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A segurança ecológica como princípio de segurança coletiva

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01/10/2002 às 00:00
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Introdução

Não se pode precisar qual a data exata em que o Homem se deu conta da necessidade de preservação de seu meio ambiente: a Terra. Pode-se vislumbrar, contudo, nos esforços das Nações Unidas para a realização da Convenção de Estocolmo em 1972, o prelúdio e um dos mais importantes passos rumo à preservação do meio ambiente humano, já àquela época em franca degradação.

Desde então, multiplicaram-se os instrumentos internacionais que buscam a preservação do meio ambiente e abrangem tanto os seres vivos quanto os não-vivos, provocando, também, a redefinição de tradicionais conceitos de direito internacional, a exemplo da ampliação do conceito de meio ambiente marinho, o qual, favorecido pela Ciência, novos conhecimentos e tecnologias, deixou de se limitar somente ao mar e seus tradicionais elementos (solo, águas e fauna), para abranger também toda sorte de seres vivos, recursos minerais e territórios adjacentes que sobrevivem, jazem e sofrem influência direta do Mar.

Esta flexibilização de tradicionais conceitos se justifica na própria essência da questão ambiental, cujos princípios se contrapõe, apesar da dimensão internacional que se lhe empresta, ao princípio de absoluta soberania territorial dos Estados, delimitado, portanto, por fronteiras físicas ou ideais. A questão ambiental não encontra limites em leis internas nem internacionais, tampouco nos limites fronteiriços entre os Estados. Um exemplo bastante singelo desta proposição pode ser percebido nos idos de 1986, nas cercanias de Kiev na ex-URSS, onde um acidente na usina nuclear de Chernobyl lançava na atmosfera uma nuvem radioativa que se espalharia por toda a Europa oriental e parte da Europa ocidental, prejudicando a vida animal e humana para além das fronteiras do Estado Soviético.

Vale anotar, contudo, que o direito internacional do meio ambiente estende (ou pretende estender) seu escopo além dos fatos, atos e efeitos transfronteiriços. Incluem-se no escopo do direito internacional do meio ambiente, além do mote internacional, também a preservação do meio ambiente local, regional e nacional, cujos princípios, em primeira e descurada análise, parecem conflitar com o direito natural de desenvolvimento dos Estados.

O tratamento da questão ambiental sob os auspícios do princípio da segurança internacional coletiva adotado na Carta da ONU [1], confere à matéria, denominada segurança ecológica, status de direito internacional de reconhecimento universal, cuja existência e medidas de coercibilidade passam à competência do Conselho de Segurança da ONU (art. 39 da Carta). Resta, contudo, indagar em que medida a questão ecológica pode ser interpretada como questão de segurança internacional e em que medida o princípio da soberania absoluta dos Estados sobre seu território, recursos e pessoas pode contribuir para o estabelecimento do conceito de segurança ecológica.

Em notas introdutórias, pode-se dizer que a criação de um princípio de segurança ecológica traz consigo a idéia e a necessidade de estabelecimento de um regime legal que possa traduzir o conteúdo político do princípio para o modelo de segurança internacional previsto na Carta da ONU, adaptando-o, ainda, ao princípio da não-intervenção previsto no Tratado Interamericano de Assistência Recíproca.

Segundo Alexandre S. TIMOSHENKO (Ecological Security: response to global challenges....), segurança ecológica comporta três dimensões - política e econômica, militar (conflitos armados) e humana (direitos humanos), das quais se excluímos as vertentes política- econômica e a humanado âmbito da segurança ecológica.

Em breve síntese, a proposta deste estudo é identificar, no princípio da segurança internacional, elementos de direito internacional do meio ambiente capazes de conferir-lhe um status de direito internacional universal, oponível a todos os Estados, como autêntico princípio de segurança ecológica internacional. Para este fim, seguindo orientação e o propósito deste estudo dirigido à cadeira de Direito Internacional do Meio Ambiente da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo - curso de pós-graduação - procurar-se-á ao longo desta dissertação cotejar as notas lançadas no texto de referência de Alexandre S., com a contribuição que se pretende oferecer à discussão sobre o tão relevante tema.

Para realização da proposta deste estudo, dividir-se-á sua apresentação em dois Capítulos: o primeiro cuidará da apresentação da proposta oferecida pelo texto de referência, de Alexandre Timoshenko, a fim de que se identifiquem, pontualmente, todos os elementos de construção do conceito de segurança coletiva em termos de segurança ecológica; no capítulo seguinte, cuidar-se-á do estudo e das análises sobre as proposta de fundamentos e construção de um princípio de segurança ecológica preconizada no texto de referência, demonstrando suas falhas e limitando sua aplicabilidade, especialmente em matéria de direito humanitário, sem descuidar da conceituação do princípio de segurança intenacional, do princípio de não-intervenção, do direito ao desenvolvimento, ao meio ambiente seguro e, mais uma vez, dos direitos humanos.


Capítulo I: O texto de referência: a proposta de TIMOSHENKO para a construção de um princípio de segurança ecológica.

O texto que nos serve de inspiração para os estudos desenvolvidos neste artigo, de autoria de Alexandre TIMOSHENKO, preocupa-se com a conceituação de determinados princípio de direito do meio ambiente e com o estabelecimento de um regime legal que possa implementá-los e conduzi-los à formação de um princípio de segurança ecológica fundado em bases de direito humanitário.

