Pretende-se com esse breve estudo analisar, sob as óticas normativa, doutrinária e jurisprudencial, a possibilidade de a decretação da nulidade ser ensejada por aquele que lhe deu causa.
Como regra geral, estabelece o Código de Processo Civil, em seu art. 243, que a decretação da nulidade não pode ser requerida por aquele que lhe deu causa. Trata-se, portanto, de manifestação dos princípios da boa-fé objetiva e da lealdade processual.
Contudo, existem situações em que a gravidade da nulidade processual recomenda o afastamento de tal regra. Assim, não há como estabelecer uma consequência única, devendo o juiz agir casuisticamente, aplicando a técnica da ponderação de interesses como instrumento de concretização do princípio da proporcionalidade.
Tal princípio tem como objetivo equacionar a colisão entre direitos, devendo ser utilizado na ponderação dos valores que prevalecerão no caso concreto. Ressalte-se, todavia, que, do ponto de vista jurídico, em se tratando de normas constitucionais, não há hierarquia, ou seja, todas as normas constitucionais têm igual importância. Entretanto, no plano fático, a incidência delas sobre uma dada situação pode gerar uma colisão real entre os direitos fundamentais.
É exatamente isso que ocorre quando aquele que deu causa a um vício processual requer a decretação da nulidade. Nesses casos, o interesse público existente na extirpação do vício e de efeitos, mesmo que o suscitante lhe tenha dado causa, pode preponderar sobre o princípio da boa-fé objetiva, manifestado no brocardo nemo potest venire contra factum proprium.
Em matéria de competência absoluta, por exemplo, os tribunais vêm decretando a nulidade de todos os atos processuais praticados, mesmo que o próprio suscitante tenha dado causa ao vício. Confira-se:
RECURSOS ESPECIAIS. PROCESSO CIVIL E ADMINISTRATIVO. PAGAMENTO DA COMPLEMENTAÇÃO DE APOSENTADORIA E PENSÃO A APOSENTADOS E PENSIONISTAS DA CESP, DEVIDA POR FORÇA DE PREVISÃO LEGAL. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM ESTADUAL. PRECEDENTES. DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL NOTÓRIA. 1. Não cabe a esta Corte, em sede de recurso especial, o exame de matéria constitucional, cuja competência é reservada ao Supremo Tribunal Federal, nos termos do artigo 102, inciso III, da Carta Magna. 2. O artigo 243 da Lei Processual Civil não tem aplicação quanto às nulidades absolutas, como a competência em razão da matéria. [...] (STJ - REsp: 961407 SP 2007/0135193-0, Relator Ministro Paulo Gallotti. Relatora para o acórdão Ministra Maria Thereza de Assis Moura. Data de julgamento 19/08/2008, Sexta turma, Data de Publicação: DJe 06/10/2008, grifou-se).
Nesse mesmo sentido: REsp 961407/SP, Rel. Ministro PAULO GALLOTTI, Rel. p/ Acórdão Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 19/08/2008, DJe 06/10/2008 e EDAC: 11671 GO 0011671-20.2011.4.01.9199, Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL NÉVITON GUEDES, Data de Julgamento: 05/02/2013, TRF 1 PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: e-DJF1 p.538 de 10/05/2013.
Ou seja, em se tratando de competência absoluta, entendem os tribunais que o princípio constitucional do juiz natural deve prevalecer sobre o princípio da boa-fé objetiva. Assim, ainda que o suscitante tenha dado causa a nulidade – ou seja, proposto a ação em juízo absolutamente incompetente –, esta será decretada, inclusive com a irradiação de todos os seus efeitos.
Entretanto, há diversas outras nulidades, inclusive absolutas, que, se suscitadas por aquele que lhe deu causa, não podem ser decretadas. Nesses casos, portanto, aplica-se a regra geral, prevista no art. 243 do Código de Processo Civil. Confiram-se, a propósito, os seguintes precedentes:
PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. AUSÊNCIA DE PROCURAÇÃO DO ADVOGADO SUBSCRITOR DO RECURSO. SÚMULA N. 115/STJ. REGULARIZAÇÃO PROCESSUAL. ART. 13 DO CPC. INAPLICABILIDADE NA INSTÂNCIA ESPECIAL. ARGUIÇÃO DE NULIDADE. IMPOSSIBILIDADE.
