Medios de Comunicación y Previnxión de lãs Drogo dependencias”, Oliva Perez dizia (p.6):

Na maioria das vezes, a palavra droga aparece, nas manchetes, associadaàs palavras briga, assalto, tiroteio e morte, em segundo lugar, ainda que com menor freqüência, a palavra droga vem seguida de conceitos tais comoadulteração, “overdose” e morte. Observe-se que em ambos os casos oencadeamento conceitual termina no dano socialmente mais grave: a morte.

Pelo fato de o Brasil fazer divisa com países produtores de drogas ilícitas, como Colômbia e Bolívia, e levando-se em consideração que aqui existe um grande potencial de consumo, acabamos sendo vistos como um país com grandes chances para a obtenção de lucro pelos grandes produtores de entorpecentes. Não nos esquecendo que o Brasil se tornou rota para o envio de drogas para a Europa.

Argemiro Procópio Filho e Alcides Costa Vaz, professores do Departamento de Relações Internacionais da Universidade de Brasília, na obra “O Brasil no contexto do narcotráfico internacional” (2007) explicam que:

[...] O Brasil processa, importa e exporta vários tipos de drogas. Tornou-se importante centro de produção e de consumo, além de fornecer novas drogas alternativas para os mercados interno e externo e de se ter constituído em mais uma peça da engenharia do crime do narcotráfico internacional.3 Assim, rapidamente cresce a importância do País no comércio internacional de drogas. Aumentam então, no cenário mundial, as expectativas quanto ao seu papel no enfrentamento do mesmo.

E continuam:

Desde 1993, a discussão sobre o tema do narcotráfico associou-se a outras questões igualmente importantes para a sociedade brasileira, como corrupção política, violência e criminalidade, governabilidade, papel das Forças Armadas, reformas do Estado, da economia e do sistema financeiro em geral. A abrangência do debate sobre o narcotráfico resultante de sua vinculação com as questões acima referidas reflete sua complexidade orgânica na sociedade brasileira. Por outro lado, demonstra mudanças quanto à forma com que o próprio governo e a sociedade passaram a abordar o problema.

As drogas entram no território brasileiro principalmente por rotas aéreas, através de pequenas aeronaves, que partem das já conhecidas regiões produtoras dos entorpecentes com destino ao interior do Brasil, ou então direcionadas a países vizinhos, e também a caminho da Europa e dos Estados Unidos, tornando o Brasil verdadeira rota de exportação.

Com isso, e levando em consideração a extensão da área fronteiriça do Brasil, são necessários meios que dêem maior efetividade a fiscalização da entrada de drogas e entorpecentes no país, principalmente no tocante a essas pequenas aeronaves irregulares quase sempre carregadas de drogas.

4.2. Artigo 303 do Código Brasileiro de Aeronáutica

O Código Brasileiro de Aeronáutica em seu artigo 303 cuida das hipóteses em que uma aeronave pode ser submetida à detenção, interdição e apreensão pelas autoridades aeronáuticas, fazendárias ou de Polícia Federal.

Vejamos:

Art.303. A aeronave poderá ser detida por autoridades aeronáuticas, fazendárias ou de Polícia Federal, nos seguintes casos:

I- se voar no espaço aéreo brasileiro com infração das convenções ou atos internacionais, ou das autorizações para tal fim;

II- se, entrando no espaço aéreo brasileiro, desrespeitar a obrigatoriedade de pouso em aeroporto internacional;

III- para exame dos certificados e outros documentos indispensáveis;

IV- para verificação de sua carga no caso de restrição legal ( art. 21)[1] ou de porte proibido de equipamento ( parágrafo único do art. 21 )[2];

V- para averiguação de ilícito.

Em seu parágrafo primeiro tal dispositivo legal prevê que “A autoridade aeronáutica poderá empregar os meios que julgar necessários para compelir a aeronave a efetuar o pouso no aeródromo que lhe foi indicado”. Todavia, as aeronaves clandestinas interceptadas pela Força Aérea brasileira ignoravam quase que completamente as ordens recebidas pelos responsáveis pela fiscalização das fronteiras. Com isso, em 1998, a Lei nº 9.614 inseriu os parágrafos segundo e terceiro no artigo 303. Com efeito, tal dispositivo legal passou a prever que:

Art. 303.

(...)

