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Obrigação e crédito tributário.

Crítica terceira ao realismo lingüístico de Paulo de Barros Carvalho

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01/10/2002 às 00:00
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3. Processo de positivação do direito: lançamento e "autolançamento"

Como é consabido, desde que o direito tributário ganhou autonomia científica, despregando-se da ciência das finanças, do direito financeiro e do direito administrativo, há uma intensa disputa teórica sobre os efeitos do ato jurídico do lançamento: se ele seria constitutivo ou declaratório da obrigação tributária. Essa contenda teórica não é sem razão de ser, uma vez que o lançamento tributário sempre foi tratado no núcleo das preocupações mais elevadas dos tributaristas, de vez que o perfil da obrigação tributária é por ele delineado, através da atividade vinculada do fisco. A teoria clássica sempre reputou que o lançamento fosse declaratório do fato jurídico tributário e de seus efeitos (obrigação tributária lato sensu). Doutra banda, entenderam os constitutivistas que o lançamento declararia a ocorrência do chamado fato gerador, mas a obrigação e o crédito tributário seriam constituídos por ele. Paulo de Barros Carvalho rejeita ambas as hipóteses, indo por uma linha mais radical: para ele, o lançamento seria o enunciado protocolar e denotativo que veicularia a norma individual e concreta, constitutiva do fato jurídico tributário e do fato relacional. Consoante suas próprias palavras [43]: "(...) a previsão abstrata que a lei faz, na amplitude de sua generalidade, não basta para disciplinar a conduta intersubjetiva da prestação tributária. Sem uma norma individual e concreta, constituindo em linguagem o evento contemplado na regra-matriz, e instituindo também em linguagem o fato relacional, que deixa atrelados os sujeitos da obrigação, não há que se cogitar de tributo. Seria até um desafio mental interessante tentar imaginar caso de incidência específica da regra-padrão, numa hipótese individualizada, sem a expedição de ato de aplicação. Seria uma tarefa impossível!"

Procuraremos agora nos impor esse desafio mental, buscando demonstrar a possibilidade e, mais ainda, a existência da relação jurídica tributária sem a necessidade de prévia emissão de norma individual e concreta. Antes, porém, façamos apenas uma breve reflexão. A teoria carvalhiana formaliza ao extremo o direito, reduzindo a facticidade jurídica à normatividade lingüística: os fatos jurídicos são normas individuais e concretas. Essa redução do fenômeno jurídico à linguagem escrita e à formalização de procedimentos resulta uma empresa inglória, mesmo naquelas parcelas dos ramos jurídicos onde haja a necessidade de atos jurídicos solenes e formais, como ocorre no campo do direito tributário e do direito penal. A fortiori, naqueles núcleos normativos onde haja uma necessidade de concretização e efetividade das normas jurídicas, essa limitação formalista do fenômeno jurídico se torna insustentável. Basta verificar o que ocorre nas relações de consumo, exempli gratia, para se afastar às inteiras a viabilidade prática de uma visão tão reducionista do fenômeno jurídico.

Na seara do direito tributário, há uma tendência lógica de maior formalização dos procedimentos, tendo em vista a necessidade de balizar a atividade arrecadadora do fisco, sem permitir fique sem proteção a esfera individual dos contribuintes. Em um Estado Democrático de Direito não se admite o autoritarismo fiscal, havendo um impulso cada vez mais crescente na estatuição de códigos de defesa dos contribuintes, justamente para homenagear as liberdades públicas contra os excessos do poder estatal. É para cumprir essa finalidade de proteção da cidadania fiscal que o direito tributário formaliza os seus procedimentos, assim como o direito penal o faz. Destarte, o formalismo dos procedimentos não é um fim em si mesmo, mas meio para realizar, no plano do ser, o dever-ser do Estado de Direito.

Exemplo notável dessa formalização é a necessidade, estatuída pelo legislador, da edição de ato de lançamento pela autoridade fiscal para o nascimento do crédito tributário (art.142 do CTN). Impressiona, sem embargo, que ainda hoje se trate o lançamento tributário com a mesma importância e os mesmos paradigmas de antanho, tendo em vista que poucas espécies de tributos necessitam, para sua concretização, de expedição desse ato administrativo. Hoje, os principais e mais importantes impostos e contribuições são quantificados através de processos elaborados pelo próprio contribuinte, sem a necessidade de intervenção prévia do fisco, cuja atividade passa a ser posterior, no exercício de seu poder-dever de fiscalizar. Exemplo típico do imposto em que o lançamento ocorre previamente à atividade do sujeito passivo é o IPTU. No comum dos casos, a regra é o sujeito passivo cumprir o dever legal de recolher o tributo antes de qualquer atuação ou manifestação do fisco [44].