As necessidades de implantação de um regime legal é lembrada nos exemplos de catástrofes ecológicas como a de Chernobyl, em 1986, que atingem não somente nações em desenvolvimento, mas também nações desenvolvidas, especialmente em razão dos efeitos transfronteiriços da poluição. Assim, o estabelecimento da um princípio de segurança ecológica, assinala o autor, deve partir da cooperação entre Estados em aspectos de interesse global ou regional (interesses comuns da humanidade, a exemplo da mudança do clima e camada de ozônio), para a preservação do meio ambiente para as gerações futuras.

Nesta perspectiva de cooperação, preconiza TIMOSHENKO, a adição de um modelo ecológico ao conceito de segurança internacional coletiva., através da revisão deste último conceito para abranger a proteção aos recursos naturais de interesse da humanidade e os direitos humanos inerentes à própria preservação e vida do homem. Neste sentido, TIMOSHENKO apresenta a segurança ecológica em três dimensões - política e econômica, militar (conflitos armados) e humana (direitos humanos). Na perspectiva política, anota que os danos ao meio ambiente provocam a instabilidade das relações políticas internacionais entre Estados, na militar, identifica a consequência belicosa da instabilidade política,; na humana, a possibilidade de os dados ambientais afetarem a própria existência humana no planeta. Como todas estas três dimensões são essencialmente políticas, TIMOSHENKO defende a idéia de criação de um regime legal que possa conduzir a discussão para a área jurídica, com o estabelecimento de órgãos de gerenciamento de mecanismos, condução e implementação de procedimentos multilaterais redefinidos a partir da identificação de prioridades globais e nacionais. No entanto a criação de um regime legal pressupõe a identificação das leis e princípios aplicáveis aos fatos que se pretende regular sob os auspícios de um princípio de segurança ecológica.

Para a construção de um conceito de segurança ecológica, o qual inicialmente apresenta como um princípio análogo à segurança internacional, TIMOSHENKO concentrou-se no estudo de princípios próprios de direito internacional do meio ambiente [2], procurando identificar algumas características comuns e convergentes, mas que necessariamente representem um direito universalmente reconhecido como matéria de segurança internacional coletiva. TIMOSHENKO encontrou no direito humanitário este liame, a partir do estudo de seis princípios de direito ambiental: a) princípio de ius cogens do direito ambiental, b) princípio de não agressão ecológica, c) princípio de controle e monitoramento das atividades dos Estados, d) princípio de intercâmbio de informações, e) princípio da precaução, f) princípio de desenvolvimento sustentável; dos quais extraiu um sétimo princípio de de direito humanitário.

Identificado como um princípio de ius cogens internacional, o princípio da soberania igualitária (todo estado tem direito ao bem estar ecológico) detém-se sobre a hipótese de um grupo de Estados prejudicar o meio ambiente em detrimento dos interesses legítimos de outros. Esta "legitimidade" a que se refere TIMOSHENKO pode ser encontrada na Declaração de Estocolmo de 1972 [3]. Assim, como um princípio fundamental de direito internacional, os recursos naturais globais são indivisíveis e, logo, pertencem a toda a humanidade, razão pela qual devem ser gerenciados pelos Estados com vias a benefício de toda a humanidade, ainda que determinado recurso natural esteja restrito às fronteiras de determinado Estado. Ao que nos parece, trata-se de uma interpretação ilegítima do princípio 1º da Declaração de Estocolmo, senão um retrocesso ao tempos de Francisco de Vitória e à catequese colonizadora de apropriação dos bens e riquezas dos povos pagãos das novas terras descobertas: as riquezas existem para serem exploradas em benefício de toda a humanidade; se um Estado não a explora, ou não o faz em benefício da humanidade, pode a comunidade internacional intervir para garantir a toda a humanidade seu direito fundamental às riquezas do planeta. Um retrocesso inaceitável. O direito do meio ambiente não pode e não deve servir de instrumento para a ressurreição da política do Concerto de Viena do final do século XIX.

O segundo princípio identificado é o do banimento da agressão ecológica, assimilado na Convenção sobre Proibição do Uso Militar e outros Usos Hostis de Técnicas de Modificação do Meio Ambiente [4], no qual se inclui uma modalidade de crime internacional reconhecido na doutrina como "ecocídio", tipo caracterizado pelo impacto deliberado sobre o meio ambiente, também reconhecido pela Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas em seu Modelo de artigos sobre responsabilidade dos Estados (artigo 19), no qual se atribui à poluição em massa da biosfera o caráter de crime internacional, mas na esfera dos indivíduos. Na esfera estatal, contudo, a agressão deliberada ao meio ambiente de outro Estado não está configurada entre as hipóteses de agressão da Resolução da Assembléia Geral 3.314 (XXIX), de 14 de dezembro de 1974.

O terceiro princípio é de controle e monitoramento de atividades dos Estados como garantia de cumprimento das normas internacionais, através de instrumentos legais criados para tal fim, a exemplo das agências especializadas da ONU que já desenvolvem trabalhos específicos na área, a exemplo da UNEP - United Nations Environment Programme (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente).

O quarto princípio é o do intercâmbio de informações sobre situações ecológicas regionais e nacionais, instrumento para se minimizar ou evitar efeitos transfronteiriços de danos ambientais através do conhecimento prévio acerca de fatos danosos e do imediato socorro a mecanismos de prevenção ou de opção da melhor forma de tratamento do dano ambiental.

O quinto princípio enunciado é o princípio da precaução, que possibilita a tomada de medidas precautórias em defesa do meio ambiente ainda que não se tenha prova científica sobre eventuais danos.