§ 2º. Esgotados os meios coercitivos legalmente previstos, a aeronave será classificada como hostil, ficando sujeita à medida de destruição, nos casos dos incisos do caput deste artigo e após autorização do Presidente da República ou autoridade por ele delegada ( parágrafo acrescido pela Lei 9.614/98)

§ 3º. A autoridade mencionada no § 1º responderá por seus atos quando agir com excesso de poder ou com espírito emulatório.(parágrafo re-numerado e alterado pela Lei 9.614/98)”

Assim, as autoridades competentes passaram a ter legitimidade para abater, derrubar uma aeronave que se recusasse a se submeter às ordens a ela direcionadas. Todavia, tal disposição legal só passou a poder ser utilizada a partir de 2004, quando foi publicado o Decreto nº 5.144/04, responsável por regular tal artigo.

Essa regulamentação criou meios de persuasão adequados ao policiamento do espaço aéreo brasileiro. Esse texto legal foi criado depois de amplo debate com outros governos interessados no tema, sendo resultado, assim, de vários intercâmbios com países vizinhos, com vista a integralizar os procedimentos de interceptação aérea e minimizar os riscos de equívocos.

Ressalta-se que a Lei do Abate só se aplica a aeronaves suspeitas de envolvimento com o tráfico internacional de drogas, já que é o narcotráfico que representa maior risco para a segurança da sociedade.

Primeiramente, a aeronave será declarada suspeita, sendo aplicado a ela procedimentos específicos. Só depois ela será classificada como hostil, sujeita a medida de destruição.

O Decreto nº 5.144/04 esclarece em seu artigo segundo em quais hipóteses uma aeronave será considerada suspeita. Vejamos:

Art. 2º. Para fins deste Decreto, é considerada aeronave suspeita de tráfico de substâncias entorpecentes e drogas afins aquela que se enquadre em uma das seguintes situações:

I - adentrar o território nacional, sem Plano de Vôo aprovado, oriunda de regiões reconhecidamente fontes de produção ou distribuição de drogas ilícitas; ou

II - omitir aos órgãos de controle de tráfego aéreo informações necessárias à sua identificação, ou não cumprir determinações destes mesmos órgãos, se estiver cumprindo rota presumivelmente utilizada para distribuição de drogas ilícitas.

Quando considerada suspeita, a aeronave será submetida a três tipos de medidas coercitivas, que serão aplicadas de forma progressiva, sempre que a medida anterior não obtiver êxito. Tal procedimento esta regulamentado no artigo terceiro do Decreto:

Art. 3º.  As aeronaves enquadradas no art. 2o estarão sujeitas às medidas coercitivas de averiguação, intervenção e persuasão, de forma progressiva e sempre que a medida anterior não obtiver êxito, executadas por aeronaves de interceptação, com o objetivo de compelir a aeronave suspeita a efetuar o pouso em aeródromo que lhe for indicado e ser submetida a medidas de controle no solo pelas autoridades policiais federais ou estaduais.

§ 1º.  As medidas de averiguação visam a determinar ou a confirmar a identidade de uma aeronave, ou, ainda, a vigiar o seu comportamento, consistindo na aproximação ostensiva da aeronave de interceptação à aeronave interceptada, com a finalidade de interrogá-la, por intermédio de comunicação via rádio ou sinais visuais, de acordo com as regras de tráfego aéreo, de conhecimento obrigatório dos aeronavegantes.

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Primeiramente têm-se as medidas de averiguação, que visam confirmar ou determinar a identidade da aeronave, ou então vigiar o seu comportamento.

Primeiramente é feito um reconhecimento à distância. Os pilotos responsáveis pela interceptação, sem serem percebidos, fotografam a aeronave investigada com o fim de colher informações sobre sua matrícula, nível de vôo e características marcantes do avião. Através da matrícula, verifica-se se ela corresponde ao tipo de aeronave, qual o nome do proprietário, sua qualificação, certificado de aeronavegabilidade, etc. Se for constatado que a aeronave esta regular, será realizado somente o acompanhamento. Todavia, se houver algo suspeito ou irregular, a aeronave de interceptação se fará visível e iniciará tentativas de comunicação bilateral com a aeronave suspeita. Isso pode se dar através de interrogação na frequência prevista para a área, ou frequência internacional de emergência. Tal contato pode ocorrer também com a realização de sinais visuais.

Na hipótese de o piloto da aeronave suspeita não responder a nenhuma das medidas de averiguação, passa-se ao segundo nível: as medidas de intervenção.

§ 2º.  As medidas de intervenção seguem-se às medidas de averiguação e consistem na determinação à aeronave interceptada para que modifique sua rota com o objetivo de forçar o seu pouso em aeródromo que lhe for determinado, para ser submetida a medidas de controle no solo.