Assim, enquanto no IPTU o contribuinte recebe a notificação pessoal, em sua casa, do lançamento tributário, para tornar exigível a obrigação tributária, no caso do ICMS compete a ele, cumprindo os deveres instrumentais, escriturar as saídas e entradas de mercadoria, quantificar o tributo devido no período, informar ao fisco e recolher o valor escriturado. A atividade do sujeito ativo, vinculada, de análise das informações prestadas pelo contribuinte, é posterius, que pode sequer ocorrer no prazo legalmente previsto, dando-se aquilo que se vem chamando de homologação tácita. Na verdade, nem homologação há: há omissão do fisco, que gera efeitos jurídicos. Para que não se fugisse dos paradigmas teóricos à base da construção normativa do Código Tributário Nacional, importou-se para o Brasil a expressão autolançamento, para dar à atividade do contribuinte a natureza que ela não tem: de ato administrativo vinculado, praticado por autoridade competente (art. 142 do CTN) [45]. Aliás, também para Paulo de Barros Carvalho [46], "(...) o ato homologatório exercitado pela Fazenda, ‘extinguindo definitivamente o débito tributário’, não passa de um ato de fiscalização, como tantos outros, em que o Estado, zelando pela integridade de seus interesses, verifica o procedimento do particular, manifestando-se expressa ou tacitamente sobre ele".

Com essa percepção clara do fenômeno, a teoria carvalhiana se despede da análise do ato de lançamento e se fixa na atividade do sujeito passivo, que tem uma função substitutiva do fisco na quantificação do debitum tributário. Assim, a atividade do contribuinte passa a ser decisiva para o ingresso de recursos no erário. De pronto, nos surge uma inquietante pergunta: qual a natureza da atividade do contribuinte de preencher formulários e documentos fiscais, especificando o valor a ser pago ao fisco?

Consoante já demonstramos anteriormente, essas atividades decorrem de deveres instrumentais que vinculam o contribuinte à prática de atos essenciais para a quantificação e recolhimento do tributo devido. É dizer, são obrigados os sujeitos passivos, por normas gerais e abstratas, a atuarem de qual ou tal maneira, para a fixação do valor devido a título de obrigação tributária. Curial seria saber se para o surgimento, na esfera jurídica dos contribuintes, desse dever instrumental, haveria a emissão de alguma norma individual e concreta. Demonstramos às mancheias, linhas atrás, que não. Nesse ponto, há importante afirmação de Paulo de Barros Carvalho [47]: "Por sua extraordinária relevância, penso que não seria excessivo reiterar a insuficiência da norma geral e abstrata, em termos de regulação concreta da conduta tipificada. Por mais prático e objetivo que seja o súdito do Estado, vivamente empenhado em cumprir a prestação tributária que lhe incumbe, não poderá fazê-lo simplesmente com procedimentos mentais, alimentados por sua boa vontade. Terá de, impreterivelmente, seguir comandos da lei, implementando os deveres instrumentais previstos, com o preenchimento de formulários e documentos específicos para, desse modo, estruturar a norma individual e concreta que lhe corresponde expedir. Somente assim poderá pagar aquilo que acredita ser devido ao fisco, a título de tributo". Ora, a teoria carvalhiana reconhece, mais uma vez, que o contribuinte terá que seguir comandos da lei (norma geral e abstrata), e não – como seria conseqüente com as premissas da teoria – o comando de uma norma individual e concreta. Afinal, de onde proviria esse dever instrumental de produzir a norma individual e concreta que faz nascer o dever principal (tributário)? Se o dever tributário provém de uma norma individual, haveria a teoria carvalhiana de explicar qual o enunciado protocolar que incoaria o dever instrumental, ou então o porquê da sua inexistência. Seria o caso de explicar a natureza desse dever instrumental que, sendo jurídico, não necessitaria da veiculação de um enunciado protocolar e denotativo. Eis questões que a teoria carvalhiana não responde.