O princípio do desenvolvimento sustentável, segundo TIMOSHENKO, funda-se em premissa que muito se aproxima de um princípio de segurança ecológica: a prevenção de dano ao meio ambiente é economicamente mais vantajosa que as medidas para sua correção.

Em suma, o auto defende que um teoria de segurança ecológica não deve estar confinada somente aos Estados, mas deve se estender à participação dos indivíduo, através da preservação do meio ambiente humano, não do meio ambiente de forma geral, como um direito decorrente do direito à vida abrigado na Declaração dos Direitos Humanos [5], retomados em matéria de meio ambiente no Princípio I da declaração de Estocolmo de 1972 e na Declaração do Rio de 1992, como direito fundamental à liberdade, à igualdade e à condições adequadas de vida. TIMOSHENKO busca a construção de um princípio humanitário de preservação do meio ambiente, fundado na solidariedade, coletividade e direitos dos povos, apoiando-se na idéia de CANÇADO TRINDADE em transpor parte do direito do meio ambiente para o direito humanitário, a partir da interpretação do artigo 60 (5) da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados de 1969. O mencionado artigo trata da extinção ou suspensão da execução de um tratado em consequência de sua violação, excluindo a possibilidade de extinção de um tratado bilateral por violação substancial de disposições atinentes aos direitos humanos, identificando o surgimento de um princípio de direito humanitário favorável à preservação do meio ambiente, como a chave para a construção de um princípio de segurança ecológica.


Capítulo II:

1. A segurança internacional e princípio da não-intervenção.

Pesquisar o histórico do conceito de segurança internacional é deparar-se com um paradoxo: segurança internacional traduz-se, historicamente, como a negativa de um estado de ameaça, da paz, ruptura da paz ou ato de agressão; elementos coordenados pelo ideal de solução pacífica de controvérsias. Desde o Tratado de Versailhes, em 1919, que selou fim da Primeira Grande Guerra, segurança e paz internacionais eram dois elementos de uma singela fórmula fundada no desarmamento dos Estados a um mínimo possível para a manutenção da segurança nacional, o que se demonstrou insuficiente para impedir um segundo conflito armado de proporções mundiais [6].

Ao final da Segunda Grande Guerra, a experiência com as explosões nucleares de Hiroshima e Nagasaki imprimiram uma nova ordem para a política e estratégia dos Estados. Colocaram termo à Guerra, mas levaram o emergente Mundo bipolarizado a uma terceira e mais longa guerra de ameaças de destruição total recíproca: a guerra fria. Em 1945, a Carta das Nações Unidas incluía entre as finalidades da organização a prática d[a tolerância e viver em paz, uns com os outros, como bons vizinhos, e unir as nossas forças para manter a paz e a segurança internacionais, e garantir, pela aceitação de princípios e instituição dos métodos, quer a força armada não será usada a não ser no interesse comum"..... Reforçando este princípio, o artigo 1º inclui entre os propósitos das Nações Unidas a manutenção da paz e da segurança internacionais, competências delegadas pelos "Povos das Nações Unidas" para evitar ameaças à paz e reprimir atos de agressão através de meios pacíficos de solução de controvérsias, sanções econômicas e do uso da força nos termos previstos no próprio corpo da Carta (Conselho de Segurança artigos 23 a 32; Capítulo VII, art. 39 a 51) [7]. Resta indagar quais matérias são abrangidas nas expressões "paz" e "segurança" internacionais, já que na Europa, desde a época da Sociedade das Nações e mesmo no pós-II Guerra, multiplicaram-se os acordos de assistência mútua [8].

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A definição de "ato de agressão" vem sendo interpretada no direito internacional em revelador elastério. O Tratado Interamericano de Assistência Recíproca, de 1947, indica como formas de agressão a violação da inviolabilidade e integridade territorial de um Estado, direta ou indiretamente, ainda que não seja através de ataque armado, além de outras formas reconhecidas pelo Órgão Consultor (art. 9º) que possam por em perigo a paz e a segurança da América. Em resumo, no espírito da Guerra Fria, considera-se ato de agressão toda e qualquer forma de intervenção direta ou indireta de um Estado sobre a soberania inviolável de outro Estado. Tem-se, então, na indisfarçada amplitude na interpretação dos ‘atos de agressão" o lançamento do princípio da não intervenção como moderador dos princípios da paz e segurança internacionais [9]. No ano seguinte a este tratado, assinava-se a Carta da Organização dos Estados Americano, a qual retoma o princípio da não intervenção, de forma expressa, em seu artigo18 [10], como corolário da inviolabilidade do território estatal, seja qual for o motivo. Nos artigos seguintes da Carta da OEA, nomeadamente nos artigos 19, 20, 21 Capítulo VI e 33, rechaçam-se as medidas coercitivas diretas (armadas) ou indiretas (econômicas, políticas ou outras) para forçar a vontade soberana de outro Estado, declara-se que o uso da força somente se dará em conformidade com tratados vigentes e para consecução das metas da Organização traçadas no artigo 33, lançando-se um princípio de segurança regional, em conformidade com a Carta das Nações Unidas em seu Capítulo VIII.