As medidas de intervenção possuem dois procedimentos, quais sejam: a mudança de rota e o pouso obrigatório. A aeronave de interceptação, tanto pelo rádio, em todas as freqüências disponíveis, quanto por sinais visuais, determinará que a aeronave suspeita mude sua rota para um local de pouso determinado onde será submetida a averiguações terrestres.

Se essa determinação também não for cumprida pelo piloto ou tripulante da aeronave suspeita, passa-se para o terceiro nível das medidas previstas: as de persuasão.

§ 3º.  As medidas de persuasão seguem-se às medidas de intervenção e consistem no disparo de tiros de aviso, com munição traçante, pela aeronave interceptadora, de maneira que possam ser observados pela tripulação da aeronave interceptada, com o objetivo de persuadi-la a obedecer às ordens transmitidas.

Nesse momento, sendo infrutíferas todas as medidas anteriores, o piloto da aeronave de interceptação realizará tiros de advertência lateralmente à aeronave suspeita, com munição traçante. Tais disparos não devem atingir a aeronave sob investigação, mas apenas serem visíveis por sua tripulação.

Se após todos esses procedimentos a aeronave ainda não se reportar e acatar o que lhe foi determinado, como a mudança de rota e pouso, ela então será considerada hostil e estará sujeita à medida de destruição.

Art. 4º.  A aeronave suspeita de tráfico de substâncias entorpecentes e drogas afins que não atenda aos procedimentos coercitivos descritos no art. 3º será classificada como aeronave hostil e estará sujeita à medida de destruição.

Art. 5º.  A medida de destruição consiste no disparo de tiros, feitos pela aeronave de interceptação, com a finalidade de provocar danos e impedir o prosseguimento do vôo da aeronave hostil e somente poderá ser utilizada como último recurso e após o cumprimento de todos os procedimentos que previnam a perda de vidas inocentes, no ar ou em terra.

Como se pôde observar no artigo quarto do Decreto nº 5.144/04, a medida de destruição consiste na realização de disparos, pela aeronave de interceptação, dirigidos diretamente à aeronave suspeita, com o fim de provocar danos e impedir o prosseguimento do vôo da aeronave interceptada.

Todavia, esse tiro de destruição obrigatoriamente deve atender ao estipulado no artigo sexto do Decreto acima citado. Assim:

Art. 6º.  A medida de destruição terá que obedecer às seguintes condições:

I - emprego dos meios sob controle operacional do Comando de Defesa Aeroespacial Brasileiro - COMDABRA;

II - registro em gravação das comunicações ou imagens da aplicação dos procedimentos;

III - execução por pilotos e controladores de Defesa Aérea qualificados, segundo os padrões estabelecidos pelo COMDABRA;

IV - execução sobre áreas não densamente povoadas e relacionadas com rotas presumivelmente utilizadas para o tráfico de substâncias entorpecentes e drogas afins; e

V - autorização do Presidente da República ou da autoridade por ele delegada.

Como visto os tiros só podem ocorrer quando todas as aeronaves envolvidas na interceptação e policiamento do espaço aéreo estejam sob o controle operacional das autoridades brasileiras de defesa, ou seja, o Comando de Defesa Aeroespacial Brasileiro (COMDABRA). A comunicação entre as aeronaves de interceptação e interceptada também deve ficar registrado em gravações sonoras e/ou audiovisuais.

A interceptação só poderá ser feita e os tiros só poderão ser disparados por pilotos e controladores da defesa aérea brasileira devidamente qualificados segundo o exigido pelo Comando de Defesa Aeroespacial Brasileiro.

Por fim, tal procedimento deve ser realizado em rotas presumivelmente utilizadas para o tráfico de drogas e entorpecentes afins, devendo ser também uma área que não seja densamente povoada.

Quanto à competência para autorizar a aplicação da medida de destruição, o artigo décimo do Decreto estabelece que: “Fica delegada ao Comandante da Aeronáutica a competência para autorizar a aplicação da medida de destruição”.

4.3. Soberania e Segurança Nacional versus Direito à vida, a liberdade e ao devido processo legal

Com a publicação e posterior regulamentação da Lei do Abate surgiram várias discussões sobre a sua constitucionalidade. Alguns doutrinadores entendem que ela fere o artigo 5º, XLVII, “a”, da Constituição, pois esse dispositivo legal só autoriza a pena de morte em caso de guerra declarada. Argumentam, também, que no caso do tiro de destruição haveria uma execução sumária sem nenhum direito de defesa, o que também violaria os princípios do devido processo legal, contraditório e ampla defesa, previstos nos incisos LIV e LV, do artigo 5º, da Carta Magna[18].