4. Sobre a norma individual e concreta produzida pelo contribuinte.

No início de nossa exposição, afirmamos que Kelsen e Guastini, quando sustentam que o intérprete cria a norma, estão se referindo, em última análise, ao intérprete autorizado ou competente: o juiz. Ele seria o destinatário das normas jurídicas. Dissemos também que Paulo de Barros Carvalho aparentemente entendia de modo diverso, sustentando ele por vezes bastas que todos seriam os seus destinatários. Não por outra razão, também os particulares emitiriam normas individuais e concretas, como incisivamente buscou realçar ao tratar do autolançamento [48]. Todavia, uma questão fundamental poderia passar desapercebida a um leitor menos atento, na aferição do compromisso da teoria carvalhiana com essa afirmação: a norma individual e concreta, expedida pelo sujeito passivo, seria suficiente para torná-la positiva? Para respondermos a essa pergunta, seria o caso de investigarmos como a teoria glosada compreende o conceito de norma individual e concreta. Essa investigação passa a ser fundamental para que possamos aferir a consistência interna da teoria carvalhiana, pelo menos quanto à premissa assumida da lingüisticidade escrita e documental do direito.

Como já mostramos anteriormente, é necessário ser feita uma distinção entre norma jurídica e ato de cumprimento. Essa distinção não aparece na teoria carvalhiana, porque para ela o direito é apenas e tão-somente normativo, preso ao plano do enunciado. Sendo o sistema jurídico constituído de normas, uma norma apenas poderia ser extinta mediante a emissão de outra norma jurídica. Assim, uma norma individual e concreta apenas poderia ser extinta mediante a emissão de uma outra norma, que a expungisse. Coloquemos essa afirmação sob uma análise crítica, surpreendendo assim sua procedência ou não. Imaginemos a hipótese de emissão de uma norma individual e concreta, editada pelo fisco, que prescrevesse para o sujeito passivo o dever de recolher um determinado valor aos cofres públicos. De acordo com o art.156, inciso I, do CTN, uma das formas possíveis de extinção dessa obrigação seria mediante o pagamento da prestação devida. Sendo ele um ato pelo qual se poria fim ao laço jurídico que vincula os sujeitos ativo e passivo, por força do próprio sentido do texto legal, há a necessidade imperativa de se perquirir se o pagamento seria uma norma individual e concreta, para que a premissa da teoria carvalhiana permanecesse intocada.

Imaginemos a seguinte cena: um contribuinte, após cumprir com os seus deveres instrumentais e estipular o montante do tributo devido, dirige-se ao banco, com um DARF, e paga a quantia fixada. O caixa do banco recebe o dinheiro e autentica a cópia do DARF pertencente ao contribuinte, fixando a data e a quantia paga, bem como a agência bancária que a recebeu. Realizou-se o pagamento. Nos concentremos agora naquela autenticação mecânica, da máquina registradora, gravada na cópia do DARF. Haveria aqui uma norma individual e concreta? O que ela prescreveria? Leiamos seu o texto: AUT:08072002ECF007C004111B7VL1.037,40.

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O ato de pagamento é a entrega em dinheiro; a autenticação bancária, a sua prova. Quando alguém paga, cumpre a norma jurídica, não prescrevendo nenhuma outra. O pagamento é ato real de cumprimento (Nawiasky), ato de execução, não possuindo natureza normativa. Di-lo José Souto Maior Borges [49]: "Praticando o lançamento, duas situações podem ser consideradas. A primeira é antecedente ao pagamento do tributo. A segunda é subseqüente a esse pagamento. Nesta segunda hipótese já não há mais como cogitar da simples existência (validade) da norma individual em que o lançamento consiste, mas no ato de pagamento que importa a execução concreta da prescrição que o lançamento estabelecer. Noutras palavras: o pagamento importa execução da norma individual posta pelo lançamento. É ato de execução do Direito. E, nos termos do art.156, I, e 157 e ss. do CTN, o pagamento é modo de extinção do crédito tributário".

Esse ponto é relevante: não sendo o pagamento uma norma individual e concreta, não poderia ele extinguir a relação tributária (fato-relação). Para a teoria carvalhiana, presa às suas premissas, o pagamento termina por ser tratado como um mero evento. Apenas quando esse evento fosse vertido em linguagem competente, surgindo um "documento de quitação" ou "recibo de pagamento", estaria extinta a obrigação pela emissão desta norma individual e concreta. Nas palavras do professor paulista [50]: "(...) o ‘recibo de pagamento’ contém os enunciados necessários e suficientes para construirmos uma norma individual e concreta, em cujo antecedente vem relatado o fato da existência da dívida e, no conseqüente, uma relação que, no cálculo das relações, anula o vínculo primitivo".