No âmbito das Nações Unidas encontram-se algumas resoluções da Assembléia Geral sobre a paz e segurança internacionais, motivadas especialmente pela questão armamentista nuclear, norteadas algumas delas pelo princípio da não-intervenção. Sobre paz e segurança internacionais teve-se várias declarações sobre desarmamento nuclear, inclusive no espaço cósmico, durante a Guerra Fria (1945-1989) e sobre a eliminação destas armas após a derrocada da ex-URSS (o que provocou um descontrole sobre o arsenal e pessoal envolvido com a área nuclear dos países do bloco socialista), além de declarações exclusivamente principiológicas sobre paz e segurança internacionais, entre as quais se destacam, exemplificativa e cronologicamente: Declaração de Proibição de Uso de Armas Nucleares e Termonucleares (A/RES/1653 (XVI), de 24.11.61), Declaração baseada na Segurança Internacional (A/RES/2734 (XXV), de 16.12.70), Declaração sobre a Preparação das Sociedades para Viver em Paz (A/RES/33/73, de 15.12.78), Declaração de Prevenção de Catástrofe Nuclear (A/RES/36/100, de 09.12.81), Declaração sobre Prevenção e Solução de Disputas e Situações que possam Atingir a Paz e Segurança Internacionais e sobre funções das Nações Unidas neste Campo (A/RES/43/51, de 05.12.88), Declaração sobre o Incremento da Cooperação entre as Nações Unidas e Acordos Regionais e Agências sobre a Manutenção da Paz e Segurança Internacionais (A/RES/49/57, de 09.12.94). No campo da não intervenção, teve-se, por exemplo, a Declaração de Inadmissibilidade de Intervenção em Assuntos Internos dos Estados e de Proteção à sua Independência e Soberania (A/RES/2131 (XX), de 21.12.65) e a Declaração de Inadmissibilidade de Intervenção e Interferência em Assuntos Internos dos Estados (A/RES/36/103, de 09.12.81).

Destarte, como se asseverou, o princípio da não-intervenção funciona como um princípio regulador dos princípios da paz e segurança internacionais, que envolvem a intervenção direta ou indireta das Nações Unidas e dos Acordos Regionais sobre questões essencialmente internas dos Estados, conceito que seria modificado por precedentes que tocam ao ao direito ao desenvolvimento, ao direito do meio ambiente e aos direitos humanos. Aos conceitos de paz e segurança internacionais e ao de não-intervenção se adicionariam novos elementos, cuja análise e interpretação deve se dar de forma restritiva e casuística, não principiológica, portanto.

2. O direito ao desenvolvimento, direitos humanos em face dos princípios da seguranca e não-intervenção internacionais.

Ao fim da II Guerra a comunidade internacional reunida em Bretton Woods decidiu criar uma infra-estrutura internacional para efetivar a cooperação que se estabelecia no período pós-guerra, criando o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD), até que em 1964, foi criado um forum internacional independente para discussão e centralização de assuntos relacionados ao comércio e desenvolvimento no seio das Nações Unidas, a UNCTAD [11]. Em 1966, ocorreu a assinatura do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais [12], o qual consagrava em seu artigo 1º a liberdade dos povos em dispor livremente de suas riquezas e de seus recursos naturais, sem prejuízo das obrigações decorrentes da cooperação econômica internacional, a qual se reconhecia baseada no princípio de proveito mútuo e do Direito Internacional. Em 1974, a Assembléia Geral das Nações Unidas declarava o estabelecimento de uma nova ordem econômica internacional [13], representando a continuação de um processo de descolonização na esfera econômica e de negativa à dominação e ao neo-colonialismo nas relações econômicas internacionais.

Doze anos após, em dezembro de 1986, a Assembléia Geral das Nações Unidas baixava uma resolução sobre o Direito de Desenvolvimento (A/RES/41/128, de 04.12.86), que se reconhecia a completa soberania dos Estados sobre seus recursos naturais como consequência do direito de autodeterminação dos povos, e que a paz e segurança internacionais eram elementos essenciais para a realização do direito de desenvolvimento, enfim, que toda a humanidade tem responsabilidade pelo desenvolvimento individual e coletivo baseado no respeito aos direitos humanos [14].

No que se refere ao liame entre o direito ao desenvolvimento e o direito do meio ambiente, em 1987 publicava-se o Relatório Brundtland, resultado dos trabalhos e estudos da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento ("World Comission on Environmental and Development"), criada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 1983, uma organização vinculada a governos e ao sistema da ONU, mas não sujeita ao seu controle. Neste relatório, oficialmente denominado "Nosso Futuro Comum", preocuparam-se os pesquisadores com a revisão de antigas preocupações da comunidade internacional acerca da poluição do meio ambiente, com especial referência à Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano, realizada em Estocolmo, em 1972, ao fim da qual foi apresentada uma Declaração de 27 princípios (Declaração de Estocolmo), com destaque ao Princípio 21, específico à proteção do meio ambiente, transcrito, referido e recordado em diversas convenções sobre proteção do meio ambiente, entre as quais se inclui a Declaração do Rio de 1992, que o retoma no enunciado de seu Princípio 02 [15].

Com a proposta de um "desenvolvimento sustentável", o relatório, propões uma modificação na políticas interna e internacionais dos Estados a fim de que se criem vínculos entre as economias nacionais, já que os problemas ecológicos, tais como o desmatamento, inundações e a todas as formas de poluição provocam movimentos de imigração de povos de um Estado a outro, levando consigo os problemas locais e a deterioração de outros sistemas ecológicos. Ainda segundo o Relatório, no limite da crise econômica, a crise ambiental torna-se uma questão de segurança nacional. Segundo o relatório, o progresso humano deve atender às necessidades humanas e realizar as ambições do Homem de modo sustentável. O conceito de desenvolvimento sustentável defendido no Relatório e repetido anos mais tarde no princípio 27 da Declaração do Rio 1992 [16], significa a garantia ao homem sobre a capacidade de atendimento de suas necessidades e, principalmente, a garantia de que as gerações futuras atenderão também às suas, um conceito que encontra limites na tecnologia e na organização social, bem como na capacidade da própria biosfera em absorver os efeitos da atividade humana.