Todavia, há que se lembrar que o tráfico de drogas é uma “doença mundial” que não afeta um número determinado de pessoas, mas a sociedade como um todo, seja por seus males diretos como pelos indiretos (demais delitos), ofendendo, assim, a segurança nacional.

Tanto assim o é que a própria Constituição, em seu artigo 5º, repudia o tráfico de entorpecentes:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura ,o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem; (grifo nosso).

O Brasil tem soberania exclusiva e absoluta sobre o seu território e espaço aéreo[19], sendo dever das Forças Armadas (Marinha, Exército e Aeronáutica) a proteção da Pátria, tendo a Constituição atribuído a União a competência de assegurar à Defesa Nacional (artigo 21, III e artigo 142, ambos da Constituição Federal).

O Estado, pautado no Princípio da Soberania, exerce o jus puniendi. Trata-se do direito indelegável e intransferível do Estado punir qualquer pessoa que tenha cometido uma infração penal, aplicando a este infrator uma sanção. Todavia tal poder deve observar vários limites, quais sejam: as garantias constitucionais.

Todas as pessoas têm garantido seu direito à vida, “cabendo ao Estado assegurá-lo em sua dupla acepção, sendo a primeira relacionada ao direito de continuar vivo e a segunda de se ter vida digna quanto à subsistência” (MORAES, 1999, p.61). Tem também o indivíduo o direito de ter a si aplicado o devido processo legal quando for acusado de um ato delituoso. Segundo Alexandre de Moraes (1999, p.112), decorrem desse princípio o direito ao contraditório e ampla defesa. Segue o autor dizendo:

O devido processo legal configura dupla proteção ao indivíduo, atuando tanto no âmbito material de proteção ao direito de liberdade, quanto no âmbito formal, ao assegurar-lhe paridade total de condições com o Estado-persecutor e plenitude de defesa (direito a defesa técnica, à publicidade do processo, à citação, de produção ampla de provas, de ser processado e julgado pelo juiz competente, aos recursos, à decisão imutável, à revisão criminal).

A Constituição também prevê o direito à liberdade, segurança, propriedade, etc. Assim, O Estado, garantidor de tais princípios, deve agir de modo que a população como um todo tenha a possibilidade de exercer esses direitos fundamentais.

Nesse contexto, e levando-se em consideração a complexidade da vida em sociedade, sempre haverá momentos em que uma pessoa, com suas atitudes acabará invadindo e violando direitos de outra. Em alguns momentos certas atitudes não atingirão apenas um número determinado de pessoas, mas a sociedade inteira, pondo em risco toda a coletividade. É o caso do tráfico internacional de drogas.

O Estado tem o dever de garantir a segurança nacional. Assim, deve assegurar em qualquer circunstância, momento ou lugar, a integridade de seu território, a proteção de toda a população e a preservação dos interesses nacionais, contra todo tipo de agressão ou ameaça.

Como se pôde observar, a Lei do Abate não é uma oposição aos princípios constitucionais, mas sim um choque, um conflito entre direitos fundamentais, tendo à vida, à liberdade e o devido processo legal de um lado e à segurança pública e soberania nacional de outro.

Isso se dá pelo fato de os direitos fundamentais ou princípios constitucionais não serem absolutos; podendo, então, haver choque ou colisão entre eles, nos casos em que para o exercício de um for necessário, impreterivelmente, a invasão do outro.

Canotilho e Vital Moreira (1991, p.134) ao tratarem do tema, apontam para a seguinte solução:

No fundo, a problemática da restrição dos direitos fundamentais supõe sempre um conflito positivo de normas constitucionais, a saber, entre uma norma consagradora de certo direito fundamental e outra norma consagradora de outro direito ou de diferente interesse constitucional. A regra de solução do conflito é da máxima de experiência dos direitos fundamentais envolvidos e da sua mínima restrição compatível com a salvaguarda adequada de outro direito fundamental ou outro interesse constitucional em causa. Por conseguinte, a restrição de direitos fundamentais implica necessariamente em uma relação de conciliação com outros direitos ou interesses constitucionais e exige necessariamente uma tarefa de ponderação ou de concordância prática dos direitos ou interesses em conflito. Não se pode falar em restrição de um determinado direito fundamental em abstrato, fora da sua relação com um concreto direito fundamental ou interesse fundamental diverso.

Quando isso ocorrer, o meio adequado para a solução do conflito é a aplicação do Princípio da Proporcionalidade[20].

Segundo Carlos Roberto Siqueira Castro (2005, p.82), tal princípio pode ser definido como:

[...] orientação deontológica de se buscar o meio mais idôneo ou a menor restrição possível, a fim de que a lesão de um bem da vida não vá além do que seja necessário ou pelo menos, defensável em virtude de outro bem ou de um objetivo jurídico revestido de idoneidade ou reconhecimento com de grau superior.

