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O arquivamento do inquérito policial ou de peças de informação em caso de atribuição originária do Procurador-Geral

01/10/2002 às 00:00
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Um dos princípios basilares da ação penal pública, como se sabe, é o da obrigatoriedade (ou da legalidade), segundo o qual deve o Ministério Público, havendo justa causa, oferecer denúncia imputando um fato delituoso a alguém (neste sentido o art. 24 do Código de Processo Penal).

É bem verdade, outrossim, que este dogma processual penal sofreu uma certa mitigação com o advento da Lei nº. 9.099/95 quando consagrou no seu art. 76 a transação penal, instituto que permite ao Ministério Público, ainda que à vista de lastro probatório mínimo para iniciar a persecução criminal, abdicar da denúncia e propor ao autor do fato a aplicação de uma pena não privativa de liberdade.

Tal é a importância do princípio da obrigatoriedade em nosso sistema processual penal que o Código de Processo Penal concedeu ao Juiz, como função absolutamente anômala, a possibilidade de fiscalizá-lo, disciplinando o disposto no seu art. 28.

Assim, requerido que seja pelo Promotor de Justiça o arquivamento do Inquérito Policial ou de qualquer outra peça informativa, deve o Juiz, discordando do parecer ministerial, encaminhar os autos ao Procurador-Geral de Justiça que dará a última palavra, insistindo no arquivamento ou não (a bem da verdade, o Magistrado que assim agisse deveria, para preservar a sua imparcialidade, imediatamente afastar-se do ulterior processo).

Questão que se apresenta, no entanto, é a que se refere àquelas peças de informação que têm como objeto fato delituoso praticado por alguém ocupante de cargo que lhe permite ser julgado por órgão superior: a chamada prerrogativa de função, quando é o próprio chefe do Ministério Público quem tem legitimidade para oferecer a peça acusatória.

Pergunta-se: em tais casos, o arquivamento da respectiva peça de informação deve ser requerido ao Tribunal competente ou pode ser feito intra muros?

A resposta é, decididamente, no segundo sentido.

Não há razão plausível, nem do ponto de vista jurídico, nem sob o aspecto lógico ou prático para se exigir que o Procurador-Geral de Justiça (ou o da República, conforme o caso) submeta a sua opinio delicti ao Poder Judiciário que nada mais poderá fazer senão acatar o pronunciamento.

Observa-se que no sistema acusatório, ao qual nos filiamos (em que pese alguns dispositivos encontrados em nosso ordenamento jurídico que o maculam vez por outra), estão perfeitamente definidas as funções de acusar, de defender e a de julgar, sendo vedado ao Juiz proceder como órgão persecutório. É conhecido o princípio do ne procedat judex ex officio, verdadeiro dogma do sistema acusatório.

Pelo sistema acusatório, na lição do professor da Universidade de Santiago de Compostela, Juan-Luís Gómez Colomer, "hay necesidad de una acusación, formulada e mantenida por persona distinta a quien tiene que juzgar, para que se pueda abrir y celebrar el juicio e, consecuentemente, se pueda condenar" [1].

Por ele proíbe-se "al órgano decisor realizar las funciones de la parte acusadora" [2], "que aqui surge com autonomia e sem qualquer relacionamento com a autoridade encarregue do julgamento" [3].

Dos doutrinadores pátrios, talvez o que melhor traduziu o conceito do sistema acusatório tenha sido o mais completo processualista brasileiro, José Frederico Marques:

"A titularidade da pretensão punitiva pertence ao Estado, representado pelo Ministério Público, e não ao juiz, órgão estatal tão-somente da aplicação imparcial da lei para dirimir os conflitos entre o jus puniendi e a liberdade do réu.