Mais recentemente, em 20 de junho de 1997, a Assembléia Geral adotou a Agenda para o Desenvolvimento através da Resolução 51/240. De todos estes instrumentos, conclui-se que segurança e paz internacionais alinham-se ao direito de desenvolvimento e aos direitos humanos.

A indagação que nos assalta quando incluímos o direito ao desenvolvimento e os direitos humanos sob a égide do princípio de segurança internacional detém-se sobre a possibilidade de intervenção de um Estado sobre outro sob o fundamento de preservação da segurança internacional, ou até mesmo regional. Há precedentes na própria Nações Unidas sobre intervenção humanitária na Bosnia e Herzegovina em 1991 [17] e na Somália em 1992 [18].

No que se refere aos direitos humanos, o relatório Brundland menciona expressamente a pobreza como uma das principais causas e um dos principais efeitos dos problemas ambientais do mundo, inserindo numa questão dos vetores - desenvolvimento e direitos humanos - um terceiro vetor, que virá a compor o princípio da segurança ecológica.

O direito internacional do meio ambiente cuida de fenômenos cujos efeitos se produzem para além das fronteiras do Estado gerador, atingindo pessoas, bens e direitos situados em territórios adjacentes ou descontíguos. Os efeitos transfronteiriços da poluição, como são conhecidos, dão a exata medida da internacionalidade do direito ambiental entre Estados.

A identificação do elemento ambiental na aplicação do princípio da segurança internacional parece-nos mais clara nos instrumentos que protegem bens que expressamente compõe o patrimônio comum da humanidade, a exemplo do Mar e da proteção ambiental a ele dispensada, especialmente na Convenção das Nações Unidas sobre Direito do Mar, assinada em Motego Bay em 1982, em cujo preâmbulo encontra-se expressa referência à Resolução da Assembléia Geral da ONU nº 2.749 (XXV), de 17 de dezembro de 1970, a qual declarou solenemente, inter alia, que os fundos marinhos e oceânicos e o seu subsolo para além dos limites da jurisdição nacional, bem como os respectivos recursos são patrimônio comum da humanidade e o aproveitamento dos mesmos fundos serão feitos em benefício da humanidade em geral, independentemente da situação geográfica dos Estados, reservando esta mesma Convenção a Parte XII à "Proteção e Preservação do Meio Ambiente Marinho" [19]. Também como exemplos de patrimônio comum da humanidade tem-se o espaço cósmico, cuja regulamentação de uso foi garantido à toda a humanidade [20].

Feitas estas considerações, propõe-se as seguinte questões: como equacionar desenvolvimento, meio ambiente e direitos humanos sem ferir o princípio da não-intervenção, regulador da aplicação do princípio da segurança internacional? Sem permitir que se traduzam precedentes casuísticos de intervenção por razões humanitárias em instrumento de política neocolonialista? A solução destas e de tantas outras indagações está na revisitação dos elementos formadores destes princípios.

A segurança internacional não é mais considerada como simples instrumento de manutenção e recondução à paz, tampouco limita-se à situações de agressão. Podem ser objeto de medida de segurança internacional por parte das Nações Unidas e dos Acordos Regionais, nos termos da Carta, analisados caso a caso, qualquer ato ou fato internacional que atinja o estado de paz, seja regional, seja globalmente, mas desde que não se firam garantias universais dos Estados, tais como a soberania e o direito à autodeterminação do povos, vinculados diretamente ao princípio da não-intervenção, o que implica em decisões não uniformes, casuísticas e, portanto, dependentes da natureza do direito violado.

A questão Amazônica, por exemplo, que já foi objeto de cogitação para uma "internacionalização" ou patrimonialização em benefício da humanidade. Pode o direito ao desenvolvimento do povo amazônico ser violado? Podem ser as soberanias dos Estados amazônicos serem desconsideradas em benefício da "humanidade"? Que interesses legítimos confortam estas pretensões? Todas as respostas a estas questões são negativas. A Amazônia, com suas dimensões continentais, importância econômica e ecológica (como reserva biológica) incalculáveis, não é patrimônio comum da humanidade, já que soberanamente localizado em territórios bem definidos de sete Estados sul-americanos (Brasil, Bolívia, Colômbia, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela), aplicando-se-lhe, portanto, o princípio da não intervenção, o princípio da absoluta soberania dos Estados dentro de seu próprio território, consagrado no art. 2º da Carta das Nações Unidas e próprio corpo do Tratado de Cooperação Amazônica [21]. A menção a este exemplo faz pensar sobre a alternativas que desavisadamente se constróem em marcha de flanco para superar os entraves da questão amazônica: poderá a segurança ecológica sobrepujar todos estes princípios?

3. Construção de um conceito de segurança ecológica a partir do conceito de segurança internacional. A questão dos conflitos armados, da paz, da agressão e dos direitos humanos.

O primeiro entrave a ser vencido para a construção de um princípio de segurança ecológica é a identificação de elementos que justifiquem sua inserção como um princípio de segurança internacional coletiva, elemento este, segundo TIMOSHENKO, de direito humanitário. No entanto, limitando a extensão dos direitos humanos sobre o direito do meio ambiente, pode-se identificar em outros modelos mais claros e reconhecidamente universais a possibilidade de intervenção ecológica, nos termos da Carta das Nações Unidas, em situações de conflitos armados e agressão, ou seja, de estado de guerra.