O pagamento, notemos bem, seria um mero evento. O que extinguiria a obrigação, por conseguinte, não seria ele, na forma do art.156, inciso I, do CTN, mas a norma jurídica que seria o documento de quitação. A prova do ato de pagamento, na teoria carvalhiana, se transforma em norma jurídica. Tudo isso para não ter que afirmar pura e simplesmente: dada a incidência da norma do inciso I do art.156, no plano do pensamento, o ato jurídico do pagamento extinguiu a obrigação tributária, mercê do seu cumprimento pelo sujeito passivo. Como entre o ato de pagamento e a extinção da obrigação não haveria expedição de norma individual, eis que surge o recibo de pagamento com essa função. Todavia, teríamos que admitir que quem emitiria essa norma individual e concreta veiculada pelo recibo seria a agência bancária, que não faz parte da relação jurídica tributária, nem tampouco é uma autoridade competente.

Precisamos, destarte, demarcar o conceito de norma individual e concreta, no contexto da teoria carvalhiana. Para tanto, pensemos em mais uma situação concreta: uma indústria vende seu produto, emite nota fiscal e escritura esse negócio. Esse ato de documentação produziria uma norma individual e concreta? Quando o contribuinte emitiu aquela nota fiscal, estaria ele editando uma norma jurídica? Essas perguntas são fundamentais nessa altura de nossas reflexões. A resposta que Paulo de Barros Carvalho é incisiva [51]: "(...) Ao realizar a venda de produtos industrializados, o contribuinte deve emitir nota fiscal, em que figuram as informações imprescindíveis à identificação do evento. Além disso, cabe-lhe escriturar esses elementos informativos no livro próprio, oferecer declarações e preencher documentos relativos ao acontecimento a que deu ensejo. Esse feixe de notícias indicativas, postas em linguagem jurídica competente, consubstanciará o alicerce comunicativo sobre o qual será produzida a norma individual. (...) Nada obstante, vale a pena advertir que a formação desse tecido lingüístico, por mais relevante que possa ser, circunscrevendo, com minúcias, as ocorrências tipificadas na lei tributária, ainda não é suficiente para estabelecer juridicamente o fato. Trata-se de relato em linguagem competente, não há dúvida, mas ainda não credenciada àquele fim específico. É indispensável a edição de norma individual e concreta, no antecedente da qual aparecerá a configuração do fato jurídico tributário".

Desse modo, a nota fiscal, as escriturações em livro próprio etc., enunciariam relatos em linguagem competente, mas não seriam eles produtores de normas jurídicas, não constituindo aqueles eventos narrados em fatos. Entrementes, noutra oportunidade, Paulo de Barros Carvalho contradiz às inteiras essas afirmações, concedendo tal força normativa à nota fiscal [52]: "De fato, pensemos no dever de manter os livros e documentos fiscais à disposição das autoridades tributárias. São tantos os modos diferentes de fazer cumprir esse dever instrumental que o legislador, certamente consultando à racionalidade que inspira sua tarefa, desloca a atenção para o campo da ilicitude, fazendo expedir, pelo funcionário competente, a norma individual e concreta que constitua a não-prestação do dever (antecedente) e prescreva a providência sancionatória (no conseqüente). Já a emissão de nota fiscal requer a observância de uma série de preceitos, não se admitindo sejam eles desconsiderados pelo administrado, que deverá explicitá-los na configuração documental do ato. Eis o legislador manifestando sua preferência pelo hemisfério da licitude, exigindo norma individual e concreta para que o dever se dê por cumprido".

Ou seja: aqui a nota fiscal é a norma individual e concreta que cumpre o dever; ali, em idêntica situação, é ela um mero feixe de notícias indicativas para futura emissão da norma individual. Flagra-se, desse modo, uma contradição insuperável no acervo de argumentação da teoria carvalhiana, denunciando de modo eloqüente a arbitrariedade dos pontos de partida da sua construção e, talvez até por isso mesmo, a impossibilidade de sustentá-los quando postos em confronto com questões de fronteira.