"Não há, em nosso processo penal, a figura do juiz inquisitivo. Separadas estão, no Direito pátrio, a função de acusar e a função jurisdicional. (...) O juiz exerce o poder de julgar e as funções inerentes à atividade jurisdicional: atribuições persecutórias, ele as tem muito restritas, e assim mesmo confinadas ao campo da notitia criminis. No que tange com a ação penal e à função de acusar, sua atividade é praticamente nula, visto que ambas foram adjudicadas ao Ministério Público." [4]

Ora, se assim o é (e cada vez mais devemos procurar depurar tal sistema), não haveria necessidade, sequer, de submeter ao crivo do Poder Judiciário a decisão sobre o arquivamento de uma notícia-crime. Aliás, de lege ferenda, a reforma do Código de Processo Penal já altera substancialmente o art. 28 do CPP deixando ao Ministério Público, com exclusividade, tal atribuição.

Com efeito, o Projeto de Lei nº. 4.209/01 encaminhado ao Congresso Nacional estabelece que o novo art. 28 assim estará redigido:

"Se o órgão do Ministério Público, após a realização de todas as diligências cabíveis, convencer-se da inexistência de base razoável para o oferecimento de denúncia, promoverá, fundamentadamente, o arquivamento dos autos da investigação ou das peças de informação." Vê-se que o arquivamento passa a ser objeto apenas da apreciação do órgão do Ministério Público, retirando-se do Poder Judiciário essa anômala função de fiscal do princípio da obrigatoriedade da ação penal, tudo em conformidade com o art. 129, I da Carta Magna.

Mas, para que não fique o arquivamento em mãos apenas do respectivo Promotor de Justiça, o que não deixaria de ser temerário, prevê o projeto de lei ora analisado que "cópias da promoção de arquivamento e das principais peças dos autos serão por ele remetidas, no prazo de três dias, a órgão superior do Ministério Público, sendo intimados dessa providência, em igual prazo, mediante carta registrada, com aviso de retorno, o investigado ou indiciado e o ofendido, ou quem tenha qualidade para representá-lo." Assim, a Procuradoria Geral de Justiça de cada Estado da Federação deverá formar um colegiado especialmente destinado a examinar os casos de promoção de arquivamento, preferencialmente formado a partir de eleição entre todos os membros da Instituição (com período determinado). [5]

Visando a evitar possível procrastinação, dispõe o § 2º. do novo art. 28 que se "as cópias referidas no parágrafo anterior não forem encaminhadas no prazo estabelecido, o investigado, o indiciado ou o ofendido poderá solicitar a órgão superior do Ministério Público que as requisite.

Ademais, até "que, em sessão de órgão superior do Ministério Público, seja ratificada ou rejeitada a promoção de arquivamento, poderão o investigado ou indiciado e o ofendido, ou quem tenha qualidade para representá-lo, apresentar razões escritas."

"§ 4º A promoção de arquivamento, com ou sem razões dos interessados, será submetida a exame e deliberação de órgão superior do Ministério Público, na forma estabelecida em seu regimento.

§ 5º O relator da deliberação referida no parágrafo anterior poderá, quando o entender necessário, requisitar os autos originais, bem como a realização de quaisquer diligências reputadas indispensáveis.

§ 6º Ratificada a promoção, o órgão superior do Ministério Público ordenará a remessa dos autos ao juízo competente, para o arquivamento e declaração da cessação de eficácia das medidas cautelares eventualmente concedidas." Observa-se que, tomando a primeira providência, o Juiz de Direito agirá administrativamente, e não jurisdicionalmente, pois determinará que se arquive o procedimento investigatório como chefe que é dos serviços cartorários.

"§ 7º Se, ao invés de ratificar o arquivamento, concluir o órgão superior pela viabilidade da ação penal, designará outro representante do Ministério Público para oferecer a denúncia."

De lege lata, no entanto, permite-se ao Juiz exercer este controle, ainda que se trate verdadeiramente de uma atividade anômala.