A guerra, nas diferentes acepções colecionadas por ROSSEAU, pode ser concebida como o atributo extremo da soberania de um Estado, definida pela qualidade e vontade dos agentes, caracterizada pelo uso da violência e de recursos armados no tempo e no espaço, uma situação de anormalidade, um fato internacional [22], que provoca graves modificações no panorama político e físico dos Estados envolvidos, além de provocar uma série de efeitos extraterritoriais em outros Estados, desde efeitos econômicos provocados pela ruptura do comércio, trânsito de bens, pessoas e mercadorias [23].

As pessoas, espoliadas de seus bens, de seus familiares ou simplesmente fugidas dos horrores da guerra, recebem da comunidade internacional o nome técnico de "refugiados", perdem suas identidades como cidadãos e seres humanos e são tratados como um problema de urgente solução. Entre os Estados beligerantes ou não, as fronteiras tornam-se um marco a ser transposto em busca da segurança. Surge nas regiões periféricas dos Estados os campos de refugiados, as doenças e a incapacidade física e sanitária de suportar tamanho incremento de pessoas, um problema que transportou da guerra para um Estado vizinho não-beligerante como uma grave questão de meio ambiente.

Veja-se o recente exemplo de Kosovo. A guerra entre a maioria étnica sérvia e a minoria albanesa naquela região da antiga Iugoslávia provocou em direção aos Estados vizinho, não-beligerantes, notadamente a Macedônia e Albânia, uma fuga de refugiados que se avolumam em campos desprovidos de infra-estrutura mínima de saneamento, fazendo surgir uma série de doenças e uma inevitável degradação do meio ambiente local, a qual deveria se limitar, num paradoxo, somente aos campos de batalha.

Identifica-se, assim, numa questão de direitos humanos, de preservação da identidade étnica e religiosa de uma minoria, claros e nítidos efeitos transfronteiriços sobre o meio ambiente de territórios vizinhos aos dos Estados beligerantes, causado pelas transferências internacionais de população [24].

Sob a perspectiva das transferências internacionais de população, pode-se considerar uma série de implicações sobre os efeitos transfronteiriços que afetam o meio ambiente adjacente ao palco de conflitos, já que tais transferências implicam em ponderações sobre o espaço territorial, tempo, bens e a própria população, transformado-as de uma questão de política internacional em questão ambiental, quiçá de segurança ecológica internacional.

Veja-se outro exemplo histórico dos efeitos extraterritoriais das transferências de população sobre o meio ambiente. Ao final da II Guerra, tiveram lugar as secretas Conferências de Potsdam, em 2 de agosto de 1945, nas quais se deliberou sobre a expulsão dos alemães dos territórios da Tcheco-eslováquia, Polônia e Hungria, num processo de redefinição de fronteiras fundado essencialmente no princípio da nacionalidade, uma herança européia do século XIX. O mote das transferências era a formação de Estados homogêneos em termos de cultura, etnia e religião, experiências de fracassos históricos a exemplo da região dos Balcãs, a qual é reconhecida como tradicional e milenarmente como palco de conflitos desta natureza, na qual a opressão à minorias serviu de pretexto para intervenções e conflitos brutais na ordem interna dos Estados, cujos efeitos, apesar da interação entre as economias dos Estados europeus, especialmente dos Estados vizinhos - Macedônia e Albânia, não se limitaram somente ao campo econômico, mas estenderam-se ao ecológico, atingindo diretamente até aos nacionais que sequer habitavam as áreas em conflito.

Desta recente experiência em Kosovo, do histórico das Nações Unidas, dos Estados em acordos de assistência recíproca, enfim, da breve análise dos fatos históricos que se ocupou de apresentar, ainda que de forma sucinta, pode-se identificar quatro grandes objetivos do direito internacional moderno:a proteção aos direitos humanos, a preservação da paz evitando a guerra, a busca de solução pacífica de litígios internacionais e a preservação do meio ambiente, elementos dos quais se lança mão para construção de um princípio de segurança ecológica.

4. O princípio de segurança ecológica.

Como se disse a Guerra Fria travada no mundo bipolarizado entre 1945 e 1989, a ameaça de uma guerra total nuclear, a corrida armamentista e sua poderosa indústria bélica, as crises do petróleo de 1973 e 1979, o desenvolvimento da indústria e o incremento do comércio, as guerras da Coréia, do Vietnã, enfim, uma série de acontecimentos históricos num mundo que se percebia degradar a cada dia, fizeram despertar na comunidade internacional o interesse pela preservação do meio ambiente humano e de seus recuros vivos e não-vivos. A tônica desta época era a segurança militar, expressão máxima do princípio de segurança internacional: o que pode provocar a destruição da humanidade é matéria de segurança internacional: armas nucleares.

No início dos trabalhos com material nuclear, os testes sobre os efeitos da radioatividade sobre os seres humanos eram realizados diretamente com soldados americanos em alto-mar, quanto ao meio ambiente, conhecia-se que a radioatividade poderia permanecer no meio ambiente por décadas, optando-se por testes em subsolo, tanto por parte dos Estados Unidos, no deserto de Nevada, pela URSS, na Sibéria, pela frança no atol de Mururoa, num primeiro teste em 1974. Não se ponderava, enfim, sobre os efeitos da poluição nuclear sobre o meio ambiente.