1. Considera-se inexistente recurso subscrito por advogado que não possui procuração nos autos (Súmula n. 115/STJ e art. 544, § 4º, I, do CPC).
2. Na instância especial, não se aplica, para fins de regularização da representação processual, o disposto no art. 13 do Código de Processo Civil.
3. Não são nulos os atos posteriores à apresentação da apelação porque não é possível a arguição de nulidade do processo por quem que lhe deu causa (art. 243 do CPC).
4. Agravo regimental desprovido. (AgRg no AREsp 344.739/SP, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, TERCEIRA TURMA, julgado em 20/08/2013, DJe 29/08/2013, grifou-se)
PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO ANULATÓRIA. USUCAPIÃO. NULIDADE DA CITAÇÃO. LEGITIMIDADE DO ESPÓLIO DO PROPRIETÁRIO DO BEM USUCAPIENDO. MORTE DE UM DOS RÉUS. SUSPENSÃO. NULIDADE NÃO-DECRETADA. LIMITES SUBJETIVOS DA COISA JULGADA. AUSÊNCIA DE OFENSA AO ART. 471 DO CPC.
(...) 2. No que concerne à anulação dos atos processuais praticados depois da morte de um dos réus, é bem verdade que esta Corte possui consolidada jurisprudência acerca do tema, no sentido de que o processo se suspende imediatamente, mesmo que a comunicação ao juízo ocorra em momento posterior (EREsp. 270.191/SP, Rel. Ministro FRANCISCO PEÇANHA MARTINS, CORTE ESPECIAL, julgado em 04/08/2004, DJ 20/09/2004). Porém, no caso em exame, "durante todo o iter processual a esposa do falecido atuou na defesa dos interesses e direitos referentes ao imóvel, não fornecendo a informação do óbito do réu(...)". Somente em sede de apelação a morte do requerido foi noticiada, já no ano de 2002 e depois de praticados vários atos processuais pela viúva em benefício do casal. Assim, as premissas fáticas firmadas pelo acórdão dão conta de que foi a própria viúva que deu causa à alegada nulidade, circunstância que impede a decretação por força do que dispõe o art. 243 do CPC. (...) (REsp 725.456/PR, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 05/10/2010, DJe 14/10/2010)
Assim, em alguns casos – competência absoluta, por exemplo –, por haver ferimento a princípios intangíveis, previstos, inclusive, em cláusulas constitucionais pétreas, os tribunais vêm decretando a nulidade independentemente de quem lhe tenha dado causa e de quem tenha requerido a decretação. Aqui, por se tratar não só do ferimento a uma norma de ordem pública, mas, também, a preceitos constitucionais, o juiz pode agir até mesmo de ofício, pouco importando o modo mediante o qual este tomou conhecimento do vício – imprensa, denúncia apócrifa, representação ou até mesmo provocação daquele que ensejou a nulidade.
Em outros casos – vício de representação e legitimidade, por exemplo –, embora também haja o ferimento a normas de ordem pública, PODE preponderar o princípio da boa-fé objetiva, aplicando-se a regra geral prevista no art. 243 do CPC.
Assim, não é a qualidade daquele que provoca a decretação/declaração do vício que determina a consequência a ser adotada pelo magistrado, mas sim a gravidade do próprio defeito processual, aferido, de modo contextualizado, em cada caso concreto.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CAPISTRANO, Márcio Anderson Silveira. A técnica da ponderação de valores e a justificação racional das decisões judiciais. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XV, n. 100, maio 2012. Disponível em: < http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=12517>. Acesso em março de 2014.
DIDIER JR., Fredie. A invalidação dos atos processuais no processo civil brasileiro. Disponível em: http://www.frediedidier.com.br/wp-content/uploads/2012/06/A-invalida%C3%A7%C3%A3o-dos-atos-processuais-no-processo-civil-brasileiro.pdf. Acesso em março de 2014.
REIS, Taisa Araujo e COELHO NETO, Mário Rodrigues. A nulidade que beneficia aquele que lhe deu causa. Disponível em: http://savi_ead.s3.amazonaws.com/Materiais_Jur/DPC/Parte_Geral_I/AULA_04/LO_Aula04_.pdf. Acesso em março de 2014.