Porém, tratando-se de uma peça informativa cuja posterior competência para o julgamento seja originária de Tribunal (e a atribuição, por conseguinte, recaia sobre o chefe do parquet), evidentemente que não se faz necessária a remessa de pedido de arquivamento para o respectivo Tribunal, sendo perfeitamente possível realizar-se administrativamente, no âmbito do Ministério Público.

Ora, se a última palavra é a do Procurador-Geral, qual o sentido de submetê-la ao órgão judiciário que nada mais poderá fazer senão arquivar? Não é possível ao Judiciário impor ao Ministério Público o oferecimento de uma denúncia, até mesmo porque o art. 129, I da Constituição Federal estabelece ser privativa do parquet a titularidade da ação penal pública. Afinal de contas nemo judex sine actore...

Vejamos a respeito o que pensa a doutrina, iniciando-se com o festejado Tourinho Filho:

"Aliás, nem precisaria o Procurador requerer ao Tribunal o arquivamento. Se ele é o único dominus litis e se externou sua vontade no sentido de não dar início à ação penal, deverá, simplesmente, determinar o arquivamento. Por que o requereria, se tal requerimento não pode ser indeferido?" [6]

"(...) o mais acertado seria que se fizesse o arquivamento diretamente no âmbito do Ministério Público. (...) Certo é que necessário se faz algum controle, porém este poderá ser feito no seio da própria instituição, através do instituto do desarquivamento (...)." [7]

"No que se refere à atribuição originária do Procurador-Geral para decidir se instaura ou não a denúncia perante o Tribunal contra a pessoa que detém o foro especial em razão da função, parece-nos perfeitamente possível sustentarmos que, nesse caso, diante da irrecusabilidade do arquivamento, pois o Poder Judiciário sequer analisa o mérito, o arquivamento dos autos do inquérito ou das peças de informações pode se dar na própria Procuradoria-Geral.

"Não há sentido lógico, nem prático, que o chefe do Ministério Público – única autoridade processualmente legitimada a agir mediante denúncia contra pessoa investida da função que lhe confere foro especial – deva dirigir-se ao Tribunal para postular o arquivamento quando o Tribunal não tem outra alternativa... senão arquivar! Ainda que se admita, apenas para argumentar, que o Tribunal discorde do pedido de arquivamento, qual a conseqüência prática se o Procurador-Geral entender de não denunciar? Nenhuma. Simplesmente não haverá processo sem que essa autoridade sofra qualquer conseqüência no âmbito processual ou funcional. Não comete crime de responsabilidade. Não está descumprindo a lei. Apenas que, por não ter formado o seu convencimento em torno do crime e da autoria, cumpre, fielmente, a função institucional do Ministério Público de fiscalizar... a aplicação da lei!

"O Egrégio Tribunal de Justiça do antigo estado da Guanabara, em certa ocasião, decidiu exatamente assim: como nos casos de competência originária cabe ao Ministério Público decidir, sem controle jurisdicional, quanto ao início da ação penal, não há razão para se dirigir ao Tribunal para arquivar, devendo o Procurador-Geral ‘determinar o arquivamento do inquérito ou das peças de informação ao invés de requerê-la ao Tribunal’." [8]

Neste mesmo sentido é o entendimento da nossa mais alta Corte, o STF:

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"Pertencendo a ação penal originária ao Procurador-Geral da República, e não existindo acima dele outro membro do Ministério Público, uma vez que a suprema chefia deste lhe cabe, não depende, a rigor, de deliberação do Tribunal o arquivamento requerido." (STF – Inq. – Rel. Min. Luiz Gallotti – RT 479/395).

"Ação penal originária - Pertencendo ela ao Procurador-Geral da República, e não existindo acima dele outro membro do Ministério Público, uma vez que a suprema chefia deste lhe cabe, não depende, a rigor, de deliberação do Tribunal o arquivamento requerido." (STF – Inq. – Rel. Min. Cordeiro Guerra – RTJ 73/1).