Estranho à matéria nuclear, as atividades industriais e citadinas insistiam em lançar materiais poluentes em cursos d’água e terras, os quais, levados ao mar, causavam sérios danos ao meio ambiente, prejudicando a atividade pesqueira e a saúde pública. Infelizmente este panorama permanece o mesmo, apesar de sensivelmente mitigado pela intervenção interna dos Estados através da implementação de uma política de desenvolvimento "mais limpa", em consonância com uma série de compromissos internacionais atinentes à área de meio ambiente, entre os quais se destacam a Conferência de Estocolmo de 1972, a Carta da Natureza de 1982, a Convenção das Nações Unidas sobre Direito do Mar de 1982, a Convenção de Viena de 1985 para Proteção da Camada de Ozônio, o Protocolo de Montreal de 1987 sobre Substâncias de Destroem a Camada de Ozônio, a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Convenção das Nações Unidas sobre Biodiversidade (1992), a Convenção Quadro sobre Mudança no Clima (1992), a Declaração do Rio (1992), com especial atenção para a Convenção de Helsinque sobre Segurança e Cooperação naeuropa, de 1975, na qual se faz expressa referência à preservação do meio ambiente como elemento chave na agenda de segurança européia [25].

Para a construção de um conceito de segurança ecológica, além dos instrumentos de direito internacional sucintamente referidos, a remodelação do princípio de segurança internacional para a segurança ecológica deve passar pela identificação de princípios próprios de direito do meio ambiente que possam emprestar ao primeiro um sentido particularmente revelador de suas características únicas. Portanto, não se trata, como fez TIMOSHENKO, de identificar características comuns e reconhecidamente universais entre estes princípios, características que apontam para o direito humanitário e seus mencionados precedentes intervencionistas nos assuntos internos dos Estados (Somália e Bósnia-Herzegovina). Veja-se o exemplo amazônico!

Intervenção internacional sobre os assuntos internos dos Estados é tema de uma série de resoluções da Assembléia Geral das Nações Unidas: Resolução 2734 (XXV), de16.12.70 (Declaration on the Strengthening of International Security), a Resolução 2131 (XX), de 21.12.65 (Declaration on the Inadmissibility of Intervention in he Domestic Affairs of States and the Protection of Their Independence and Sovereignty), Resolução 2625 (XXV), de 24.10.70 (Declaration of Principles of International Law concerning Friendly Relations and Co-operation among States in accordance with the Charter of the United Nations), a Resolução 3314 (XXIX), de 14.12.74 (Definition of Aggression), e ainda as resoluções 31/91 (de 14.12.76), 32/153 (de 19.12.77), 33/74 (15.12.78), 34/101 (14.12.79) e 35/159 (12.12.80) sobre não inteferência em assuntos internos dos Estados.

A Resolução da Assembléia Geral 36/103, de 09.12.81, aprovando a Declaração sobre a Inadmissibilidade de Intervenção ou Interferência nos Assuntos Internos dos Estados (Declaration on the Inadmissibility of Intervention and Interference in the Internal Affairs of States), reafirma o direito dos povos e sua soberania permanente sobre seus recursos naturais, reconhecendo o dever de integral observância ao princípio de não-intervenção e não interferência, direta ou indireta, em assuntos de política e relações internas e externas dos Estados, como modelo de preservação dos princípios universalmente reconhecidos na Carta das Nações Unidas. Em outras palavras, não-intervenção e não interferência são princípios de controle e manutenção da própria paz e segurança internacionais. Mas e se o mote ecológico servir de instrumento de agressão de um Estado em relação ao outro? Poderia a comunidade internacional, através do Conselho de Segurança das Nações Unidas, intervir no Estado agressor para fazer cessar a causa de agressão ecológica? Que modelo de intervenção se faria: sanções militares, econômicas e que outras? Na ineficácia de medidas de sanção, a patrimonialização do bem ecológico em benefício da humanidade seria lícita, assim como se teve com o mar, a Antártica, o espaço cósmico e corpos celestes e a atmosfera?

Para se traçar um conceito de segurança ecológica, respondendo àquelas e tantas outras indagações, deve-se considerar, diferentemente de TIMOSHENKO, a questão fora do âmbito dos direitos humanos, mas analisada sob princípios que tocam de forma menos subjetiva e mais política e objetiva o cerne da questão: a aplicabilidade do princípio da soberania absoluta dos Estados sobre sua política interna e externa, recursos e pessoas dentro de seu próprio território.

Em nossa opinião, soberania, num contexto internacional, não é propriamente um "poder" do Estado, embora o conceito, historicamente, carregue implícita esta noção [26]. Soberania é o resultado de um conjunto de poderes internos, harmonizados, sobre os quais se estabelecem os fundamentos e se realizam os objetivos do Estado dentro e fora de seu território, com a ressalva de que, neste segundo momento, em consonância com as regras e princípios de direito internacional. A palavra "poder" atrelada à "soberania" traz a noção de sujeição ao mesmo tempo que estabelece um contraponto de não-sujeição. No contexto moderno, Estados se sujeitam a ordenamentos convencionais através de tratados internacionais, de atos unilaterais de vontade, num sistema de harmonização de poderes, consubstanciados e fundados em suas soberanias. A variação do grau de intensidade dos poderes transacionados ou delegados, portanto, não afeta a soberania, mantendo intocadas sua indivisibilidade, unicidade, inalienabilidade e imprescritibilidade.

Em resumo, soberania não se delimita somente por seu aspecto interno, tal como preconizado por dois de nossos mais ilustres constitucionalistas e pela tradicional Teoria Geral do Estado. Soberania, numa concepção internacionalista e moderna, assenta-se sobre três aspectos: o externo, o interno e o territorial [27].