Willis Santiago Guerra Filho (2003, p.269) diz que o Princípio da Proporcionalidade:

[...] determina a busca de uma ‘solução de compromisso’, na qual se respeita mais, em determinada situação, um dos princípios em conflito, procurando desrespeitar o mínimo o(s) outro(s), e jamais lhe(s) faltando totalmente com o respeito, isto é, ferindo-lhe(s) seu “núcleo essencial”, onde se acha insculpida a dignidade humana.

Assim, em poucas palavras, tal princípio busca uma relação de equilíbrio entre o fim que se almeja e os meios utilizados para sua obtenção.

A Lei do Abate não autoriza a derrubada de qualquer avião. Ela parte do princípio da violência mínima, prevendo uma série de condutas a serem praticadas antes do tiro de destruição e, mesmo quando o prevê preconiza que ele deve ser dado de forma a causar apenas danos na aeronave que impeçam a continuação do vôo, não necessariamente a sua derrubada.

São dadas aos tripulantes de uma aeronave suspeita todas as chances de se reportarem as autoridades brasileiras. Mas, quando eles se recusam a cooperar, seria justo não fazer nada e deixar que esses criminosos alimentem ainda mais o comércio de drogas no Brasil?

Tal sensação de impunidade teria dois efeitos negativos. Em primeiro lugar a população deixaria de acreditar no Poder de Polícia do Estado, na sua capacidade de garantir a segurança. Em segundo, alimentaria nos criminosos a ideia de que o Brasil é um país sem lei, onde tudo é permitido.

Com a lei do Tiro de Destruição esta se preservando o direito a segurança e a paz da sociedade, além de criar nos criminosos a consciência de que o Estado possui instrumentos aptos a assegurar o cumprimento da lei.

Fazendo um paralelo ao Direito Penal do Inimigo, o jurista Marcelo Yukio Misaka, no artigo “Lei do Abate, Direito Penal do Inimigo e Constituição Federal” diz que:

[...] as aeronaves consideradas “hostis”, por conseqüência os seus tripulantes, serão vistos como inimigos, fontes de perigo à nação brasileira, porque mesmo depois de inúmeros procedimentos de averiguação, tiros de advertência, continuam a desobedecer às ordens das autoridades aéreas. Destarte, cuida-se de pessoas que pelo seu comportamento não oferecem expectativas cognitivas mínimas de que irão respeitar a norma. Daí ser legitima a relativização de direitos e garantias, já que aquele que não se comporta como cidadão não poderia exigir ser tratado como tal. O piloto da aeronave hostil teve inúmeras oportunidades de se render e atender aos comandos da Autoridade, todavia, optou por continuar ignorando os procedimentos legais

Segue dizendo que o tiro de destruição:

[...] encontraria equilíbrio entre meios e fins, já que a segurança nacional, com a defesa da sociedade contra o tráfico de drogas, delito vetor dos demais, justificaria a relativização dos direitos e garantias de quem teve todas as oportunidades de pousar o avião, mas optou por continuar contrário à lei.

Diante de todo o exposto, soluciona-se a problemática da supressão de certas garantias fundamentais no uso do tiro de destruição, pois tal medida estaria de acordo com o princípio da proporcionalidade e razoabilidade, já que é apta a inibir o tráfico de drogas e entorpecentespor meio aéreo, não existindo nenhum outro modo menos gravoso de se atingir o mesmo objetivo com tamanha eficácia.

Isso é tão verdade que, em 2009, a Força Aérea Brasileira (FAB) pela primeira vez utilizou o tiro de advertência contra uma aeronave suspeita de estar transportando um carregamento de drogas[21].

Ao interceptar um monomotor em Rondônia, na fronteira do Brasil com a Bolívia, os pilotos da FAB realizaram todos os procedimentos regulados no Decreto nº 5.144/04; tentaram se comunicar com os tripulantes do avião, pediram que alterassem sua rota e pousassem para a tomada de medidasem terra, mas foram ignorados. Então, quando os caças brasileiros deram os tiros de advertência, o piloto do monomotor rapidamente pousou o avião.

Com a utilização da Lei do Abate, a FAB impediu o ingresso de 176 Kg de pasta base de cocaína, carga do monomotor, no Brasil.

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEMES, Flávia Maria. Manifestações do direito penal do inimigo no ordenamento jurídico brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4327, 7 mai. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/32886. Acesso em: 4 nov. 2024.

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