"Inquérito – Arquivamento. Requerido o arquivamento do processo pelo Procurador-Geral da República, não cabe ao STF examinar o mérito das razões em que o titular único e último do dominus litis apóia seu pedido." (STF – Inq. – Rel. Min. Francisco Rezek – j. 26/06/85 - RT 608/447).

Diante do exposto, parece-nos induvidoso que quando se tratar de peça de informação referente a pessoa que detém (em razão do cargo) prerrogativa de foro, o arquivamento deve ser promovido diretamente pelo Ministério Público, não sendo necessária a remessa ao Judiciário, ainda que o expediente dele provenha (neste caso, deve-se comunicar o arquivamento para que se providencie a "baixa" nos registros).

Observa-se, por fim, que a Lei Orgânica do Ministério Público Estadual (Lei Federal nº. 8.625/93) não permite que fique apenas "nas mãos" do Procurador-Geral de Justiça tal atribuição, pois pontifica no art. 12, XI caber ao Colégio de Procuradores de Justiça "rever, mediante requerimento de legítimo interessado, nos termos da Lei Orgânica, decisão de arquivamento de inquérito policial ou peças de informação determinada pelo Procurador-Geral de Justiça, nos casos de sua atribuição originária." No mesmo sentido, o art. 18, XIII da Lei Complementar Estadual nº. 11/96 que disciplina o Ministério Público do Estado da Bahia.

Assim, o que se faz imprescindível é a publicação oficial do pronunciamento do Procurador-Geral (dando oportunidade para que qualquer interessado possa recorrer ao Colégio de Procuradores) e a informação ao Tribunal (se a peça de informação dele originou-se).


Notas

1. Introducción al Derecho Penal y al Derecho Penal Procesal, Editorial Ariel, S.A., Barcelona, 1989, p. 230.

2. Gimeno Sendra, Derecho Procesal, Valencia: Tirant lo Blanch, 1987, p. 64.

3. José António Barreiros, Processo Penal-1, Almedina, Coimbra, 1981, p. 13.

4. Elementos de Direito Processual Penal, Vol. I, Forense, p. 64.

5. No âmbito do Ministério Público Federal há as Câmaras de Coordenação e Revisão com atribuição para, dentre outras funções, "manifestar-se sobre o arquivamento de inquérito policial, inquérito parlamentar ou peças de informação, exceto nos casos de competência originária do Procurador-Geral." (art. 62, IV da Lei Complementar n. 75/93).

6. Fernando da Costa Tourinho Filho, Processo Penal, Vol. I, São Paulo: Saraiva, 22ª. ed., 2000, p. 412.

7. Marcellus Polastri Lima, Ministério Público e Persecução Criminal, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1997, p. 272.

8. José Antônio Paganella Boschi, Persecução Penal, Rio de Janeiro: AIDE Editora, 1987, p. 204.

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Sobre o autor
Rômulo de Andrade Moreira

Procurador-Geral de Justiça Adjunto para Assuntos Jurídicos do Ministério Público do Estado da Bahia. Foi Assessor Especial da Procuradoria Geral de Justiça e Coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais. Ex- Procurador da Fazenda Estadual. Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador - UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela Universidade Salvador - UNIFACS (Curso então coordenado pelo Jurista J. J. Calmon de Passos). Membro da Association Internationale de Droit Penal, da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais, do Instituto Brasileiro de Direito Processual e Membro fundador do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (atualmente exercendo a função de Secretário). Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Integrante, por quatro vezes, de bancas examinadoras de concurso público para ingresso na carreira do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor convidado dos cursos de pós-graduação dos Cursos JusPodivm (BA), Praetorium (MG) e IELF (SP). Participante em várias obras coletivas. Palestrante em diversos eventos realizados no Brasil.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOREIRA, Rômulo Andrade. O arquivamento do inquérito policial ou de peças de informação em caso de atribuição originária do Procurador-Geral. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 59, 1 out. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3324. Acesso em: 18 abr. 2024.

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