O aspecto externo da soberania é o direito do Estado de livremente determinar suas relações com outros Estados e outras entidades internacionais, independentemente de controle ou restrições de outros Estados. Este aspecto da soberania é também conhecido como independência. É sobre este é o aspecto que o ordenamento internacional dirige suas regras de modo primário. Assim, conclui-se que soberania externa, por certo, pressupõe soberania interna.

O aspecto interno da soberania garante ao Estado o direito ou a competência para determinar o estabelecimento de instituições internas e de leis para sua regulação. É o próprio poder legislativo, administrativo e jurisdicional exercidos na esfera interior do Estado.

Finalmente, o aspecto territorial da soberania funda-se na completa e exclusiva autoridade de um Estado sobre pessoas e coisas que estiverem em seu território. O respeito à soberania territorial é um dos mais importantes princípios de direito internacional (Carta da ONU, art. 2º). Dentro de seu território o Estado é absolutamente soberano.

O exercício da soberania de um Estado não é só objeto de direito interno, mas também de direito internacional.

Modernamente, resoluções e regras secundárias de organismos internacionais, declarações unilaterais e tantas outras formas de desenvolvimento e entabulação de regras internacionais, ao lado dos tratados, costumes e princípios de direito internacional, tem se tornado fontes de direito internacional. Um sem número de sujeitos de direito internacional surge todos os dias, ao passo que espoucam, em mesma velocidade, novos organismos multinacionais e supranacionais. O direito internacional clássico não abriga respostas a questões que ultrapassem alguns tópicos tradicionais como a paz, a guerra e as relações diplomáticas [28]. O moderno direito internacional pretende estabelecer um contraste que revele a solução de questões econômicas, sociais, culturais, técnicas, visando regular problemas de desenvolvimento, respeito a direitos humanos, comunicação, meio ambiente, educação, trabalho, ciência e tecnologia, alimentação, saúde recursos naturais e energia. Em suma, nada mais que a realização do escopo de todo processo de integração econômica, a exemplo da União Européia, em torno de elementos que, historica e essencialmente, sempre estiveram sob a égide da soberania interna do Estado.

Este sistema internacional de harmonização de soberanias, tendente à integração econômica e política dos Estados, talvez seja, paradoxalmente, um modelo de proteção e sobrevivência do próprio Estado e de preservação de sua soberania. Esta perspectiva soberania, como diziam LASKIS, KATEMBACH e KAPLAN, é fundamento político do Estado [29]. Foi assim, como um fundamento político, que surgiu o conceito de soberania, absoluto e perpétuo, apresentado por BODIN em seu livro "Les Six Livres de la République" (1576), para justificar o poder político dos príncipes franceses em face do poderio econômico representado, genericamente, nas figuras do Papa e dos Imperadores. O Estado soberano nasceu para reivindicar o poder político e econômico, reduzindo a Igreja e os Imperadores à posição de submissão. Nasciam os Estados Nacionais juntamente com o conceito de soberania justificador da própria usurpação do poder político de autodeterminação e do controle sobre o poder econômico.

Traduzindo estas notas sobre soberania, recordando as resoluções da Assembléia Geral das Nações Unidas sobre não-intervenção e soberania dos Estados e, especialmente, as disposições da Carta das Nações Unidas sobre a manutenção da paz e segurança internacionais, podemos ensaiar uma definição conceitual sobre segurança ecológica, respondendo àquelas propostas indagações sobre agressão ecológica entre Estados.

Em primeiro lugar, segurança ecológica, como um princípio de segurança coletiva, deve ter sua aplicação adstrita, em primeiro plano, ao âmbito do direito dos conflitos armados e às suas consequências ecológicas, excluídos, portanto, duas das três dimensões do princípio defendidas no texto de referência (TIMOSHENKO), exatamente pelo fato de que danos ambientais culposos são matéria de solução técnica e jurídica que dispensam intervencionismo internacional, já que, na essência, são matérias que não se identificam com segurança coletiva ou intervenção (solução forçada de controvérsia), mas, sim, com disposições convencionais que comportam soluções negociadas (pacíficas) de controvérsias baseada nas responsabilidade expressamente assumidas dos Estados nos tratados de que são parte.

No tocante à vertente humanitária do direito ambiental, qualquer sugestão de intervenção (a "exceção das exceções" ao princípio da soberania) deve ser lida com muita reserva e interpretada casuísticamente, de sorte que não se pode considerá-la como um princípio.

Deste modo, restrita a matéria de segurança ecológica, como um princípio, aos conflitos armados, seria correto admitir a intervenção das Nações Unidas em caso de agressão de um estado a outro através de afetação ao meio ambiente, embora, como se disse, o conceito de agressão ainda não comporte juízo de natureza ambiental. Nos termos da carta das Nações Unidas esta intervenção pode se dar de forma armada, econômica ou por qualquer outro meio que garanta a efetividade da decisão do Conselho de Segurança sobre a eventual agressão ecológica. Iniciativas de patrimonialização do bem ecológico em benefício da humanidade, como sanção, seria ilícita, pois, como se demonstrou à saciedade, confronta com diversos outros princípios de direito internacional, tais como a não-intervenção e soberania absoluta dos Estados sobre seus territórios, recursos e pessoas.

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Sobre o autor
Rodrigo Fernandes More

advogado, professor em São Paulo,mestre e doutor em direito internacional pela USP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MORE, Rodrigo Fernandes. A segurança ecológica como princípio de segurança coletiva. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 59, 1 out. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3308. Acesso em: 22 nov. 2024.

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