Um outro aspecto de difícil desate está no entendimento de Paulo de Barros Carvalho de que a obrigação tributária nasceria quando a norma individual e concreta ingressasse no sistema do direito positivo [53]. Passa a ser fundamental, então, fixar quando esse ingresso da norma individual no sistema ocorreria. Para o professor paulista a positivação do direito apenas ocorreria quando o fisco (a autoridade competente, notem bem) tomasse conhecimento da veiculação da norma pelo particular, o sujeito passivo da obrigação tributária [54]: "(...) De nada adiantaria o contribuinte expedir o suporte físico que contém tais enunciados prescritivos, sem que o órgão público, juridicamente credenciado, viesse a saber do expediente. O átimo dessa ciência marca o instante preciso em que a norma individual e concreta, produzida pelo sujeito passivo, ingressa no ordenamento do direito posto". Noutras palavras, para teoria carvalhiana a positivação do direito depende do conhecimento da autoridade competente, seja ela o juiz ou o administrador. O direito se reduz, de modo enfático e deliberadamente reducionista, àquele dos tribunais e da burocracia das repartições públicas. Por isso mesmo, mesmo no contexto desse sistema de referência, a nota fiscal não poderia nunca ser havida como emissora de uma norma individual, assim como o recibo de pagamento bancário também não: eles não chegam ao conhecimento do fisco, senão através de fiscalização posterior.

Imaginemos que essa fiscalização não ocorresse no prazo legal, não vindo o fisco a ter ciência real desse feixe de linguagem. Nessa hipótese, não tendo sido completado o iter comunicacional de positivação do direito, seria de se supor que estaríamos aqui no plano dos fatos sociais, mesmo o contribuinte tendo escriturado seus negócios e realizado o pagamento do tributo devido. Sem o conhecimento ou a cientificação do fisco, seria de se supor então que a teoria carvalhiana veria todos esses fatos como fatos sem linguagem competente, é dizer, sem revestimento jurídico. Porém, fugindo mais uma vez de suas premissas, entende ela que haveria uma homologação tácita [55]: "(...) Se o sujeito ativo não exercer suas competências administrativas, fiscalizando, concretamente, as atuosidades do devedor, durante o lapso de cinco anos, a contar da data dos eventos tributados, operar-se-á a homologação, vale dizer, toma-se por efetivada a fiscalização daqueles atos, extinguindo-se o liame obrigacional".

Essas afirmações, convenhamos, dão graves cuteladas na medula da teoria carvalhiana. É surpreendente a admissão de que possa haver ato de homologação por atividade omissiva do fisco, aceitando que a ausência de emissão de linguagem competente tenha efeitos jurídicos. Pior: nessa hipótese de inatividade da autoridade fiscal, nem o fisco toma conhecimento da expedição da norma concreta pelo sujeito passivo (ou seja, não há a positivação do direito), nem tampouco fiscaliza os documentos produzidos pelo contribuinte (ou seja, é omisso, não emitindo sua norma individual homologatória). Não há aqui, por parte do fisco, nem emissão nem recepção de norma. No entanto, toda a análise carvalhiana do fenômeno do autolançamento vem de lhe outorgar o timbre de juridicidade. O evento, aqui, se torna jurídico sem linguagem competente e sem conhecimento do fisco.

Mais uma vez, a própria obra de Paulo de Barros Carvalho nos fornece exemplos de fatos jurídicos sem emissão de linguagem competente, demonstrando que o direito não é só norma. Sem os fatos e os valores que lhe emprenham de sentido social, as normas são pura idealidade morta. Sem a mundanidade da vida, o simbolismo jurídico se transforma nesse intricado jogo de linguagem, numa construção teórica sem os pés no mundo. E sem o mundo, sem os fatos sociais, o dever-ser não se realiza no ser, o direito não cumpre a sua função de processo de adaptação social.

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Sobre o autor
Adriano Soares da Costa

Advogado. Presidente da IBDPub - Instituição Brasileira de Direito Público. Conferencista. Parecerista. Contato: [email protected]

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Adriano Soares. Obrigação e crédito tributário.: Crítica terceira ao realismo lingüístico de Paulo de Barros Carvalho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 59, 1 out. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3289. Acesso em: 25 abr. 2024.

Mais informações

Esse artigo é a terceira e última parte de uma série publicada no Jus Navigandi, bem como em outras revistas. As duas primeiras partes foram: "Incidência e aplicação da norma jurídica tributária: uma crítica ao realismo lingüístico de Paulo de Barros Carvalho" (Revista Tributária, São Paulo: RT, 2001, (9) 38: 19-35), e "Notas sobre o fato jurídico tributário: crítica segunda ao realismo lingüístico de Paulo de Barros Carvalho" (Revista Tributária, São Paulo: RT, 2001).

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